terça-feira, 6 de maio de 2014

O OFÍCIO DE CAMINHAR (PARTE II)


É extraordinariamente fiel e exacta a forma que a vida encontra para se plasmar no caminho pelo viajante percorrido, seja ele qual for. Aliás, não é a própria vida um caminho de existência? Com a devida agudeza de percepção, compreenderemos que inúmeros aspectos de um se podem retirar e/ou aplicar no outro. Tal facto é a prova da sua indissociabilidade.

Darei um exemplo: sempre que empreendo uma caminhada, assisto em movimento contínuo ao que foi, é e será. No fundo, tudo isso se assume e manifesta numa mera ilusão. De certa forma, nada foi nem nada será: tudo é. O simples acto de caminhar é que, como acontece ao longo de uma existência, instiga essa toldada assumpção. É preciso transcender o tempo para racionalmente entendê-la. Partindo dessa ideia, constatamos como na matéria se desenvolve a prática de imensos preceitos teóricos, já que ela é o palco da expansão do próprio espírito. Será, no fundo, como entender o caminho físico que se percorre como uma metáfora da existência. Na verdade, é um exercício pessoal que, somado ao benefício medicinal de “andar a pé”, reúne inúmeros proveitos para quem o pratica.

Contudo, importa que no seio de tanto fascínio e deslumbre não ceda o espírito a certas “tentações” que também povoam o quotidiano da vida mundana. Nomeadamente, ao apego. É verdade que uma paisagem nova ao olhar sempre tende a prendê-lo, inundando a alma do caminhante na mais fresca das fragrâncias. Afinal, é algo desconhecido, e bem sabemos das virtudes, esperanças e oportunidades que as coisas desconhecidas podem prover. O próprio Thoreau afirma-o: «uma paisagem nunca vista é uma grande felicidade, e em cada volta há sempre algo novo». Será mesmo esse cenário, por vezes, o tónico ideal para dissolver a monotonia que os velhos caminhos, de tão gastos que estão, podem fomentar. Contudo, se o problema é a repetição do cenário, também para tal se encontrará uma solução. Vejamos: será que o que se estagna e se repete é o cenário envolvente? Ou a mente do viajante que por dias sem conta o contemplou? Pois bem, eis a derradeira constatação: tudo surgirá renovado se a mente de quem observa renovada estiver. Uma das maiores e mais proveitosas valências desta prática prende-se com isto: compreender como o milagre da vida se renova no nascer de cada dia.

Mas retornemos ao apego. Afinal, se nos deixarmos guiar pelos frementes impulsos de um qualquer deslumbre, corre-se o risco de para com ele cultivarmos uma espécie de atracção e consequente aprisionamento. Que em nada se relaciona, sublinho, com o gosto sentido em ver ou provar uma certa atmosfera, cenário ou demais elementos. O apego é uma sensação pouco luminosa, com raízes fundas no ser. Nasce do medo, nomeadamente do temor da perda, e arrisca-se a crescer infindavelmente se for alimentado pela substancial força das emoções. Em casos mais graves, roçará os limites da obsessão. Mas o ofício sobre o qual tenho vindo a divagar (admito a minha falta, leitor, e por ela peço a sua indulgência) exige abnegação, despojo e, principalmente, desprendimento... Passada após passada, tal premissa tornar-se-á translúcida à compreensão do viajante. Num de meus livros, em jeito de poema, escrevi: «caminhar é somente isto: fluir pelos caminhos». Eis o prelúdio da ideia em causa. Ademais, o viajante não é dono do caminho que escolhe trilhar... Em primeira instância, é um convidado seu, um alguém que responde a um íntimo apelo escrito nas finas linhas do vento. Depois (e será essa, eu creio, a transcendência final), tornar-se-á uma parte de si.

Escrevo estas palavras e à minha memória assomem as de Eugénio de Andrade, aquelas que numa crónica sobre Teixeira de Pascoaes retratam o saudoso poeta numa praia a recolher conchas e pedras. Ao que parece, Pascoaes guardava sempre algumas lembranças dos passeios que realizava. Desprovido de qualquer pretensão comparativa, devo confidenciar que pelos motivos antes explanados nunca trago de minhas viagens recordações físicas do caminho trilhado. Não por rígido princípio, mas por uma absoluta ausência de necessidade ou impulso. Cheguei, isso sim, a talhar num ramo de palmeira um modesto cajado de apoio (o simbolismo é evidente), mas até esse anexo nem conta mais com o meu uso. Há qualquer coisa no espírito que se quer livre que reclama ausência, silêncio e solidão. Devemos abandonar os mais fúteis mantos e máscaras se desejarmos ser um simples grão de vento. Bem, sempre nos poderíamos focar nas humildes flores... Por nossas mãos colhidas, não serão uma forma de apego? Se até essas eu ofereço, o apego, a sê-lo, ao menos não é individualizado. Um dia, minha mãe teve junto da janela da sua cozinha uma bem aromática rosa de Santa Teresa por mim recolhida no quintal de uma casa em ruínas. Permaneceu viçosa por mais de uma semana num jarro com água sempre fresca. Enfim, hoje, de consciência mais amadurecida (estou em crer), prefiro deixar todos esses belíssimos exemplares botânicos no lugar a que pertencem. Pois só ali, em canteiros, matagais, veredas ou valas, é que poderão embriagar o olhar do viajante mais atento. Talvez não seja propriamente um caso de apego, mas aqui o caminho ensina-nos as implicâncias das vertigens do egoísmo, ainda que esbatido, ou da dúbia exclusividade.

Despojado vou, despojado retorno... Só as memórias de tudo o que foi visto, saboreado e sentido, valem por si e excluem outros actos de dominância. Que mais poderei pedir? Além disso, a Natureza detém a sua própria ordem. Quem sou eu para voluntariamente alterar esse curso? Se a vida a meus olhos se apresenta como um rio fluido, então fluido serei. Tanto quanto sei ser, claro está. Ainda assim, trago impregnados em minha essência o aroma dos locais por onde passo; neles, deixo a semente do meu próprio perfume, cintilando como estrela até ao nosso próximo encontro. Só isso me basta, quanto ao capítulo do “trazer e deixar” diz respeito. E há até caminhos que conheci no auge do florescimento, nas securas do estio, na melancolia do outono e na mortiça sombra invernal – um mesmo cenário rendido aos efeitos das estações, sem que nada contra possa ser empreendido. Esse nível de aceitação por certo que surpreende e instruí, de sobremaneira, os espíritos mais inconformistas e rebeldes. Eis uma outra prova do implacável plasmar da existência num caminho que se percorre e das luminosas ilações que daí se poderão retirar.

O resultado de uma caminhada reflecte-se na alma de cada um, e verifica-se, como habitualmente, no término da mesma. Trata-se de evocar a velha prática de “varrer o quintal como quem varre os recantos do coração”. O preceito é o mesmo. Será interessante efectuar esse exercício apenas para constatar qual será a disposição final. Cansaço? Sim, por certo... Mas provavelmente uma leveza sem fim. São os tais estado de espírito que tanto gostaríamos que se eternizassem, mas que sempre se revelam tão efémeros como uma rosa nos inícios do outono. Ainda assim, poderá ser forte o suficiente para em breve nos levar à estrada. Oh, por quantas vezes não regressei eu ao lugar que me esperava com o mais dócil dos brilhos retido no olhar? Desse sereno êxtase retira-se a viva luz que tão própria é aos caminhantes: a luz dos deslumbres contemplados e, por isso, impressos na visão de quem bebeu algo mais do que a mera aparência de todas as coisas.

Nada existe por si só, e este nobre e simples ofício também essa lição nos ensina. Cada flor, cada árvore, cada ave vagabunda, cada réptil, cada homem e mulher. Em que medida são estes elementos distintos entre si? Não nos equivoquemos: caminhante e caminho são uma coisa só. É esse o segredo maior.




Pedro Belo Clara. 




segunda-feira, 28 de abril de 2014

O OFÍCIO DE CAMINHAR (PARTE I)


Não se poderá considerar simplista a tarefa de expressar por palavras o impacto que certas ocorrências ou actividades provocam em nós, principalmente se o que das mesmas colhemos equivale ao degustar, por um cálice de prata, do mais inigualável dos néctares. Certas coisas, ou melhor, a ressonância do efeito de certas coisas, é, de facto, tão sublime, grandiosa e pura, que nem nas palavras, perecíveis e finitas, a sua definição pode caber, sob pena capital de proscrever sentidos que igualmente merecem o seu digno registo. Em todo o caso, ao fazê-lo, importa ter a consciência de que algo sempre se perderá, seja por motivos sumários ou, como antes se referiu, pela impossibilidade de esboçar uma acurada descrição. E o sentimento que uma boa caminhada me instiga é um óptimo exemplo de tais evidências.

Sendo o Homem um elemento detentor de tamanha diversidade entre si, ainda que em mera aparência, compreendo que por íntimas razões nem todo o indivíduo se apreste a tais actividades e, como tal, possa não se identificar ou simplesmente familiarizar com certas ideias ou parâmetros que mais adiante irei expor. Excluamos, no entanto, o ócio ou um mau investimento do seu quinhão temporal. Refiro-me aos meros “gostos ou tendências pessoais”. O que é perfeitamente natural em sua essência, se bem visto for o caso. Darei um exemplo: se dez Homens se sentarem a uma só mesa e diversas bebidas forem servidas, por certo haverá quem escolhe o vinho, quem opto pelo sumo mais fresco e quem se decide a saciar a sede na singela e translúcida água. Portanto, o que se conclui? Iguais em condição, diferentes em suas preferências. Nada de estranho reside nessa evidência.

Dado o singular carácter das caminhadas, a viva metáfora que representam e o tudo que delas se pode extrair, outras ideias são passíveis de aceitação, além da mera hipótese de “preferência pessoal” antes referida. O célebre pensador norte-americano do século XIX, Henry David Thoreau, por exemplo, no seu ensaio “Caminhada”, bem persuasivo e lúcido, afirma que «há que ter nascido caminhante para pertencer a esta casta». Sabia do que falava, sem dúvidas, ele que fora merecedor, a respeito de tal tema, das seguintes palavras por parte de seu amigo e destacado escritor, Ralph Waldo Emerson: «Era um prazer e um privilégio passear com Thoreau. Conhecia tão bem o campo como uma raposa ou como um pássaro e cruzava-o livremente por caminhos que todos desconheciam. Sabia de cor todos os trilhos que a neve cobrira e que as criaturas haviam percorrido antes dele. Obedecíamos servilmente a tal guia, e a recompensa era grande».

Voltando às palavras de Thoreau, à discussão trazidas por, num momento de escrita, mentalmente as evocar, admito não ir tão longe quanto o referido autor parecia desejar ir, se bem que compreendo as suas possíveis intenções. Pois, ao declarar tal ideia, abre-se caminho a uma certa diferenciação que considero ser, de todo, desnecessária. Um caminhante, devoto discípulo do ofício de caminhar, não é propriamente alguém “superior” ou “diferente” (não tanto como qualquer outro), apenas alguém que em si detém uma veia pulsante que a tal o instiga. Assim como o comerciante possui o seu impulso, o agricultor ou o médico. São naturezas que, embora humanas, todas elas, compõem-se de géneros naturalmente distintos. Grande parte da beleza que orna a existência encontra-se em tal princípio.

Mas, de facto, existe alguma lógica no dizer de Thoreau. É preciso ser-se “caminhante” de origem para empreender a caminhada, apreciá-la e dela fazer um acto contínuo, quase indissociável do ser que a pratica. Se o marinheiro sente, desde cedo, o apelo do mar, o caminhante sente o irresistível apelo da estrada. Eu mesmo, admito, deleito-me e diluo-me nessa estranha magia que paira por uma estrada deserta distendida até ao horizonte, onde os reflexos de um sol nascente ou as mais vibrantes cores de um fogoso ocaso somente adensam a eterna promessa de infinito. Sim, caro leitor, se os caminhantes são mesmo uma casta, como Thoreau gostava de afirmar, de bom grado admito que a ela pertenço.

Como saber, no entanto, que impulso nos guia e alimenta? Em muitos casos, a estrada só sussurra o nosso nome quando pela primeira vez nela nos quedamos, prontos a navegar as ondas de todos os ventos. Noutras circunstâncias, de génese mística, existe uma espécie de feitiço que parece guiar o ser a determinados lugares, a determinadas práticas ou sensações, por forma a iniciar o seu percurso de aprendiz. Passada essa fase, sabendo o espírito o que o eleva e cativa, a união será fatal.

Na realidade, a partir do primeiro instante em que colocamos o pé na estrada nada mais será como dantes. O prelúdio do ofício conheceu a sua material manifestação, e todas as vindouras etapas se apressam a tecer os seus conteúdos. É o mesmo que pegar num copo de água e nele largar algumas pedras de sal. Assim que se dissolver, não existirá parte alguma daquela água que se prive de sódio. Já não o vemos, é um facto, mas o sabor que o líquido apresenta não permite margem para enganos.

A que se deve tal fascínio? Primeiro, como antes fiz menção, é necessário sentir o caminho e, claro, querer caminhar. É importante desejá-lo, numa fase primordial. Depois, com a disciplina necessária, transmutaremos a prática e dela faremos um simples acto, banal e quotidiano – sem que o mesmo se prive da sua digna virtude. O caminhante tornar-se-á a fímbria da estrada, a pedra do caminho, o grão do vento... Até compreender a eternidade que reside em si e que, a cada caminhada, se plasma no trilho que tem pela frente. Poderemos estar já a falar de “transcendências” que se arriscam a sair da órbita percepcional de cada leitor, aceito essa ideia, mas quem se permitir a cultivar a prática acabará por compreender ainda melhor aquilo que agora escrevo.

Na verdade, o acto de caminhar comporta mais espiritualidade do que materialidade, ainda que tal ideia possa parecer paradoxal. Cada indivíduo caminha com os pés assentes na estrada, sim, mas o que importa não é a posição de caminhar, antes a disposição para a caminhada. Com a prática, estou certo, estas e outras ideias terão um novo sentido. Como em tudo, é necessário a prática, a disciplina e a perseverança. A raiz de uma árvore é amarga, naturalmente... Mas o que dizer de seus frutos? Doces como o mel. Pois, quando nos iniciamos neste ofício, é como se pegássemos numa peça de prata, antiga e valiosíssima, cujo brilho, se o teve, aparenta estar completamente extinto. Contudo, com esforço e dedicação, somando os materiais necessários ao efeito, iremos perceber o quão lustrosa era, ou melhor, sempre foi. Apenas os anos fomentaram o seu desgaste e obscurecimento por escassez de uso. Depois, é vê-la magnífica como sempre – a sua real beleza fora enfim revelada diante do nosso anteriormente turvo olhar.

Com o Homem o caso é idêntico. As próprias incidências da vida material e a existência de um corpo que aparenta ser a sua real identidade tendem a fazê-lo esquecer de que há um espírito que exige cultivo, limpeza e cuidado. Múltiplas são as formas para cumprir tais exigências, e a caminhada é somente uma delas. Isto porque, em sua natural execução, comporta uma certa abnegação, um desprendimento sadio, um fluir que faz o caminhante compreender como a vida pode ser vivida: de forma idêntica à de um rio correr. Como se não bastasse, o cenário envolvente de igual modo fornece elementos que nos auxiliam no cumprimento do propósito, ainda que, para tal se suceder, recomende um passeio de índole bucólica. Pois as cidades, de tão densas e aprisionadas, nem sempre se afiguram como a melhor solução. Mas o mais importante é que cada caminhante execute a sua escolha e com ela sinta o maior dos confortos. Não obstante, existe ainda o ritmo da caminhada, um apelo sincero à agudeza da percepção, que leva, invariavelmente, a um estado de consciência e serena vigilância. Constataremos, assim, o modo como em cada passo tudo por nós passa... Árvore, flor, ave, pedra, curva, semelhante. Eis o anunciar de um dos princípios mais sólidos de toda a existência material: a impermanência do perecível.




Pedro Belo Clara.





segunda-feira, 24 de março de 2014

POR ESSA ESTRADA EXISTENCIAL AFORA

         
         Apronto-me para redigir estas linhas com definidas intenções e não cesso de focar a minha atenção num determinado episódio que se sucedeu um dia antes da realização de uma palestra para a qual fora convidado. De tal forma o caso se sublinha a si próprio que, inevitavelmente, dele devo fazer a base onde o pensamento que desejei primordialmente partilhar se irá, com a devida propriedade, assentar. 
Decorria o ano de 2012 e muito amigavelmente havia aceitado o gentil convite de uma simpática escola do interior do país para efectuar três sessões ditas “literárias” no interior das suas instalações. O assunto das mesmas era simples e bastante familiar: o meu percurso como autor. No fundo, a intenção principal era discorrer sobre o meu trabalho, revelar o que me motivou a enveredar por esse peculiar caminho e, claro, partilhar alguns trechos de livros que já tivesse então publicado (até à data, apenas dois). O desafio era estimulante; além do mais, constituía uma importante oportunidade de divulgação da minha obra, algo que um “escritor em princípio de carreira” sempre vê com muito bons olhos. Mas devo confessar, em prol da sinceridade que me habita, que o meu maior interesse, mais do que vender livros a preço de saldo, era simplesmente apresentar o meu exemplo e, assim, quem sabe?, conceder, a partir da sombra de tantos momentos, um pouco de luz aos elementos da plateia que a ela mais receptivos se revelassem.
É certo que todo o Homem detém em si a oportunidade de positivamente influenciar o seu semelhante, se veramente o desejar. É uma opção, apenas. Contudo, há que primeiro cultivar a consciencialização desse princípio. Detenho a seguinte convicção: todo o Homem pode (senão mesmo deve) ser um farol para o seu semelhante. Por isso, a minha principal intenção era tão-somente aplicar essa máxima que defendo da forma mais aprimorada que soubesse.
Não poderei dizer, com total certeza, que o intento foi cumprido, embora me agrade pensar que sim. Talvez um dia mais tarde venha a granjear uma absoluta certeza sobre o caso. Por enquanto, sei que doei o melhor de mim. E isso basta-me. Aliás, o simples facto de sabermos que com nossas palavras e actos tocámos profundamente alguém e, como isso, acrescentarmos uma positiva mudança em sua existência, é não só uma louvável vitória como também a própria razão de eu me ter tornado escritor. Não há, assim, uma derrota plausível nessa intenção, pois todo o acréscimo que veramente se efectiva acaba por se revelar um feito notável.
Mas antes de tudo isso se realizar, existiu o caminho que me guiou até esse dia. E é nele que o pensamento referido no início desta crónica se situa. Isto porque a existência humana é um imenso palco de aprendizagens. O próprio mundo, se com atenção o avaliarmos, apresenta-se como uma escola imensa, pródiga em infindos desafios. Tudo com um só propósito: evolução. É, por isso, translúcida a minha ideia: o natural desenvolvimento do Homem é a sua própria evolução, uma espécie de “próximo passo” na sua longa (e íntima) caminhada existencial. Mas, para que ela se possa manifestar, importa não só aceitar o desafio como também palpar as fímbrias de que é feito, por modos que diferem de indivíduo para indivíduo (naturalmente). Todos possuímos diferentes formas de contemplar o mesmo horizonte e os caminhos para o coração são múltiplos. O caminho não é estreito, antes de uma infinidade plena – tão infinito como a eternidade que nos espera no término do mesmo.
Mas eis o ponto crucial: para que tudo se possa concretizar, o desafio urge em ser aceite, o obstáculo derrubado e a etapa cumprida. Se colocarmos uma enorme pedra sobre o curso de um riacho, o fluxo das águas é interrompido e de pronto se estagna, até, no tempo devido, encontrar um meio de ultrapassar essa incómoda barreira. Então, cumprirá o seu destino: desaguar no lugar que o espera. Antes que isso aconteça, contudo, contar-se-ão inúmeras histórias e numerosos pensamentos, se fossem pensamentos e histórias somente aquilo que do riacho pudéssemos escutar.
Deixemos os rios e retornemos ao Homem. Neste caso, ao que vida dá, por palavras, ao relato que evoca uma íntima experiência sua. Assim, antes do grande dia, instalei-me num pequeno e simpático hotel, aproveitando para desfrutar um pouco das belezas ímpares daquele lugar situado na mais famigerada das serras lusitanas. Como não fizera a viagem sozinho, dispus de uma agradável companhia durante o passeio e o subsequente jantar. Mas as mais importantes revelações ou provas de um Homem acabam por surgir no seio do mais cru dos silêncios, quando, completamente despojado de tudo, nu se apresenta diante de si próprio.
Foram deveras curiosos os sentires e os pensares que me assomaram naquela noite, após a refeição... Já de volta ao quarto, com pouco impulso para a leitura (Steinbeck, meu fiel companheiro) e atenção para os programas televisivos, dei por mim a fitar o vazio. E de facto foi ele que, de súbito, mais me pesou: naquele quarto de hotel, em plena noite de Novembro, senti uma solidão extraordinária. Estranha constatação, direi, pois em regra a solidão é a mais fiel amante de um escritor. Como poderia ser solidão, se solidão era algo que tão bem conhecia? Admitamos: sem ela, como pode um autor exercer o seu ofício? Aquele sentir era, de algum modo, diferente sem o ser... Assumia quase os contornos de algo nunca antes sentido. O seu peso oprimia-me. Qual a razão? Desconheço… Quem pode justificar os súbitos (e amiúde obscuros) sentires da alma?
De facto, o fenómeno mais complexo de aceitar era a certeza de a solidão ser algo bastante familiar para mim. Na verdade, à parte do que antes foi referido, aprecio-a bastante. Os instantes de silêncio são sagrados para mim, pois deles retiro o necessário à fome de minha alma. E eles sempre me haviam concedido o melhor de si mesmos. Contudo, naquela noite foi diferente. Aceitei a chamada de um familiar próximo, por natural ocorrência, e o sentimento somente se adensou. Nem no seio mais quente perecia o frio implacável que voraz crescia... Pesava em mim como uma pedra e o vazio, crescente, oprimia. Sem solução de combate, aceitei o fenómeno em derradeira capitulação. E adormeci na entrega que por decreto havia feito a quem sempre me guia.
Outro dia despontou. O dia da ansiada palestra. A solidão e o vazio? Escoaram-se pelo mesmo orifício de onde vieram. Como? Uma vez mais, desconheço. Mas já vivi, senti e pensei o suficiente para saber que certas coisas são como nuvens que passam sobre nós: deixam a sua bênção em forma de chuva e, com ela, apenas nos tornam mais férteis. O evento correu de feição. Nem pensei mais no caso. Apenas me concentrei em cumprir a minha tarefa e dar o melhor de mim da melhor forma que sabia. No término desse dia, de consciência retomada, sabia que reencontrara a minha paz. Assim, de forma tão natural, evolutiva e simples, a minha luz saíra – também ela – renovada de todo esse processo. E obtivera uma nova confirmação: a evolução só abraça o Homem que a ela abrir os seus braços. Importa não esquecer tal coisa no meio da azáfama habitual dos dias rotineiros.
Mas o mais curioso de todo este processo surgiria, como complemento, alguns meses depois. Até minhas mãos chegara a correspondência que um familiar próximo havia trocado com sua esposa durante uma das suas múltiplas viagens profissionais ao longo desta lusa nação. Por outras palavras: as missivas que o meu avô materno escrevera para a minha avó aquando da sua estadia, no caso, numa das ilhas dos Açores. Ao lê-las, detive o olhar num certo paragrafo e sorri. Chegado ao hotel, num longínquo dia da década de setenta, o meu avô confessara os seus mais íntimos sentires à sua esposa, tendo em conta as circunstâncias em que ali chegara e a forma como aquela realidade o envolvera. Eis o motivo do meu leve sorriso… Pois a descrição dos mesmos era-me bastante familiar. Sim, caro leitor, o meu avô confessava sentir exactamente o mesmo que eu sentira naquela noite de Novembro, com uns meros quarenta anos de diferença. Curioso, não?
Bem sei que poderia investir uma certa quantidade de tempo em reflexões sobre o caso e respectivas conclusões. Mas que importa isso, afinal? Apesar de termos seguido caminhos distintos, eu e o meu avô materno nunca fomos, em essência, muito diferentes um do outro. E naquela simples leitura, voltara não só a confirmar essa ideia como a extrapolar a sua premissa para um universo bem mais alargado. Afinal, que ligação maior poderá haver do que aquela que se estabelece quando um sentimento é partilhado? Quando compreendemos algo há uma sensação de proximidade que nos torna, a todos, irresistivelmente humanos... Uma espécie de compaixão que somente nos engrandece e nos une. Os laços apertam-se. Nesse miraculoso acto, inúmeras barreiras se derrubam, pois a ilusão do “dois” (permita-me a metáfora) dilui-se na implacável certeza do “um”. A estrada existencial ilumina-se, por fim, e até ao alcance da sua última etapa vive a convicção de que o sol que banha o viajante é um astro invicto. Mesmo que a dualidade não cesse o seu efeito, a cortina foi já dilacerada. E será uma questão de tempo, no caso da perseverança imperar continuamente, até se revelar a solução do mais íntimo dos enigmas.




Pedro Belo Clara.




terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

DIVAGAÇÕES SOBRE UMA GAIVOTA QUE PASSA


Os dias cinzentos convidam à reflexão. E é no seio dessa húmida atmosfera de marítimos odores, prenhe de saudade e de sal, que se queda um poeta.

No coração escuta o bramir de um mar sempre ausente. Crê que o traz em si, entranhado na mais recôndita das fímbrias do ser, desde que se conhece como é. Em certos dias, quando o rebuliço se reforça e o eco mais se faz sentir, dá por ele a indagar se por suas veias corre o mais comum dos líquidos ou uma qualquer mistura de água e sódio. Nos altos céus de platina, embebidos em melancolia, uma gaivota imprime a sua invisível rota. Algures no meio, entre coração e céu, o poeta, rochedo profundamente fincado num areal de praia imaginada, é testemunha de fenómenos que não compreende. Mas voltemos, por ora, à gaivota.

Devo confessar que o seu voo sempre me intrigou. Agora, intriga-me ainda mais. Intriga-me e seduz. Especialmente quando tais peculiares aves trocam os imensos espelhos onde habitualmente se estudam e revêem em detrimento de deambulações por sobre estradas de rumos confusos, agitações fumegantes e brilhos toscamente intermitentes. Não poderei explicar o porquê, claro está. O voo da gaivota é semelhante ao voo de qualquer outra ave: repleto de mistérios. Talvez por essa mesma razão, ao concluí-la, o Homem tenha almejado (admitamos: cobiçado) essa arte tão intrinsecamente ligada à essência daqueles que ostentam penas e asas.

Mas lá que o voo é intrigante, é. «Gaivotas em terra, sinal de temporal» - escutei tal máxima durante toda a minha infância. Quem sabe se tal repetição não se tornou, com o fermentar dos anos, em ladainha interior até à exaustão repetida, eco após eco, numa espécie de oração que recordava a chegada dos dias cinzentos e chuvosos, os tais que tanto convidam à reflexão? Com eles vinham as gaivotas. E era vê-las pelos céus da cidade, em círculos sobrevoando as construções altivas, masmorras de betão, como se por ali, entre a calçada, buscassem pacientemente a prata de um suculento pescado. Ao mínimo movimento, assim davam a entender, lá investiriam em voo picado, prontas a reclamar o seu justo prémio. Mas nunca o fizeram, curiosamente… Nem nunca, em plena rua, me deparei com uma. Certamente que, se esbarrasse nesse exemplar, haveria de me deparar com um em estado de plena “convalescença”, permita-se a expressão, já que doloroso deverá ser, eu suspeito, o impacto, àquela altitude, na calçada empedrada. Sim, se a pobre ave confundisse as pedras reluzentes com as escamas de um fresco peixe, certamente investiria, ávida e triunfante, sobre o foco da sua ilusão!

Sempre desejei perguntar a uma gaivota o seu nome. Mas nunca encontrei uma disponível para me falar. Gostaria de encontrar o Fernão, confesso… Ou outro qualquer, até. Mas o Fernão é especial. Essa obstinação de ser a gaivota que voa mais alto tem que se lhe diga… Sabedoria intuída, é o que é. Porque procuraria o Fernão? Creio que seria agradável desfrutar da hipótese de lhe expor algumas dúvidas que durante a noite amiúde me assaltam… Talvez o meu voo não seja assim tão seguro quanto o dele. Ou não tenha ainda me despenhado as vezes suficientes. Há quem aprenda a voar pelo simples bater de asas; outros, pelas quedas que suportam. A existência é multifacetada… Ou simplesmente a mudez das tardes cinzas instigasse o sonho de voar que tão profundamente se enraizou no imaginário humano. Existem coisas que as aves conhecem melhor que os Homens… O voo, sempre secreto e místico, tê-las-á abençoado, pois possuem uma visão bem mais acurada das coisas. Muito poderemos aprender com cada uma delas.

Não necessito de asas para voar, é certo… Mas, não podendo, resigno-me a observá-las no alto da cidade. Sim, observar o voo da gaivota. É importante que não percamos o rumo da conversa. Mesmo que não saiba ao certo qual é. Enfim, sempre indaguei o porquê da gaivota eleger a cidade como destino de passeio… Especialmente uma região tão a norte como esta, e naturalmente mais afastada do rio que banha a cidade - o ambiente mais propício ao seu voo. Será efectivamente um refúgio? Ou algum sensor ancestral desperta no interior da gaivota em dias assim, levando-a a instintivamente sobrevoar regiões de marítimos antepassados? Talvez as ruas que hoje calco tenham sido as caves de um mar imenso que milénios atrás cobriu estas estradas envelhecidas… E a gaivota pressinta, muito justamente, um perfume de sal no meio de tanta palavra agreste futilmente lançada ao vento e ruídos metálicos repercutidos até ao seguro limiar da enfraquecida sanidade. Mesmo que a dita tenha, cientificamente falando, agora, nascido a apenas cinco anos atrás (suponhamos, claro - se não lhe sei o nome, como especular sobre a sua idade?). Ao que parece, a intuição de uma gaivota vence o frívolo esquecimento imposto, como uma herança sem hipótese de recusa, pelo implacável Tempo. E ainda há quem não queira ser como elas…

Existem factos que corroboram as evidências. O bairro da Ameixoeira, por exemplo, aqui tão perto desta gaivota que vagueia (quem sabe se não reservou a tarde para explorar as ruas que o formam?), deve o seu peculiar nome, segundo alguns estudiosos, a uma depreciação da palavra “Ameijoeira”, pois, ao que parece, grandes quantidades de fósseis pré-históricos, respeitante aos seres ostentadores de concha, foram descobertos naquela zona da cidade há muitos anos atrás. Ora, não sugere isso que, havendo conchas fossilizadas, algures nas dobras do Tempo um grande mar cobriu a planície? E as gaivotas, em dias cinzentos, ainda hoje lá retornam, mesmo tendo nascido há apenas cinco anos atrás, como a nossa teoria sugeriu, seguindo escrupulosa e fielmente um instinto de apelos distantes, preciosamente legado através de incontáveis gerações. Não é só do voo que se desprende misticismo; o coração de uma gaivota encerra segredos que qualquer Homem ansiaria por conhecer!

A chuva ameaça o seu retorno. A gaivota recolher-se-á em breve. Sinto já, ainda que agora a contemple, a ausência do estridente grasnar que entre as muralhas dos descoloridos prédios ecoava. Uma última dança, então, gaivota, agora que as tuas semelhantes juntam o seu voo ao teu. Eis a valsa da despedida: círculos e círculos sem vestígio impresso na imensa platina do céu melancólico, curvas e contra-curvas embebidas em mistério e oculta sabedoria. O voo da gaivota é uma poesia. Sem rima, verso ou palavra. O voo da gaivota é melodia. E silêncio.

A branca folha até aqui proscrita nas imperfeições do tampo da secretária aclama os afagos da mão deste poeta que sou. Outras palavras urgem ser registadas. De olhar preso ao velho bloco de notas, é hora de a pena desbravar a imensidão das linhas cerradas. Ao mesmo tempo, a gaivota, nas lonjuras celestiais, soletra o seu alfabeto aos pequenos peixes que julga contemplar. Como é bela, ostentando a eternidade dos poemas sem nome... Mas o poeta só incrusta, repetidamente, letras na rudeza das pedras. A sua forma é limitada.

Após mais um círculo desenhado no etéreo, desperta o apelo que perfumou a infância. Desejo ser como a gaivota. Um sopro de vento. Apenas.





Pedro Belo Clara.




sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ECOS DA CRISE


            A seguinte história, que a bem da verdade nem chega a merecer o epíteto de “história” (direi antes “relato” por de uma breve narração se tratar), chegou recentemente ao meu conhecimento por intermediários que me são próximos. O mesmo é dizer que não a testemunhei pessoalmente ou dela, tampouco, fiz parte. Escutei-a, somente. E hoje aqui a reproduzo com um assumido apelo à reflexão individual. Que o leitor, então, faça o que mais lhe aprouver com o que daqui sobejar.
          O interveniente directo deste sucedido, o primeiro narrador do caso em questão, não é nem do meu íntimo nem do meu casual conhecimento, como por certo já terá ficado esclarecido. Contudo, pelas palavras que compuseram o retrato da situação, acabou por pertencer a um círculo mais fechado de contactos, fruto da genuína humanidade que regou o seu simples acto. Acalme a sua curiosidade, caro leitor; no momento certo explicar-lhe-ei tudo devidamente.
            Ora, a pessoa em causa, numa manhã de Janeiro, como por certo o faz no alvorecer de cada novo dia de labor, seguia na sua viatura particular numa rua de Campolide, em Lisboa. Naturalmente, e seguindo sensatamente as regras de trânsito vigentes, parou por instantes junto de um semáforo vermelho. Aproveitando o tempo que a espera certamente lhe iria trazer, decidiu desviar a atenção da estrada e fixá-la nas incidências que pelo passeio, mesmo a seu lado, ocorriam. E em boa hora o fez.
            Acontece que naquele exacto momento, um senhor de ascendência africana, por certo um filho de uma das antigas colónias portuguesas daquele continente com extraordinários recursos naturais, encontrava-se de joelhos, sobre a calçada, sondando, ao que parecia, as terras de um pequeno canteiro aí existente. Numa primeira análise, a condutora do veículo por certo terá pensado, como qualquer um de nós perante a insólita situação, que o pobre homem (que não aparentava mais de sessenta anos de idade) havia perdido um dos seus parcos haveres naquele local. E digo parcos pois, pela indumentária que apresentava, gasta e descolorida, ao que se acrescentava a descuidada aparência, não seria certamente dono de muitos mais.  
         «Coitado… Perdeu algo e não o encontra.» - bem que poderia ter sido este o seu primeiro pensamento como espectadora do caso. Contudo, fiel, talvez, a uma indomável curiosidade, ou a uma intuição bem mais profunda, dona de intentos ocultos mas espantosamente acertados, não despregou o olhar daquele homem que em plena rua lisboeta permanecia ajoelhado. De seguida, ao aguçar a percepção do seu olhar, notou que ele não buscava algo entre a terra, mas – imagine-se! – a própria terra. «Porque motivo?» – indagará o leitor. Bem, de seguida o homem levou um punhado da mesma aos seus ressequidos lábios e… tentou mastigá-la. Creio que isso satisfará a dúvida que brevemente pairou por si.
          Sim, era verdade aquilo que os olhos da condutora presenciavam: um homem, em Lisboa, numa manhã de Inverno como tantas outras, ajoelhava-se para comer um pedaço de terra. É claro que a testemunha poderia simplesmente avançar assim que o sinal assumisse a cor verde, prosseguindo calmamente com os planos reservados para o dia que mal começara – absolutamente indiferente ao que tinha observado. Afinal, que homem era aquele que comia terra num canteiro de Lisboa? «Provavelmente detinha mil e um desarranjos psíquicos a carecer de tratamento urgente! É preciso afastarmo-nos de pessoas assim, loucas, desvairadas e sabe-se lá mais o quê, detentoras de patologias que nem nos mais completos livros de medicina surgem descriminadas… Pessoas assim são um flagelo, um perigo para a sociedade!» - no cume da nossa arrogância mesquinha, é provável que pensemos desse modo. Felizmente, existem excepções que ainda muito condignamente questionam as regras mais infundadas.
          A vida deposita um dos seus mais preciosos segredos não nos acontecimentos que a recheiam, mas na forma como cada um de nós, seus intervenientes directos ou indirectos, a eles reagimos. Assim que o sinal ficou verde, e a ordem de arranque foi dada, a dócil mulher, não querendo olvidar a estranheza do que vira, decidiu estacionar o mais perto que lhe foi possível e indagar, por si mesma, o caso que tanto a intrigava.
          «Oh, senhor… O que está a fazer? A comer terra??» - tê-lo-á questionado. Mas, antes que este tivesse tempo de responder, logo acrescentou: «O que se passa? O senhor tem fome?». Fome. Estaria aqui a resposta que deslindaria o estranho caso? «Sim, minha senhora, tenho fome, muita fome…» - respondera o amável indigente, quase lavado em lágrimas. A mulher, decidida, e já bastante incomodada com a crueza daquele retrato que corre sérios riscos de se repetir noutras ruas de outras cidades espalhadas por esse país fora, num repente dirigiu-se à sua viatura e lá reuniu o pouco que no momento possuía: o seu almoço. «Tome lá, homem, tome lá... Tome e deixe-se disso» - completou.  
O que se passou a seguir emocionaria qualquer um: o homem, praticamente afogado na sua própria emoção, prostrou-se aos pés da bondosa mulher e não cessava de repetir, com um ânimo bem vivo e sentido, a única ladainha que sabia: «Obrigado… Obrigado… Obrigado…». Tanto por tão pouco: uma sandes mista e uma peça de fruta.
            Feita a oferta, tão desprendida e isenta de falsas filantropias (oh, como as há por aí…), seguiu a dita senhora o seu rumo deixando o momentaneamente feliz homem a braços com uma refeição que muito provavelmente não desfrutava há dias. As aparências concedem ilusões tremendas, bem se prova… E a capacidade de julgamento do Homem, sempre tão altivo e impregnado de moralismos que nem auxiliam uma ave de asa quebrada, rege-se por parâmetros tão absurdos quanto questionáveis. Problemas psíquicos? Não. Fome. Tão somente fome.  
        A senhora ficou visivelmente abalada com o caso. Até esse aspecto do relato chegou até mim. Contudo, importa ver a questão por um outro lado: naquele exacto momento, uma simples acção trouxe uma luz infinda a um mundo de precário viver. É claro que, e com imenso pesar o digo, como aquele homem muitos outros haverá, assim como mulheres e, mais grave ainda, crianças. São rostos anónimos que se ocultam na bruma capitalista de uma sociedade virada para dentro, isto é, focada nos interesses pessoais das supostas elites que julgam governar. Até a pobreza, essa inaceitável chaga social de um regime que se diz democrático (embora somente pareça empenhado em adensar as disparidades entre todos os escalões na vez de as diluir), torna-se aceitável quando, num ápice, viramos a atenção para o outro lado da estrada e testemunhamos o flagelo da fome.
          Confesso-lhe, estimado amigo que me lê, que durante o meu tempo de vida nunca pensei ver, ou neste caso escutar, os ecos da fome na cidade que me viu nascer. Indigentes sondando caixotes em busca de haveres ou de restos comestíveis de alimentos? Sim. Mas… terra? Quão profundo não seria o desespero daquele homem para se debruçar em plena via pública e pegar num punhado de terra? Ainda que pela cidade existam, efectivamente, resíduos disponíveis (qual a humanidade daqueles que comem as migalhas de um pão que outros renegaram?) e até as famosas e sempre úteis cantinas onde necessitados de diversas causas encontram refeições quentes. Mas aquele homem escolhera a terra. A terra. De um canteiro pequeno e rasteiro. Numa movimentada rua de Lisboa.
         Esta crónica encerra-se aqui. O caso fala por si. E, mais do que dele tão transparentemente sobressai, flutua pungente a intenção e o significado daquilo que o próprio oculta. Que cada um leia e julgue por si mesmo. A tarefa deste escriba foi cumprida. Agora, será dada palavra à reflexão individual.
Uma crise económica é sempre, em primeiro lugar, uma crise humana, de valores e de prioridades. Que cada um possa meditar no rumo que este país começa por assumir, conduzido por governantes que de conveniência se dizem cegos. Será esta a sociedade que desejamos? Serão estes os exemplos que queremos deixar como legado a nossos filhos e netos? Que cada um sonde o seu recanto mais íntimo e entenda, por fim, que quando a base da pirâmide se agita o topo, invariavelmente, cede. Mesmo que quem o ocupe se julgue confortavelmente intangível. Cada um de nós detém a hipótese de influenciar positivamente o mundo que o rodeia. Pequenos actos fazem a maior das diferenças, encerram o mais proveitoso dos impactos. De um gesto simples pode nascer uma luz incrível. A pessoa que testemunhou a ocorrência tornou-se na prova viva dessa premissa.
Que saibamos dar pão a quem só tem terra para comer.




Pedro Belo Clara. 





quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

RETALHOS DA SAGA DE UM ESCRITOR (PARTE II)


              O dia amanhecera plácido e gélido. Após despertar, dirigi-me à janela do quarto para saborear um pouco o álgido ar daquela manhã de tímido sol. Tudo imergia, ainda, numa imensa e invisível onda de tranquilidade que descia dos montes, circundava as casas e naquela pequena varanda encontrava a sua praia ideal para morrer a meus pés. O coração de súbito acelerou-se quando a mente, retornando a si, desfez o resquício do sonho e ressuscitou a inegável realidade. Afinal, era chegado o dia onde todos os compromissos se cumpririam.
            Não me recordo se a noite fora profícua em descanso ou embalada em vagas de súbitas agitações… Apenas que, decidido, focava-me no objectivo que tinha em mente. E a partir daí não pensara em mais nada. O dia tinha nascido. Era chegada a hora. Tão simples quanto isso.
            Após saciar a parca fome e trocar com as companhias de então dois dedos de conversa, entre sumos de laranja, pequenos pães e bolos e cafés fumegantes, retornei ao quarto para finalizar os retoques na indumentária e reunir o material que o evento mais requereria. Estando tudo pronto e na devida ordem, despedi-me de quem de direito e saí do hotel rumo ao destino mais aguardado. Uma vez que na véspera lá tinha estado, não haveria hipótese de engano. Felizmente. 
            O vento era gélido, não sobravam dúvidas… Mas o frio tipicamente seco daquele local eram bastante suportável quando comparado com o frio húmido que habitualmente paira nessa altura do ano pela cidade que me viu nascer. Em suma, o Outono de lá assemelhava-se ao Inverno de Lisboa, extraindo apenas esse húmido factor que tanta estrutura óssea danifica. Nada de grave, portanto. Creio que os termómetros marcariam àquela hora uns condignos cinco graus centígrados, mas para a minha percepção não estariam menos de doze graus. Por aqui se vê o quão se habitua um organismo às temperaturas que reinam pelo seu ambiente nativo.  
            O vento, contudo, auxiliou-me a conservar a mente vazia, despojada de pensamentos menos desejáveis ou de apertos absolutamente injustificáveis. Cheguei ao portão principal da escola, identifiquei-me e, após concedida a autorização de entrada, dirigi-me à biblioteca onde se desenrolaria o evento. Pelos corredores, caminhando assim tão à-vontade, quase que passava despercebido por entre funcionários e alunos. Um novo professor, quem sabe, que se aprontava para se estrear naquele estabelecimento de ensino?
            Munido de alguns exemplares do meu último livro, à data, publicado, entrei na biblioteca e, vendo os arranjos devidamente concretizados, atravessei a fila de cadeiras ainda vazias para me instalar no lugar que seria meu por efémero direito. É claro que o evento não envolveria somente os temas que anteriormente explanei, mas igualmente a oportunidade de vender, a um preço bastante acessível, alguns exemplares da obra que comigo havia trazido (“Nova Era”, um livro de poesia editado em Dezembro de 2011). As vendas foram bastante razoáveis, devo dizê-lo, embora nunca tivesse alimentado a ilusão de que enriqueceria sobejamente com os lucros aí angariados. Mas importante que tudo isso foi a oportunidade dada aos alunos, professores e funcionários de lerem a obra e meditar sobre a sua universal mensagem. Essa sempre é a minha máxima prioridade.
            Enquanto aguardava a chegada dos alunos e da professora de português com quem havia previamente combinado o alinhamento das três sessões, e que do mesmo modo seria a minha companhia de mesa durante todo o evento, desfrutei de uma agradável conversa com a funcionária da biblioteca. Enfim, assuntos banais que somente nos auxiliam a descontrair e a mergulhar, com o devido afinco, no novo ambiente em que nos encontramos. Aqueles minutos, assim, passaram graças à troca de impressões sobre o estado do tempo, o meu conhecimento sobre a vila e a própria região e até sobre as origens ancestrais da família. O facto de descender de beirões, por parte paterna, e devido à grande proximidade entre as duas zonas do país, sempre acalenta uma conversa que, de outro modo, poderia facilmente esmorecer.
            As cortesias foram sendo trocadas de forma bastante genuína e agradável até a referida professora chegar. Cumprimentámo-nos, falámos sobre pertinentes assuntos que mereciam uma derradeira abordagem e, por fim, tomámos o devido lugar na mesa do evento. Os alunos estavam quase a chegar.
            Com uma afluência bastante regular, de pronto se ocuparam todas as cadeiras. Alguns funcionários, inclusive, tiveram de permanecer de pé. Pelo menos, durante a primeira das três sessões que o evento comportaria. As introduções foram feitas e as apresentações concretizadas, até chegar o momento em que me foi dada a palavra. Assim, comecei por relatar a origem da minha história nas letras, bastante curta ainda, na esperança de que em algum momento, fosse de que forma fosse, certas palavras inspirassem a jovem audiência ou, em derradeira instância, os instigasse a reflectir sobre questões veramente importantes. Acima de tudo, optei por ser fluido… Como se se tratasse de uma conversa entre amigos. Que outra forma haverá de manifestar uma sincera acessibilidade?
            Três turmas diferentes escutaram as palavras que naquele dia proferi. Contando com a indispensável pausa para almoço e café, o evento terá encerrado, oficialmente, por volta das três horas e meia da tarde. Ao longo das horas anteriores contaram-se muitos sorrisos, autógrafos, fotografias e momentos de boa disposição e conversa. No período de almoço, inclusive, onde tive o privilégio de partilhar a refeição com a professora de português anteriormente citada em plena cantina escolar. Sinceramente, é nesse meio que prefiro estar: entre as pessoas. Principalmente, e aplicando a fórmula ao caso em questão, no meio daquelas que me vieram ver e ouvir.  
Nada tenho contra as supostas elites, mas o afastamento social que por norma é seu apanágio contraria a minha natureza. A ideia de quem me convidou, soube depois, consistiria em realizar o almoço num restaurante da zona, hipótese que igualmente aceitaria com o maior dos prazeres. Mas a forma como o caso se desenrolou acabou por ser ainda melhor: almoço na cantina entre os alunos e no meio dos alunos. Sem sequer registar um esboço de hesitação em pegar no meu próprio tabuleiro, servir-me convenientemente e arrumá-lo de pronto, quando findou a refeição. A ideia extravasa completamente a tendência (ou bom-senso) de ser romano em Roma; prende-se antes com uma questão de atitude, de abertura e de aceitação para com o meio envolvente.
A imagem que se poderá reter é a de um político que decide almoçar com alguns representantes do povo que governa, partilhando as suas instalações e o seu meio de convivência. Digo isto apenas, é claro, por motivos comparativos, com o intuito de esclarecer o leitor sobre os sentimentos então vividos. Não detenho ambições políticas, nem nunca as tive, mas, se as possuísse, pode o leitor crer que seria alguém bastante próximo da população pelos motivos anteriormente referidos. A íntima natureza que me assiste não permite que seja de um outro modo.
Creio que uma das mais eficazes virtudes que naquele dia decidi colocar em prática foi a de não criar qualquer tipo de expectativa. Afinal, como numa outra ocasião tive a oportunidade de escrever, «só se desilude aquele que se ilude». Portanto, sem expectativa pré-concebida, seria impossível acalentar ilusões vítreas. Permiti-me simplesmente a ir ao encontro do que me esperava de braços bem abertos. Apenas com um objectivo em mente e despojado de iludidas ambições, terminei o dia de coração cheio.
Ainda hoje esboço um sorriso ao recordar certos episódios vividos naquele dia de Novembro: as pertinentes perguntas de alguns alunos menos tímidos, o clima de amizade que senti em cada recanto da escola, as conversas à hora do almoço com a professora que me recebeu, o café saboreado na belíssima instalação termal da vila, o encontro com o director e demais professores e funcionários, entre muitos, muitos outros exemplos. Uma das maiores gratidões que cultivei e que comigo trouxe, no regresso, foi a forma aberta e veramente simpática com que fui recebido. Por todos, direi: alunos, funcionários, professores e director. Muito além dos agradáveis momentos de venda de livros, das fotografias que os alunos quiseram tirar comigo, os cartazes afixados com o meu nome e rosto ou o magnífico cabaz que a direcção me ofereceu no final do dia (o aveludado vinho que o compunha regou, inclusive, a minha ceia de Natal), permaneceu o sorriso das pessoas com quem me cruzei e, principalmente, o agrado dos alunos com a minha simples presença em sua escola. Eu, sendo um completo desconhecido naquelas paragens, senti-me, e muito humildemente o digo, como uma autêntica rock star.
Poderei ter pensado que me depararia com os orgulhosos descendentes dessa tão nobre e ilustre estirpe lusitana: os herdeiros de Viriato. Gentes de rostos sóbrios e agrestes, com olhares de fino brilho lembrando a sua excelsa origem… Porque não? Mas muito me equivocaria… Encontrei jovens, apenas jovens; tão idênticos, em sonhos e esperanças, àquele que não há muitos anos atrás eu próprio fora.
Ainda que tenha tentado manter-me, durante o desenrolar das agradáveis sessões que partilhámos, num patamar onde pudesse ser, com a máxima clareza, compreendido, na verdade poucas coisas distinguiram a audiência do orador… À parte, apenas, o facto de terem nascido e crescido em zonas distintas do país, com um leve contraste urbano/rural a separar as naturais incidências da juventude. Mas tal aspecto remete ao meio exterior, não à essência. E dentro desse tema, eu o senti, compreendíamos todos o mesmo alfabeto.
A história que sombreia a existência individual, que ajuda a explicar um pouco aquilo que hoje ela é, apresenta-se como um factor diferencial e único ao mesmo tempo. Cada indivíduo detém o seu próprio rumo, a sua própria história. Naturalmente. Por isso, anuo: cada um de nós era um filho de múltiplas causas e escreveu histórias diferentes ao longo do percurso pessoal, ainda que estas se possam unir em determinados pontos. No próprio caminho existencial, apenas por em idade ser mais velho que a audiência, sigo eu na dianteira. Mas tal facto não deverá constituir um factor diferencial, um motivo de apartamento ou relativização. Pelo contrário: é uma séria responsabilidade. Muito mais nos uniu do que certamente nos separou.
Não me recordo já do exacto modo como terminei cada palestra ou como daquele amigável ambiente me despedi. As palavras tendem a oxidar com o tempo, e só subsistem, com maior ou menor desvio, enquanto forem recordadas. Pouco importa, contudo, quando sobeja o principal: o sentimento experimentado.
Na manhã seguinte, com apenas dois graus de temperatura, aprontava-me para a partida com um intenso desejo de retorno. Ainda não tinha abandonado a vila e já elaborava planos para voltar. Assim cogitava, enquanto me divertia a assistir ao jovem casal estrangeiro, provavelmente inglês, que raspava o gelo matinal cravado no vidro do seu carro alugado. De facto, pela tipicidade do local, coisas bem típicas e singulares são passíveis de acontecer – o que apenas incrementa a fineza do perfume que tão bem caracteriza aquelas paragens.
Nesta crónica que assino, e que agora se irá encerrar, apenas poderei sublinhar o sentimento de gratidão que efervesceu como resultado de toda aquela experiência. Sei que me repito, mas é justo que o faça. A felicidade que aí colhi deve-se, em grande parte, a esse aprazível sentir. Foi um gosto imenso provar o etéreo abraço de tais gentes.
Terei eu primado, afinal, pela diferença? Concretizado um positivo impacto junto de algum aluno? Não o sei. Provavelmente, apenas lhes proporcionei um óptimo tempo de descontracção ou uma sempre apetecível fuga às aulas vigentes. Isto eu sei: dei o melhor que tinha em mim, em cada sessão me revelando o mais aberto e acessível que sei ser. Também não sei se isso, junto do próximo, terá bastado, mas a minha consciência vive tranquila e em paz por saber que conseguiu alcançar o seu íntimo propósito. 
Talvez um dia mais tarde um daqueles alunos me reencontre num qualquer lugar e diga de sua justiça. Talvez muitos até já me tenham esquecido, mas… o que importa isso afinal? A semente foi plantada. Basta aguardar o crescimento da árvore. Recorrendo às sábias palavras de um famoso ditado chinês, embaralhando-as, sei que ofereci todas as rosas que tinha para dar. Nas mãos que as concederam, as minhas, habita a essência do seu delicado perfume. E durante largos anos aí perdurará. Disso eu estou certo.




Pedro Belo Clara.