quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A sobremesa

Da mais banal das situações podemos retirar a mais proveitosa das lições, tal como até aqui temos conseguido constatar. No seguimento dessa conversação, irei hoje partilhar convosco, meus caríssimos irmãos de Caminho, mais um desses valiosos exemplos.

Há muito pouco tempo atrás, durante uma serena e sincera celebração, terminada a honesta refeição que a todos aconchegou, povoou-se a sólida mesa com as mais belas e apetitosas sobremesas (como, aliás, é costume no término da refeição principal). Uma dessas sobremesas, contudo, destacava-se não pelo seu finíssimo aroma ou apresentação de pasmar, mas pelo seu aspecto deveras tosco e descuidado. Mesmo assim, espicaçado pela curiosidade, ao observar que mais nenhum dos demais irmãos com quem eu partilhava aqueles momentos estava decidido a prová-la, optei por investir sobre ela e indagar sobre o seu sabor (no fundo, aquilo que verdadeiramente importava saber). Espantaram-se, talvez, os mais cépticos, receosos, tímidos ou indecisos, quando exaltei, no auge de minha sinceridade, a magnificência daquele doce. A sua textura era óptima, os ingredientes que o compunham encontravam-se harmoniosamente casados e o seu sabor era autenticamente cativante! E bastou revelar tais qualidades, dignas dos palatos mais exigentes, para que todos já o quisessem provar. Surpreso ficou, obviamente, o caminhante que o havia confeccionado, também ele presente naquela longa mesa de madeira. Afinal, nem no dia anterior, quando o apresentou a seus convivas, estando ainda mais aprimorado de aspecto, se atreveram a prová-lo. Naquele momento, fruto de diversas deslocações e de um negligente transporte, tinha preservado somente o seu sabor distinto, não a firme aparência. E assim disse eu, naquela mesa recheada de sobremesas e de caminhantes dispostos a degustá-las, que um bom rumor atinge uma profundidade maior do que uma boa aparência.

Imaginemos agora, seguindo esta sabedoria, aquilo que não podemos fazer por nosso semelhante, caso o fogo de um verdadeiro impulso assomar o nosso coração… Todos possuímos os nossos círculos de relacionamentos, sobre os quais exercemos sempre um determinado grau de influência. Uma boa palavra, de nossa parte, poderá em diversas ocasiões revelar-se um escudo protector para quem dele mais necessitar, uma mão que se estende para resgatar quem resvalar na lama da injúria e da injustiça. Possuir um nível de consciência mais abrangente também arrasta consigo novos tipos de responsabilidade. É sabido que cada coração tem os seus impulsos, e que cada impulso gera uma acção. Se tal aspecto despontar em nós, seja qual for a ocorrência, que nos possamos recordar da singela lição que aquela deliciosa sobremesa nos dispensou!

Aquela tarde, por fim, acabou por trazer novos desenrolares de fraterno festejo, mas, naquele instante de percepção, abençoámos o Caminho pelas valiosas mensagens que nos transmitiu. Seja através do silêncio de uma noite ou do chilrear de um pequeno pássaro, ele é como um Pai que sabiamente aconselha os filhos que tanto ama.


Pedro Belo Clara.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A Gata e a Porta

Indagando sobre os exemplos que as demais ocorrências do Caminho nos concedem, por meio de seus múltiplos intervenientes, é possível concluir que a sua revelação ocorre quando dela mais necessitamos. É como se existisse uma espécie de conversa entre o caminhante e o Caminho, com este a oferecer as respostas ou os indícios da solução de nosso problema ou questão. Com o discernimento adequado, isto é, com a mente disponível para tal hipótese, tornamo-nos capazes de os entender. A sua fala é silenciosa e longo poderá ser o caminho de sua aprendizagem, até nos revelarmos aptos a lê-la ou a escutá-la. Mas, no fundo, tudo o que necessitamos encontra-se em nosso redor e ao nosso acessível alcance; por vezes, basta empreender o esforço de quem alonga um braço para que o meio almejado possa ser encontrado e, posteriormente, utilizado.

Um dos sentimentos mais recorrentes em quem atravessa as alamedas de dúvidas e questões, é a carência ou o fraquejar de uma crença – em suma, um titubear de Fé (seja qual for o chão em que tal alicerce se apoia). Segue-se o relato de um desses “exemplos” (ou lições) que o Caminho nos oferta, do caminhante que eu sou, para si, leitor, meu companheiro nesta longa viagem de vida.

Num desses dias banais de vivência e repouso, a minha gata (companheira de tantos anos) fez-me evocar uma das mais belas artes deste caminho que é a Vida. Estando ela junto a mim, tranquila, entregue ao sossego de seu descanso, decidiu que os seus súbitos afazeres se detinham numa outra divisão do lar que nos abriga (nem perguntem pelos seus motivos, pois eles, em tantas ocasiões, permanecem ocultos até da consciência de quem os empreende). Contudo, a porta que oferecia entrada a essa divisão encontrava-se fechada, estado a minha simpática amiga impossibilitada de lá entrar. No entanto, terá sido esse o obstáculo que a demoveu de seu propósito? Não. Com a típica tenacidade felina em ebulição, quedou-se junto da entrada e, quieta, aguardou a sua abertura. Dirão alguns que é comportamento irracional, pelo menos absurdo; direi eu que é um extraordinário sinal de Fé. Conhecendo tão bem a matéria que compõe esse bichinho tigrado, devo – por bem – explicar: no seu âmago, sendo incapaz de abrir tal porta, ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém a abriria por ela. Não se trata de comodismo, mas sim de “hábito de acreditar”. Em inúmeras ocasiões anteriores, eu já havia feito o mesmo; por isso, ela já sabia que em breve surgiria uma mão salvadora, pronta a cumprir a sua tarefa. Aprendeu a confiar e a acreditar em mim mesmo e, como tal, a minha intervenção nestes acontecimentos era sempre dada por garantida.

No fundo, como um viajante que conhece e confia nas artes e ocorrências do Caminho, a minha companheira listada acreditou, manteve-se fiel ao seu propósito (acreditem que pouca coisa a demoveria de lá) e aguardou a realização do seu desejo momentâneo. Quando entendemos, interiormente, que nada mais é humanamente possível de concretizar, entregamos nossos planos ao fluxo da vida e aguardamos a sua desenvoltura (como disse em entradas anteriores: em certos dias, regamos a nossa plantação; noutros, a chuva encarrega-se disso mesmo). E a porta? Terá sido, afinal, aberta por minha mão? Bem, perante tamanha crença e perseverança, jamais poderia ignorar tal exigência…

É curioso como os demais seres que partilham as suas existências connosco conseguem, no auge da sua sabedoria mais instintiva, mais subjectiva, oferecer-nos provas de válidos e de não menos notáveis comportamentos perante cada obstáculo, cada situação forjada pela desenvoltura da Vida. Nesses momentos em concreto, considero até que a sua simplicidade é bem mais profunda que o nosso saber de quotidiano humano, superficial.


Pedro Belo Clara.