segunda-feira, 24 de junho de 2013

RESQUÍCIOS DE UM OUTRORA DISTANTE


Permanecendo aqui, em tão amplo espaço, dádiva de um dos mais recentes jardins da capital (ou parques, se optarmos por essa moderna formalidade), sob um intenso sol de meio-dia, soberano num céu de veludo azul, é inevitável reter certos pensamentos que logo se aprontam para a sua habitual viagem de cogitação. Principalmente, pelos instigadores de tal fenómeno mental se quedaram aqui mesmo, em meu redor. São pilares que sustentarão todas as futuras incidências que criadas serão pelo natural acto de pensar, ou, em alternativa, colocada, talvez, de uma forma mais directa e clara, serão um honroso alento artístico. Pois é precisamente isso que hoje aqui encontro: motivos de inspiração.

Por vezes, é importante que se diga, de certos aspectos, tão simples em aparência, desenvolvem-se razões que medram em campos antes tidos como impensáveis ou inatingíveis, levando assim o intrépido pensador a níveis mais distantes de idealização, não necessariamente densos (quantas virtudes não oferece o fluido pensar…), mas profundos. Daí, no devido tempo, nascerá, brilhante como o sol nascente, o entendimento, magnífica luz que extingue qualquer treva. Assim, é usual se considerar que, percorrido tal caminho, ou seja, a captura do elemento instigador, o desenvolvimento das razões, o aprofundar de cada causa e, por fim, o entendimento do fenómeno em si, um desejo se instale. Afinal, quem não suspira por ver e tocar no tesouro que foi a génese de toda uma demanda? Porque, até este momento, apenas nos quedámos perante os portões que o encerram… O desejo será, assim, o impulso derradeiro, aquilo que nos fará ir ainda mais além do que já fomos, não só para elaborar novas hipóteses, mas para saciar a sede de ver, saber e entender de forma mais ampla e, por isso, plena. Sem permitir, contudo, que tal fogo nos envolva em demasia, pois tal ferir-nos-á e, em última instância, reclamará para si, como caçador que consome a sua presa, toda a paz que havíamos conquistado até então, essa valência infinitamente preciosa, infinitamente sã.

Registo tais dizeres por este lugar, ao qual vagamente me referi, o suficiente, apenas, para o leitor o poder imaginar com a devida liberdade, ser um terreno fértil em elementos instigadores do processo meditativo. De facto, se agora mesmo tomasse os meus olhos e visse aquilo que neste instante eu vejo, iria identificar diversas sustentações da anterior afirmação, ainda que os pensamentos continuassem a ser exclusivamente seus, estimado leitor. Esses pormenores que tão levemente sobressaem da restante paisagem são, aqui, derradeiros símbolos de resistência, um pedaço do passado que ainda subsiste neste presente, o que nos remete, a nós, observadores, a tempos idos. Tal efeito instiga, é certo, o referido desejo de há pouco, sendo neste caso o de relembrar, reviver ou simplesmente imaginar como teria sido. Porque impresso em cada lugar está uma marca antiga que é como uma essência, um indelével aroma, um espírito que nunca se desvaneceu, apenas se ocultou. Assim, com olhares atentos e, principalmente, alma receptiva, tornar-se-á possível a complexa arte de ler nas entrelinhas do tempo, ainda que tal exercício seja profícuo em guiar-nos à especulação e ao deleitoso devaneio poético, confesse-se. Mas… Qual é o quadro que não se abrilhanta com as cores da imaginação?

Contudo, essas referências são meros resquícios de um outrora distante, de um passado já consumido e, por isso, extinto, nada dizendo, por conseguinte, àqueles que o não viveram. Apesar da relativa sensação de indiferença, sobra, no entanto, o místico encanto de uma irresistível e, como tal, inexplicável atracção. Pois as histórias que se contam, entre sussurros, pelos recantos de algo que atravessou eras, fascinam, interiormente, a alma que as escuta ou reconhece, por também elas serem humanas, como todos nós. Por mais que se pretenda fabular uma história, as suas raízes serão sempre humanas, terão causas humanas e sentires humanos, tão comuns em seus amores e tragédias. E tal evidência acaba, de uma maneira naturalmente compreensível, por não só cativar os Homens do agora como encurtar espaços entre tempos, de forma a tornar claro que, por exemplo, as paixões de ontem ainda são as de hoje. Isso, curiosamente, pode de igual forma proporcionar um agradável conforto, fruto de uma imediata empatia ou compaixão entre as coisas de hoje e de antigamente, não tão diferentes como geralmente se entendem e consideram.

Antes de se tornar no parque que hoje é, este local fora, em séculos que não mais se contam, uma simpática quinta merecedora da típica beleza e brio que adornam, habitualmente, as suas semelhantes. A casa original ainda permanece como uma ruinosa reminiscência, embora a sua estrutura de base tenha sido um justo alvo de atenções e de proveitos de recuperação. Eis aqui, logo em primeira revelação, um dos elementos instigadores que anteriormente referi. É certo de se pensar que a imagem dos dias correntes não é mais do que um reflexo do antigamente, pálido e disforme, sem fazer jus à real magnificência de outrora, tenha ela sido natural e simples ou veramente majestosa; mas tais consequências são efeitos do tempo, sempre eterno, sempre presente, e contra os quais pouco ou nada se poderá empreender. Contudo, a atracção maior deste lugar, a que desencadeou tamanho pensamento, tamanha reflexão, não se prende com as efemeridades naturais ou com o desgaste das perecíveis matérias, antes com o que aqui ainda vive. Já o referi leitor: alma receptiva, concentrada, mas fluida, consegue ler nas entrelinhas do tempo. Não reviver um passado que não conheceu, pois tais artes mágicas não parecem ser sua habilidade, mas sentir, como derradeira evocação, uma energia antiga, livre e silvestre, esplendorosamente bravia.

Certas coisas, ou substâncias, direi, antes, por esta palavra comportar mais facilmente a razão do etéreo do que a anterior, certas substâncias, então, resistem ao suceder dos tempos, imunes a seus efeitos de roda que não cessa de girar. E, se nos aprontarmos para tal, partiremos deste ponto de agora até às mais remotas eras, permanecendo, serenos, no limbo da dúvida, se realmente sentimos a origem ou se apenas dela nos aproximamos. Que melhor combustível para nos alimentar, então, do que o desejo que antes anunciei? Ele que, aqui, neste caso em tudo mais concreto, assume a forma de um desejo de primordial, uma quase necessidade de retornar às origens ocultas pelas brumas de nossas confusas memórias. Pois, e eis o mais interessante, embora o cenário seja exterior, a mais grandiosa das viagens, a que produz igualmente maiores e mais profundos efeitos, é a interior, ainda que esta se espelhe no cenário que nos rodeia. Mas, afinal, que é o Homem senão um pedaço daquilo que o rodeia? Tanto quanto este Todo é uma parte do Homem? Interior e exterior são uma coisa só… Completam-se, e nenhum poderia existir sem o outro.

Olhando, portanto, em redor do que adorna o meu «aqui» e «acolá», vejo as oliveiras que se quedam, belas em sua simplicidade, e as laranjeiras sempre coloridas e aromáticas, assim como muitos outros elementos de digno registo, embora sejam notoriamente mais recentes e, como tal, impassíveis de nos remeterem aos tempos da quinta briosa. Mas, ao pensar sobre as oliveiras e laranjeiras de há pouco, conseguiremos entender que são elas as herdeiras das mesmíssimas oliveiras e laranjeiras de antigamente, legítimos pedaços de um legado que ainda subsiste. Não só pela notória antiguidade das mesmas, que quase lhes confere o título de «nativas», como pela lógica segura de que tais exemplares são naturais em uma quinta como aquelas que por aqui existiam, nesta região noroeste da cidade. Estando ela, a casa, sob um pequeno outeiro, imagina-se até a redenção da vista que desfrutava à época, uma autêntica bênção matinal, um privilégio para o olhar, concessão natural dos montes sobranceiros e da vegetação que os adornariam. Observar as carroças transportando legumes e vegetais a deslizar pelas pequenas estradas de cobalto, as azinhagas misteriosas, as saudações fraternas entre fraternos vizinhos… Tudo parece reviver. Assim, além de se sentir vivo o ambiente que pairava por aquilo que este espaço fora, a atmosfera própria de uma quinta que, mesmo modesta, prosperava, antes dos anos em que claramente fora negligenciada, sente-se o tempo em que as fronteiras da cidade ainda nem tocavam estes limites. Mesmo que tudo isso seja um devaneio poético, conseguido a derradeiro custo, pois certas assumpções nem sempre são prontamente verificáveis, a essência da principal matéria deste assunto pode ser sentida. Ela estava lá, ela sempre esteve lá – somente o elemento material transmuta a sua forma, funcionando também como uma espécie de receptáculo da mesma, renovando-se aquando do manifestar dos diversos ciclos do ciclo maior, o do eterno retorno.

Se preferirmos, regrediremos ainda mais neste exercício, evocando tempos ainda mais idos. Principalmente, e é exactamente isso que mais me apraz imaginar e sentir, o século que ainda nem o era, quando este horizonte não se preenchia de betão, quando a planície se adornava de vegetação já não idêntica a esta: o tempo em que os primeiros Homens miravam não estes pássaros que hoje eu miro, mas os seus antecessores, quem sabe se deslumbrados com a beleza da imagem, da mesma forma que ela, já tão gasta e sem motivo de surpresa, ainda me deslumbra a mim, como se a admirasse pela primeira vez. Tudo sob o testemunho, ou, se preferirmos a trama poética, a vigília deste mesmo céu azul que me cobre, deste mesmo sol que me ilumina. E tal evidência, leitor, por tão simples que possa parecer, é de momento algo que incrivelmente me fascina. Pois são estas as histórias que compõem os lugares, aqui ditas de forma muito geral, incidências que, mesmo diversas em tantos pontos de seu desenvolvimento, acabam por se tocar num ponto só: o da sua criação.

Miríades de assuntos, personagens, temas, causas e efeitos se poderão encontrar impressas na alma que reveste cada lugar, uma essência singular que para si reclama um igualmente peculiar aroma, o que confere a inexprimível sensação de que o tempo é, no fundo, uma mera passagem, e que tudo, entenda-se, passado, presente e futuro, se interliga em boa verdade. Tal constatação, meu caro, levam-me até onde desejei chegar, ao primordial, à primeira essência, à unidade, ao mais básico de todas as coisas – o elixir que preenche de forma leve e plena o mais vazio dos corações. Pois ele, sempre sedento, como bem sei que muitas vezes o meu se encontra, por breves instantes beberá da fonte da eternidade, e entenderá, por fim, se atento permanecer, que, tal como ela, também ele é eterno. Que conforto se poderá erguer contra esse?




Pedro Belo Clara. 




quinta-feira, 13 de junho de 2013

DAS AMIZADES E DA VIDA EM SI (*)


Em um outro trabalho de minha autoria, elaborado numa ocasião que não esta, escrevi, em jeito de conclusão ao que, à época, poeticamente expunha, que nada há de mais aprazível do que saborear, no presente, o mel que outrora, de forma tão deleitosa, nos foi dado a provar. Por outras palavras, se o leitor, por razões que obviamente desconheço, contrair preferência junto de uma metáfora distinta, poderei igualmente afirmar, se não abuso de sua paciência, que nada de mais satisfatório há do que encontrar, no hoje, o ouro descoberto no passado. E isto, é claro, se o seu gosto recair sobre esse metal precioso, alvo de tanto louvor e cobiça. Ambas, no fundo, constituem diferentes vias de cumprir o mesmo caminho, pois a intenção que as reveste é precisamente a mesma. Digo que «nada de mais aprazível» ou «de satisfatório» há, e assumo os riscos inerentes a essa escolha, contrariando as premissas do bom-senso. Ainda assim, afirmo que, qual súbita aparição que se anuncia, se houver, por ventura, alguma ocorrência capaz de em nós fomentar tamanhos agrados, em tudo idênticos aos anteriormente referidos, colocar-se-á, por certo, no mesmíssimo patamar daqueles agora me apronto para revelar. Repare, contudo, que não me socorri do auxílio das aspas ao transcrever as expressões, pois, como compreenderá, não desejo citar o que, então, escrevi. Apenas, por mera opção de autoria, me parafraseio. Pois esta crónica serve, agora, propósitos bem diferentes daqueles que sustentaram a génese do referido dizer, pelo que será preferível, por não ser este o seu berço original, diluir um pouco de sua essência pelas linhas do trabalho que agora componho, fundindo-a na estrutura que vai sendo erguida palavra a palavra.

Seja como for, e quase que recorro ao «passemos a coisas mais cruciais», o que veramente aqui importa, para dar continuidade prática ao que tem vindo a ser explanado, é que, tal como ontem, continuo a determinantemente defender cada linha do que então escrevi, cada letra da expressão a que dei vida literária e humano significado. Talvez, e eis a razão somatória, por tanto a constatar, no que à sua empírica aplicabilidade diz respeito, de sentido e efeitos, em cada ocorrência da vida que se desenrola diante de nossos olhares, a reavive a cada instante, a cada reencontro, a cada testemunho. No fundo, o que ela, a expressão, compreende? Quem se deu, por esta altura, a uma atenta reflexão sobre a mesma, certamente concluiu que existe uma magia peculiar no súbito despertar de elementos que no nosso passado abundaram, fazendo dele aquilo que foi e é. Não me refiro, nem me referirei, durante este texto, às memórias menos agradáveis que todos retemos com maior ou menor translucidez, pois essas ocupariam um outro espaço e exercício de escrita que hoje, neste espaço e exercício específico, não teriam lugar. Foquemo-nos, por isso, nas recordações que mais acarinhamos. Quando ressurgem da sua terra de neblina, entre brumas de olvido, vêm envoltas numa aura quase que mística e luminosa, como nobres ligações que são com algo que outrora vivemos e sentimos, invocando, assim, as memórias e os sentires que tanto fizeram as delícias dos nossos dias mais idos.

Um exemplo de tal sucedido, chamemos-lhe assim, por forma a evitar a aplicação da palavra “fenómeno”, pois esta quase que nos remete ao imaginário do sobrenatural, e, diga-se, não é essa, de todo, a intenção deste escritor, um exemplo de tal coisa, como ia dizendo, são os reencontros com os rostos de nosso passado. Uma vez mais, sublinho que em nada me refiro às memórias ou experiências que nos confiaram o seu doloroso legado; antes, àquele rosto amigável com quem partilhámos tanto viver. De certa forma, quando nos achamos perante tal acaso, feliz em todo o seu propósito, sentimos que o tempo não cravou o seu cunho em nós, tanto no amigo como na própria pessoa que com ele esbarra pelas curvas do caminho. É como se, em íntima essência, nunca tivéssemos envelhecido, ou, colocando de outra forma o caso, quem sabe se assim de modo mais delicado, como se nunca tivéssemos materialmente crescido, com tudo o que isso comporta. Não brilharão nossos olhos nesse momento de súbito contacto? A irrefutável prova de que as almas cantam, em uníssono, o júbilo que as uniu? Explodindo esse sentir numa miríade de cores, quando os corpos se abraçam fraternamente perante o sorriso ostentado pelos rostos? É nesse inestimável momento, quase que em sereno êxtase, que todas as memórias afloram, que todos os cheiros se recordam e as histórias se recontam. «Lembras-te daquela vez?» - é o começo mais vezes escolhido para encabeçar cada frase. Então, rolam os sucedidos passados, como lágrimas que alegremente se choram, como imagens dispostas por um rodopiante caleidoscópio: «Lembras-te daquela vez, do guarda-chuva?»; «Lembras-te daquela vez, daquele teste em que copiámos?»; «Lembras-te daquela vez, em que faltámos à aula?». E isto quanto não se convidam outras presenças, mesmo que momentaneamente distantes, para a conversa que, como um rio tranquilo, flui: «Lembras-te daquela vez, na casa do João?». E quanto viver assim não vive, apenas por ser, de novo, revivido…

Por certo que o estimado leitor, se agora mesmo se propusesse a vasculhar o seu precioso baú de memórias, encontraria alguns casos gémeos deste que lhe trago. Assim, é perfeitamente plausível afirmar, sem vestígio de pretensiosismo, que compreende aquilo que lhe falo, por precisamente possuir exemplos seus, oriundos de seu mundo, que comprovem tal discorrer. Eu confesso, meu caro, que por diversas ocasiões já pensei, ao reencontrar um velho amigo de infância, seja por obra de um acaso ou por intervenção directa, isto é, através de um encontro previamente agendado, que as únicas coisas que terão em nós cambiado, ao longo dos anos de silêncio, foram a voz, agora digna de tenor (ou, em derradeira e optimista hipótese, de dedicado barítono), e as barbas que finalmente adornam os rostos outrora imberbes. Pois, como antes referi, o temível Cronos, que já os sábios e avisados gregos respeitavam, não tem ofício capaz de interferir com a essência mais pura de cada coisa. Ainda que fosse capaz de engolir o próprio filho, não detém poder sobre essa valência. Envelhece a matéria, perdura o etéreo. Além disso, esse alguém que ainda nos é tão querido, o portador de uma vida que se desenvolveu de forma paralela à nossa, pelo menos até certo ponto da existência, é igualmente o sobejo de tantas histórias capazes de voltarem a arrancar o mais jovial dos sorrisos, a viva evidência de um tempo que se consumiu em aparência. É indescritível a sensação que nos conquista, quando voltamos a desfrutar da companhia de quem tanto nos fez rir… E vice-versa, claro, como será óbvio e suposto de acontecer.

No suceder de tanto sucedido, ignore-se a redundância, por bonanças e tempestades, bem comuns ao ciclo que a própria vida é, a mesma oferece-nos ainda, além do recordar, e entre muitos outros mais, este imenso prazer: a oportunidade de crescer ao lado de quem tanto nos diz. As conversas hipotéticas de há pouco, são uma clara consequência da verificação desta hipótese, pois só poderiam ocorrer, numa de suas máximas expressões, entre dois entes que tanto partilharam por longos períodos de suas vidas, como autênticos, e bem fieis, companheiros de viagem e de estrada. Se voltarmos a evocar os exemplos pessoais, constataremos: começamos crianças, jogando com bolas de papel amassado, revestidas por fita-cola forte e competente em seu trabalho de unir e colar; tornamo-nos adolescente, e a curiosidade pelos femininos aromas, tão misteriosos e irresistíveis, desperta; depois, o tempo da faculdade e de outros amigos e conhecimentos, sem que isso signifique o olvidar de nossas raízes. Aventuras e desventuras, copos erguidos e batinas amarrotadas, exames e mais exames, formatura, emprego aqui e acolá, namoradas mais a sério, uma apenas ou um leque enorme das mesmas, cada qual na sua devida vez, é claro, que nestes assuntos não é sensato alimentar confusões, esposa, casa e carro a preceito… Filhos? Por certo… Netos? Porque se negaria a sua vinda? Até nascer o dia em que, juntos, evoquem o tempo em tudo começou. Aí, a jornada parecerá infinda. Afinal, a frondosa árvore, hoje tão ampla e poderosa, sempre se surpreende quando relembra que proveio de uma frágil semente.

É claro que muitas outras presenças se extraviam com o contar dos anos, lentos à luz das suas percepções de fragmentos de tempo, mas sempre céleres para aqueles que vivem através dos mesmos, esvaindo-se das futuras histórias da existência que se desenvolve e prospera. E é natural que assim seja. A própria ordem da vida compõe-se de coisas tais, de rumos que se traduzem em escolhas. Não haverá “bem” ou “mal” aqui, somente opção passível de ser respeitada – ainda que não seja compreendida ou aceite na sua globalidade. Mas tais figuras, e elas próprias mais do que ninguém, saberão o que será melhor para si e para suas histórias pessoais, pelo que é perfeitamente normal que sigam os ventos que souberem ser mais propícios à sua navegação. Afinal, de certa forma, todos possuímos um destino para esta viagem, um porto onde desejamos atracar, ainda que a neblina o oculte ou o almirante, confuso, não saiba simplesmente onde o encontrar. Mesmo assim, a dificuldade não deve necessariamente albergar a desistência. Em todo o caso, nem todas as presenças, de forma física, permanecem junto a nós, pelas mais diversas razões. Outros até acabam, quando menos esperam, engolidos pelo mar que desbravavam… Como tudo o que começa, tudo detém igualmente o seu fim – que apenas dá lugar a um outro recomeço.

Perto ou longe, seja pelo físico ou pelo espírito, todas essas incidências, todas essas histórias e rostos, quando passados, tecem o manto daquilo que fomos num tempo que não mais subsiste, a não ser dentro de cada um de nós. É por isso que o reencontro de alguém que pertence a esse cenário é como o retornar a uma casa ou a um lugar onde poderemos dizer que fomos, efectivamente, felizes, pois trazem consigo, entre laivos de recordações, o aroma de tantos momentos vividos e compartilhados, pelo que o sorriso, a dois, é absolutamente garantido. Será a prova de que esse «mel» que foi saboreado não azedou, mas se fermentou e transmutou em algo de mais depurado, como a sublime substância que o compôs. Pois, pelos anos de intervalo, contar-se-ão mais histórias ainda, mais vivência e mais experiência, parcelas, apenas, a somar numa colorida operação cujo resultado a cada dia se colhe, sim, mas de maior expressão se sentirá quando, num futuro não evitável, de novo forem evocadas. Precisamente aí se fará o julgamento final, íntimo e pessoal, quando as barbas se esbranquiçarem, os corpos se arquearem e, quem sabe, os sorrisos se compuserem por uma dentição bem mais escassa… Mas que importância terão, nessa era de recordação constante, os meros (e naturais) efeitos da decrepitude? Os corações estarão cheios de vida, como cálices que de amor transbordam… Não mais, talvez, recordará a mente, às voltas com os nefastos efeitos das traquinices de um alemão peculiar, um tal de Alzh qualquer coisa, mas as almas, ainda que encarceradas na material opressão da idade avançada, refulgirão, internamente, em arco-íris de encanto. Pois que conforto maior poderá advir da certeza íntima de que a existência em causa foi vivida em pleno? Que a personagem cumpriu escrupulosamente o papel que lhe havia sido escrito? Que o conquistador alcançou todas as metas a que se propusera? Sereno se queda o sol por sobre a mais pacificada das consciências.



Pedro Belo Clara.






(*) Nota do autor: Serve esta simples crónica como dedicatória sóbria e justa, por evocar temas em tudo concordantes com a intenção que motiva a mesma, aos meus mais veros e velhos amigos, que desde um outrora distante me acompanham até aos dias que hoje correm por nós, com maior ou menor influência de contacto, com mais ou menos ausências de registo (a vida sempre detém a mais certa das razões). Em todo o caso, o sentimento de estima e de respeito nunca se altera – antes, cresce e solidifica-se. A vós, então, caríssimos companheiros, cujos nomes me escusarei a citar por ser obviamente vão esse acto de mera nomeação, ou não soubessem vós, amigos, ou melhor, Amigos, agora sim, com a mais exacta das precisões, a quem me refiro eu, entre saudades, louvores e, acreditem, gratidão. 






quinta-feira, 6 de junho de 2013

PECULIARIDADES


O peculiar pode, efectivamente, atingir grandes níveis de significância e de profundidade. Estes, por sua vez, em fase, diga-se, posterior, acabam por se assumir através dos moldes em que se constroem os exemplos, algo que, entre muitas outras coisas, é comummente tido como um portador de mudança, pois é passível de ser seguido, de ser uma referência a ter em séria consideração. Compreende-se, então, e permita-se o melhor esclarecimento, como um gesto ou acção comportamental capaz de quebrar padrões pré-estabelecidos, revelando algo de novo, em certa forma mais sincero, depurado e, por isso mesmo, verdadeiro. Tais premissas auxiliam o despertar do olhar ensonado para outras realidades, até então completamente encobertas. Assim, a aprendizagem torna-se possível para todo aquele que a ela se possa disponibilizar. A ideia é simples, tal como a concretização da mesma – assim convirjam e se assumam os elementos necessários a tal.

Voltei a constatar o discorrer acima explanado, qual teoria feita prática, máximo símbolo empírico, de uma forma deveras curiosa e divertida. Em suma, por via absolutamente inesperada, leve e descontraída. Certo dia, então, durante um bastante agradável almoço, enriquecido com a companhia de um familiar que muito estimo, passa a porta de um determinado restaurante lisboeta uma personagem plena de aparentes contradições. Ou, por outras palavras, um exemplar bem digno do adjectivo “singular”. Embora as confirmações viessem somente depois, diversos aspectos, bem presentes em tal figura, como linhas coloridas, deveras vincadas, eram desde logo evidentes e instigavam o interesse e a curiosidade no mais distraído dos espectadores. Permita-me o leitor que sublinhe o seguinte: tais sensações em nada conduziram a julgamentos céleres, tão lamentavelmente usuais, tampouco a rotulagens desprezíveis ou ignóbeis condenações. Nada disso. Ninguém se precipitou na formulação de juízos. Pois os rostos, se tal se verificasse, por certo que o denunciariam. Subsistia antes uma certa expectativa, um quase certeza de que qualquer coisa de renovado, fresco e cativante poderia irromper daquele solo. Talvez da macieira que ela era brotassem limões… Mas quem o poderia saber? Assim, as testemunhas, parcas, diga-se, se abriram à melhor hipótese do porvir, cientes, sem que talvez o soubessem, de que algo de singular iria certamente imergir de tal personagem.

Falo, é justo que agora o revele, de uma simpática (se a minha analítica percepção não se equivocou) senhora de meia-idade, de tez e feições asiáticas, pequena e esguia o quanto baste, como habitualmente se querem os representantes dessa briosa estirpe oriental. Tanto poderia possuir origens chinesas como macaenses... Eis os factos mais prováveis. Falava o português, é certo, mas com um ligeiro sotaque, já algo diluído. Ainda assim, era notório. Mas isso não retira a legitimidade de pensar, ou até de concluir, que a sua origem a remetia para aquela antiga colónia lusitana. Ou, graças a esse incremento das gentes do mandarim em nosso país, talvez fosse mesmo um de seus veneráveis membros que aqui se encontra erradicado, um qualquer comerciante, ou mãe de um, tentando prosperar, dentro de suas capacidades, as linhas de seu negócio, ainda que seja a sorte a ditar, e não em pequena escala, as regras desse ofício. Mas como tais aspectos, ou abordagens secundárias, não comportam qualquer distinção digna de registo, sendo meras impressões primárias e características superficiais, deixemo-los de parte.

Na verdade, o que sobressaía em tal persona eram os enormes headphones que a dita senhora, o objecto desta crónica, levava no topo de sua cabeça, perfeitamente acomodados, tombando por seus ouvidos, de forma a cobri-los. Ou seja, encontravam-se devidamente colocados e prontos a funcionar, como ordenam as leis da sua boa utilização, escorrendo o longo fio até ao orifício de um pequeno rádio de mão, o seu natural destino. Bem sei o que poderá pensar, caro leitor... Um rádio de mão? Podendo ser um discman, um leitor de mp3 ou mp4... Um IPhone, até! (e aqui se excluiu a hipótese, remota, de ter a terra do sol nascente como berço, tendo em conta a necessidade vanguardista de consumo tecnológico que assola, se não mesmo contagia, o dito povo – esclareça-se: o japonês). Mas, contrariando as expectativas mais modernas, era um rádio de mão que segurava. Até nisso era peculiar, a senhora. Contudo, que não se considere o dito instrumento de som, os headphones, claro, banal ou corriqueiro... Muito pelo contrário. Contrastando com a simplicidade do pequeno rádio, estes apresentavam, em cada face do mesmo, naquelas largas “rodas” (permita-se a caracterização) que cobriam cada uma das orelhas, um fundo de rosa berrante, adornado, a negro, pelo desconcertante timbre do mais brioso dos piratas: tíbias cruzadas e uma caveira de meter respeito a muito boa gente. Que interessante é ver uma senhora de meia-idade, assumida sem complexos, ostentando um adereço bem típico de adolescentes asiáticos... Tê-los-á retirado a uma hipotética filha? Num regime de empréstimo ou compartilha de bens, previsto numa qualquer cláusula, por certo obscura, do íntimo contrato que une, pela lei dos Homens e pela lei dos Deuses, coisas tão próximas e, ainda assim, tão distantes, como são a progenitora e sua cria? Isso, caro leitor, já o escriba desta crónica não sabe... Nem detém pistas que o possam elucidar. A si e a ele próprio, está claro. Mas como seria pura especulação o que mais se visse a acrescentar a este tópico, e, como tal, irrelevante para o relato em causa, fiquemo-nos, no que toca a este assunto, definitivamente por aqui.

Seja como for, aquela derradeira tentativa de agarrar uma já ida juventude parecia ser por demais clara e óbvia, ainda que a idade se assuma como um tema que suporta o seu quê de subjectividade. Mas os contraste de tal figura, por sua vez, revelaram-se e adensaram-se ainda mais quando se anunciou um simpático carrinho de compras que a nossa estimada amiga trazia de arrasto, aqueles bem conhecidos sacos de tecido que evoca um padrão nitidamente escocês, de rodas munidos, e que, num outrora não muito distante, acompanhavam a mais castiça das senhoras portuguesas nas suas idas aos mercados e praças. Assim se evidenciaram os dois traços distintos que se cruzavam num só ponto, ou, se preferirmos, dois contrários, não necessariamente antagónicos, que coabitavam numa só figura: a linha portuguesa e a asiática e a expressão da inconsciente juventude e da idade madura. Dois símbolos tão díspares que, curiosamente, ali encontravam a sua estranha harmonia.

Essa ideia perdurou um pouco mais pelas mentes sondadoras lá presentes e alcançou o seu zénite quando, já acomodada em sua mesa, diante de um refrigerante de limão, viu chegar o seu pedido – um magnífico e amplamente bem servido cozido à portuguesa. Colar esta imagem tão lusitana a essa outra que retrata a figura de alguém com cariz marcadamente oriental é um facto causador, por certo, de uma estranheza peculiar, mas apenas por se revestir de originalidade. Seria o equivalente, nestes termos, a testemunhar o senhor José Fernandes, dono de umas suíças capazes de despoletar a mais figadal das invejas em seus semelhantes, um garboso nativo de Mondim de Basto, imaginemos, e resignado resistente das pungentes agruras da arte da lavoura, a deliciar-se com os delicados sabores e contrastes de um belo chop-suey! Inevitável, portanto, não questionar se, efectivamente, os pólos não se terão invertido... Mas talvez seja esse o significado prático de ser-se global, de viver numa era marcadamente globalizada, com povos e culturas mais próximos e conscientes uns dos outros. Assim, sobejam casos como este, deveras intrigantes e curiosos, admita-se, mas, ao mesmo tempo, verdadeiramente refrescantes.

Contudo, as surpresas e, claro está, as peculiaridades que, inconscientemente, a nossa amiga tinha reservado para o seu atento e, ainda assim, atónito público, não se ficaram por aqui. A meio de sua refeição, entre profundas degustações de exemplares gastronómicos de grande brio, e perdoe-me o leitor por repetir o adjectivo, componentes de tão típico prato, desde o bem composto chouriço de carne ao simples, mas bastante nutritivo, nabo, de uma forma absolutamente natural e inocente os lábios da referida personagem se entreabriram, não para revelar os despojos da degustação, entenda-se, mas para entoar uma absurdamente desafinada nota musical. Sim, caro leitor, era verdade: os headphones estiveram, de facto, ligados durante todo esse tempo, sem que ninguém disso se apercebesse... Apesar de terem continuado sempre no mesmo local de uso.

Ali mesmo, tivemos, eu e os restantes presentes, a nossa redenção... Em pleno restaurante, a meio de sua refeição, uma tão singular senhora a acompanhar, sem embaraços, as linhas de uma qualquer canção que somente ela poderia escutar... Imagina o cenário, amigo leitor? A nossa heroína a cantar, no meio de mesas já quase vazias, palavras soltas de uma qualquer melodia? Sem esquecer, claro, o chouriço de carne que fazia a delícia dos seus apetites, o qual mordiscava sempre que a canção lhe dava descanso. Contrapor-se-á: foi um lapso, uma aceitável distracção... Daquelas coisas que acontecem apenas por uma vez, pois de pronto se envergonham os seus embaraçados autores, secretamente desejando que mais ninguém tenha visto ou escutado a origem do seu vexame. E repetem esse mesmo desejo vezes sem conta, até que nele, iludidos, piamente acreditem, de forma a finalmente expiarem toda a vergonha que haviam retido. Mas desengane-se o estimado leitor se assim considerou o caso. Pois, por mais incrível que pudesse parecer, sem que ninguém o esperasse, aturdidas que estavam as testemunhas por tamanha surpresa musical, logo se libertou mais um cantar arrastado. Sim, o acto melódico teve a sua continuidade. Ainda que, a espaços, apenas parecesse ser o arranhar constante de britânicas palavras que se soltavam, sem nexo ou ligação. Um «together» aqui e um «forever» acolá, se me faço entender... Escusado será dizer que o espanto era geral. Perante a medíocre reprodução e não só, pois a irrisória ocorrência tinha tanto de cómica como de singular. Não demorou muito mais até que tal implodisse num deveras saudável, e por demais expectável, desfecho: o riso, a forças contido. Embora ninguém, acredito, se sentisse profundamente incomodado com tamanha cantoria. Não só as horas eram já um pouco tardias, o que desde logo não convidava muitos transeuntes a parar para uma refeição, daí o facto de os poucos presentes estarem já nos derradeiros instantes de suas degustações, senão as estivessem mesmo já findadas por completo, como ainda o canto do asiático rouxinol surgia intervalado (já antes o referi: boca ocupada é incapaz de cantar) e não era propriamente ruidoso. Apenas fomentava, como se percebe, a boa disposição e o divertimento.

Entre os clientes já conhecidos da casa, o dono e respectivo funcionário, eu e a companhia que na ocasião me assistia, os sorrisos que nos assomavam os rostos eram leves e inócuos.  Não sendo, assim, emitidos em tom jocoso, entenda-se isso; antes num clima de companheirismo e cumplicidade entre estranhos, sadio e jovial. Não ríamos, é claro, de tal senhora; ríamos somente com ela – o que são coisas bem diferentes, díspares vertentes de um só comportamento. Ou seja: o acto, esse sim, é idêntico, mas a intenção que o suporta é bem distinta, inócua como os sorrisos que atrás caracterizei. Perguntará, pleno de legitimidade, o atento leitor: mas a senhora não se apercebia de seus trinados? Como reagia ela a isso e, estando consciente, aos sentimentos que provocava em sua audiência? Na verdade, e, permita-me o leitor que o admita, eis o principal factor que fomentou todo este relato, toda esta já longa crónica, a dita senhora, por esta altura já nossa conhecida, quase tão íntima quanto os bons vizinhos prometem ser, revelava uma postura sóbria e descontraída, completamente indiferente aos ecos que a ladeavam, fruto de seus moderados gritos. Alheia a tudo e a todos (talvez essa alienação, quiçá natural, justificasse o seu comportamento), permanecia focada em seu mundo de cantigas e de cozido à portuguesa, com ocasionais espreitadelas, fruto de qualquer súbita curiosidade, ao noticiário que se desenrolava bem à sua frente. Não me questione o leitor se o fazia consciente ou inconscientemente, pois já antes prometi não divagar ao sabor de dúbias especulações… Apenas relato o que vi e senti. E aquilo que então presenciei foi isso mesmo: o alheamento a todo e qualquer sorriso provocado por suas árias arrancadas em espontânea desgarrada, a singularidade que a assistia e que era, simultaneamente, a sua mais íntima beleza. Pois tais aspectos, tão naturais e bravios como são, remetem a sua origem para coisas bem profundas e sustentadas, comportando muito mais do que, em primeira e, como tal, inexperiente análise, se poderia pensar.

Creio que, agora que me apronto para findar, a todos os membros daquela improvisada e surpresa plateia, a soprano que os encantou concedeu, da mesma inesperada forma, uma valiosa lição de vivência: a imunidade ao julgamento alheio. Quantos de nós, admitamos, pelos mais distintos motivos, não renunciariam de seus modos e convicções perante o implacável temor do parecer de terceiros? A verdade é que, em silêncio, ninguém aprecia o lugar do réu, os seus pensamentos habituais e, principalmente, os seus densos sentires. Pois todos tememos o julgamento e as luzes da ribalta que sobre nós recairão em caso de inevitável condenação, tornando-nos, logo à partida, objecto de desprezo, gozo ou falatório. A diferença mora naqueles que, apesar disso, não capitulam de si próprios, isto é, não abdicam de ser aquilo que naturalmente são, apenas como forma de evitar tais terríveis rumos. Mas tal expressão, infelizmente, não constitui a maioria. Já a senhora de que falamos, por sua vez, encontrava-se apenas a ser aquilo que ela era, afirmando a sua natureza sem a renegar, tampouco recuando em seus intentos perante o olhar indagador do semelhante mais curioso. Mediante a comum realidade, isso sempre é digno de louvor. Provando, assim, que na maior das loucuras, e também das excentricidades, reside uma indomável rebeldia, uma surpreendente sanidade, comportando, ambas, impactos deveras destabilizadores (num necessariamente bom sentido), capazes de agitar mentalidades e de quebrar, ou, pelo menos, fender, padrões pré-estabelecidos.

Em derradeira análise, está claro que foi precisamente isso que tal personagem realizou. Não por cantar em bandeiras quase despregadas os temas que escutava, obviamente, mas por se focar em sua felicidade, não incomodando os demais, e sendo aquilo que exactamente ela era – e não o que outros desejariam que ela fosse. Em máxima conclusão, temos aqui a suprema expressão e afirmação de uma natureza ou personalidade. E, assim, ressalvou, fortificou e a todos apresentou, enobrecida, o exemplo que por seu registo comportamental se formou. Afinal, já não será estranho ou complexo de entender que o peculiar pode, efectivamente, atingir grandes níveis de significância e de profundidade. Basta, para isso, deter a coragem necessária para o assumir e o elevar à clara luz do sol da revelação.



Pedro Belo Clara.