segunda-feira, 18 de maio de 2020

MEDITAÇÕES LX



Vem agora para este lugar
onde harpas, flautas e cítaras
tecem melodias sem que mão
alguma lhes toque;

vem agora para este lugar
onde o tempo não subsiste,
onde nada foi nem será;

vem agora para este lugar
onde todas as aparições
são vistas à luz invicta
dum olhar claro e limpo;

vem agora para este lugar
onde a separação é entendida
como a primeira mentira;

vem agora para este lugar
além de luz e sombra,
sem forma ou cor, onde todo
o movimento acontece
no seio dum supremo repouso.

Vem agora escutar as harpas,
as flautas e as cítaras,
toma a esta mesa o teu devido lugar
– por demasiado tempo vagueaste
no deserto de ti mesmo.

Vem agora, irmão meu,
entra no silêncio onde comungam
os filhos dum só pai,
os filhos que se descobrem
no próprio pai.










(Fonte: universal.org)


quarta-feira, 29 de abril de 2020

MEDITAÇÕES LIX



A primeira forma de ingratidão:
o desejo.

Só anseia quem em carência vive,
só deseja quem pobre se sente.
À matéria estende a mão e a enlaça
a experiência, que fuga não permite,
mas experimentar somente significa
o desfrutar da feliz ocasião.

Prova e saboreia sem apego.
Quem se apega anseia possuir,
e é pela posse que admite
a pobreza em que julga viver.

Tudo é vazio em si e deveras precioso
para ser desperdiçado em fantasias.
Não acalentes culpas, porém
– até os de passada mais tranquila
tropeçarão enquanto o coração
permitir que nuvens o cubram.

Chegará a hora em que tudo se clareará,
como em noite de lua roliça:

todo o desejo, toda a partilha imposta,
toda a fala puxada em esforço
somente fora uma desesperada fuga
à quietude mais profunda.

Quando te reconheceres no que és,
mais fundo do que julgavas ser,
saberás a fuga tola: ninguém se aparta
da realidade de si mesmo.










(Imagem de: positivelife.ie)


quarta-feira, 15 de abril de 2020

MEDITAÇÕES LVIII



A quietude é uma água curiosa:
presente mesmo antes
da primeira batida,
corre por vidas inteiras
sem que mão alguma
se digne a levá-la aos lábios.

Corre por anos sem fim indiferente,
mas ansiosa por acolher o filho
que se extraviou, só em horas
de funda solidão o seu secreto nome
fazendo escutar – e tem a música
dos oceanos imensos, o sabor
das flores da montanha, a graça
da luz sobre o orvalho da manhã.

Por qualquer estranha benesse,
uma gota, uma só gota
em negro instante subitamente
vem repousar em teus lábios.
O gosto, tão estranho que parece
te arrancar ao mundo conhecido,
calcorreia o seu caminho em ti,
fundo e mais fundo, caminhando
até fincar raiz e lançar aos céus
um pequeno rebento
de estranha, insondável coisa.

Então terá sido tarde demais:
rios nascem nos oceanos,
árvores crescem das nuvens,
pássaros caminham sobre a terra.

Por quantos anos andaste sedento
sem o suspeitar? Alegre-se o coração,
pois lembra que nunca abandonou
a casa que em silêncio procurava.







(Foto de: umairhaque.com)