O dia amanhecera plácido e gélido. Após
despertar, dirigi-me à janela do quarto para saborear um pouco o álgido ar
daquela manhã de tímido sol. Tudo imergia, ainda, numa imensa e invisível onda
de tranquilidade que descia dos montes, circundava as casas e naquela pequena
varanda encontrava a sua praia ideal para morrer a meus pés. O coração de
súbito acelerou-se quando a mente, retornando a si, desfez o resquício do sonho
e ressuscitou a inegável realidade. Afinal, era chegado o dia onde todos os
compromissos se cumpririam.
Não
me recordo se a noite fora profícua em descanso ou embalada em vagas de súbitas
agitações… Apenas que, decidido, focava-me no objectivo que tinha em mente. E a
partir daí não pensara em mais nada. O dia tinha nascido. Era chegada a hora. Tão
simples quanto isso.
Após
saciar a parca fome e trocar com as companhias de então dois dedos de conversa,
entre sumos de laranja, pequenos pães e bolos e cafés fumegantes, retornei ao
quarto para finalizar os retoques na indumentária e reunir o material que o
evento mais requereria. Estando tudo pronto e na devida ordem, despedi-me de
quem de direito e saí do hotel rumo ao destino mais aguardado. Uma vez que na
véspera lá tinha estado, não haveria hipótese de engano. Felizmente.
O
vento era gélido, não sobravam dúvidas… Mas o frio tipicamente seco daquele
local eram bastante suportável quando comparado com o frio húmido que habitualmente
paira nessa altura do ano pela cidade que me viu nascer. Em suma, o Outono de
lá assemelhava-se ao Inverno de Lisboa, extraindo apenas esse húmido factor que
tanta estrutura óssea danifica. Nada de grave, portanto. Creio que os
termómetros marcariam àquela hora uns condignos cinco graus centígrados, mas para
a minha percepção não estariam menos de doze graus. Por aqui se vê o quão se
habitua um organismo às temperaturas que reinam pelo seu ambiente nativo.
O
vento, contudo, auxiliou-me a conservar a mente vazia, despojada de pensamentos
menos desejáveis ou de apertos absolutamente injustificáveis. Cheguei ao portão
principal da escola, identifiquei-me e, após concedida a autorização de
entrada, dirigi-me à biblioteca onde se desenrolaria o evento. Pelos
corredores, caminhando assim tão à-vontade, quase que passava despercebido por
entre funcionários e alunos. Um novo professor, quem sabe, que se aprontava
para se estrear naquele estabelecimento de ensino?
Munido
de alguns exemplares do meu último livro, à data, publicado, entrei na
biblioteca e, vendo os arranjos devidamente concretizados, atravessei a fila de
cadeiras ainda vazias para me instalar no lugar que seria meu por efémero
direito. É claro que o evento não envolveria somente os temas que anteriormente
explanei, mas igualmente a oportunidade de vender, a um preço bastante
acessível, alguns exemplares da obra que comigo havia trazido (“Nova Era”, um
livro de poesia editado em Dezembro de 2011). As vendas foram bastante
razoáveis, devo dizê-lo, embora nunca tivesse alimentado a ilusão de que
enriqueceria sobejamente com os lucros aí angariados. Mas importante que tudo
isso foi a oportunidade dada aos alunos, professores e funcionários de lerem a
obra e meditar sobre a sua universal mensagem. Essa sempre é a minha máxima
prioridade.
Enquanto
aguardava a chegada dos alunos e da professora de português com quem havia
previamente combinado o alinhamento das três sessões, e que do mesmo modo seria
a minha companhia de mesa durante todo o evento, desfrutei de uma agradável
conversa com a funcionária da biblioteca. Enfim, assuntos banais que somente
nos auxiliam a descontrair e a mergulhar, com o devido afinco, no novo ambiente
em que nos encontramos. Aqueles minutos, assim, passaram graças à troca de
impressões sobre o estado do tempo, o meu conhecimento sobre a vila e a própria
região e até sobre as origens ancestrais da família. O facto de descender de
beirões, por parte paterna, e devido à grande proximidade entre as duas zonas
do país, sempre acalenta uma conversa que, de outro modo, poderia facilmente
esmorecer.
As
cortesias foram sendo trocadas de forma bastante genuína e agradável até a
referida professora chegar. Cumprimentámo-nos, falámos sobre pertinentes
assuntos que mereciam uma derradeira abordagem e, por fim, tomámos o devido
lugar na mesa do evento. Os alunos estavam quase a chegar.
Com
uma afluência bastante regular, de pronto se ocuparam todas as cadeiras. Alguns
funcionários, inclusive, tiveram de permanecer de pé. Pelo menos, durante a
primeira das três sessões que o evento comportaria. As introduções foram feitas
e as apresentações concretizadas, até chegar o momento em que me foi dada a
palavra. Assim, comecei por relatar a origem da minha história nas letras,
bastante curta ainda, na esperança de que em algum momento, fosse de que forma
fosse, certas palavras inspirassem a jovem audiência ou, em derradeira
instância, os instigasse a reflectir sobre questões veramente importantes.
Acima de tudo, optei por ser fluido… Como se se tratasse de uma conversa entre
amigos. Que outra forma haverá de manifestar uma sincera acessibilidade?
Três
turmas diferentes escutaram as palavras que naquele dia proferi. Contando com a
indispensável pausa para almoço e café, o evento terá encerrado, oficialmente,
por volta das três horas e meia da tarde. Ao longo das horas anteriores contaram-se
muitos sorrisos, autógrafos, fotografias e momentos de boa disposição e
conversa. No período de almoço, inclusive, onde tive o privilégio de partilhar
a refeição com a professora de português anteriormente citada em plena cantina
escolar. Sinceramente, é nesse meio que prefiro estar: entre as pessoas.
Principalmente, e aplicando a fórmula ao caso em questão, no meio daquelas que
me vieram ver e ouvir.
Nada tenho contra as
supostas elites, mas o afastamento social que por norma é seu apanágio
contraria a minha natureza. A ideia de quem me convidou, soube depois, consistiria
em realizar o almoço num restaurante da zona, hipótese que igualmente aceitaria
com o maior dos prazeres. Mas a forma como o caso se desenrolou acabou por ser
ainda melhor: almoço na cantina entre os alunos e no meio dos alunos. Sem sequer
registar um esboço de hesitação em pegar no meu próprio tabuleiro, servir-me
convenientemente e arrumá-lo de pronto, quando findou a refeição. A ideia
extravasa completamente a tendência (ou bom-senso) de ser romano em Roma; prende-se
antes com uma questão de atitude, de abertura e de aceitação para com o meio
envolvente.
A imagem que se
poderá reter é a de um político que decide almoçar com alguns representantes do
povo que governa, partilhando as suas instalações e o seu meio de convivência.
Digo isto apenas, é claro, por motivos comparativos, com o intuito de
esclarecer o leitor sobre os sentimentos então vividos. Não detenho ambições
políticas, nem nunca as tive, mas, se as possuísse, pode o leitor crer que
seria alguém bastante próximo da população pelos motivos anteriormente
referidos. A íntima natureza que me assiste não permite que seja de um outro
modo.
Creio que uma das
mais eficazes virtudes que naquele dia decidi colocar em prática foi a de não
criar qualquer tipo de expectativa. Afinal, como numa outra ocasião tive a
oportunidade de escrever, «só se desilude aquele que se ilude». Portanto, sem
expectativa pré-concebida, seria impossível acalentar ilusões vítreas. Permiti-me
simplesmente a ir ao encontro do que me esperava de braços bem abertos. Apenas
com um objectivo em mente e despojado de iludidas ambições, terminei o dia de
coração cheio.
Ainda hoje esboço um
sorriso ao recordar certos episódios vividos naquele dia de Novembro: as
pertinentes perguntas de alguns alunos menos tímidos, o clima de amizade que
senti em cada recanto da escola, as conversas à hora do almoço com a professora
que me recebeu, o café saboreado na belíssima instalação termal da vila, o
encontro com o director e demais professores e funcionários, entre muitos,
muitos outros exemplos. Uma das maiores gratidões que cultivei e que comigo
trouxe, no regresso, foi a forma aberta e veramente simpática com que fui
recebido. Por todos, direi: alunos, funcionários, professores e director. Muito
além dos agradáveis momentos de venda de livros, das fotografias que os alunos
quiseram tirar comigo, os cartazes afixados com o meu nome e rosto ou o
magnífico cabaz que a direcção me ofereceu no final do dia (o aveludado vinho que
o compunha regou, inclusive, a minha ceia de Natal), permaneceu o sorriso das
pessoas com quem me cruzei e, principalmente, o agrado dos alunos com a minha
simples presença em sua escola. Eu, sendo um completo desconhecido naquelas
paragens, senti-me, e muito humildemente o digo, como uma autêntica rock star.
Poderei ter pensado
que me depararia com os orgulhosos descendentes dessa tão nobre e ilustre
estirpe lusitana: os herdeiros de Viriato. Gentes de rostos sóbrios e agrestes,
com olhares de fino brilho lembrando a sua excelsa origem… Porque não? Mas
muito me equivocaria… Encontrei jovens, apenas jovens; tão idênticos, em sonhos
e esperanças, àquele que não há muitos anos atrás eu próprio fora.
Ainda que tenha
tentado manter-me, durante o desenrolar das agradáveis sessões que partilhámos,
num patamar onde pudesse ser, com a máxima clareza, compreendido, na verdade
poucas coisas distinguiram a audiência do orador… À parte, apenas, o facto de
terem nascido e crescido em zonas distintas do país, com um leve contraste
urbano/rural a separar as naturais incidências da juventude. Mas tal aspecto
remete ao meio exterior, não à essência. E dentro desse tema, eu o senti,
compreendíamos todos o mesmo alfabeto.
A história que
sombreia a existência individual, que ajuda a explicar um pouco aquilo que hoje
ela é, apresenta-se como um factor diferencial e único ao mesmo tempo. Cada
indivíduo detém o seu próprio rumo, a sua própria história. Naturalmente. Por
isso, anuo: cada um de nós era um filho de múltiplas causas e escreveu
histórias diferentes ao longo do percurso pessoal, ainda que estas se possam
unir em determinados pontos. No próprio caminho existencial, apenas por em
idade ser mais velho que a audiência, sigo eu na dianteira. Mas tal facto não
deverá constituir um factor diferencial, um motivo de apartamento ou
relativização. Pelo contrário: é uma séria responsabilidade. Muito mais nos
uniu do que certamente nos separou.
Não me recordo já do
exacto modo como terminei cada palestra ou como daquele amigável ambiente me
despedi. As palavras tendem a oxidar com o tempo, e só subsistem, com maior ou
menor desvio, enquanto forem recordadas. Pouco importa, contudo, quando sobeja
o principal: o sentimento experimentado.
Na manhã seguinte,
com apenas dois graus de temperatura, aprontava-me para a partida com um
intenso desejo de retorno. Ainda não tinha abandonado a vila e já elaborava
planos para voltar. Assim cogitava, enquanto me divertia a assistir ao jovem
casal estrangeiro, provavelmente inglês, que raspava o gelo matinal cravado no
vidro do seu carro alugado. De facto, pela tipicidade do local, coisas bem
típicas e singulares são passíveis de acontecer – o que apenas incrementa a
fineza do perfume que tão bem caracteriza aquelas paragens.
Nesta crónica que
assino, e que agora se irá encerrar, apenas poderei sublinhar o sentimento de
gratidão que efervesceu como resultado de toda aquela experiência. Sei que me
repito, mas é justo que o faça. A felicidade que aí colhi deve-se, em grande
parte, a esse aprazível sentir. Foi um gosto imenso provar o etéreo abraço de
tais gentes.
Terei eu primado,
afinal, pela diferença? Concretizado um positivo impacto junto de algum aluno?
Não o sei. Provavelmente, apenas lhes proporcionei um óptimo tempo de descontracção
ou uma sempre apetecível fuga às aulas vigentes. Isto eu sei: dei o melhor que
tinha em mim, em cada sessão me revelando o mais aberto e acessível que sei
ser. Também não sei se isso, junto do próximo, terá bastado, mas a minha
consciência vive tranquila e em paz por saber que conseguiu alcançar o seu
íntimo propósito.
Talvez um dia mais
tarde um daqueles alunos me reencontre num qualquer lugar e diga de sua
justiça. Talvez muitos até já me tenham esquecido, mas… o que importa isso
afinal? A semente foi plantada. Basta aguardar o crescimento da árvore. Recorrendo
às sábias palavras de um famoso ditado chinês, embaralhando-as, sei que ofereci
todas as rosas que tinha para dar. Nas mãos que as concederam, as minhas, habita
a essência do seu delicado perfume. E durante largos anos aí perdurará. Disso
eu estou certo.
Pedro Belo
Clara.
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