terça-feira, 17 de dezembro de 2013

RETALHOS DA SAGA DE UM ESCRITOR (PARTE I)


          Ao passar, num repente, os meus olhos pelo pequeno calendário da secretária do escritório, espanto-me com a crua evidência que me instiga a meditar na inevitável passagem do tempo.
É deveras espantoso constatar, conscientemente, o término de um ano completo. Especialmente quando as recordações do que então se experiênciou ainda permanecem tão vibrantes quanto o instante em que foram vividas. Ou a qualidade da memória é, de facto, extraordinária (ao ser capaz de reproduzir gravuras tão fidedignas) ou o próprio tempo escapa-se célere demais no seio da fugidia ilusão que ele produz. Seja como for, a realidade é inegável. Tenho, algures, arquivado um poema (testemunha dessa época) que constitui uma irrefutável prova.
Foi há um ano atrás. O céu cobria-se de um cinza completo e pelas estradas amontoavam-se inúmeras folhas acobreadas, proscritas de árvores em natural processo de renovação. Escusado será dizer que o Outono reinava, tal como hoje, em todo o seu esplendor. A brisa não era nem mais fria nem mais quente, e tenho a firme certeza de que os mesmos pássaros ainda hoje cantam nos mesmíssimos ramos. Em clima tão propício, é impossível não reviver a recordação.
Saí de Lisboa nessa manhã de Novembro rumo a uma simpática vila quedada no seio da mais alta montanha de Portugal continental. A escola local, muito gentilmente, havia me convidado para uma palestra de três sessões (nas quais eu seria o próprio palestrante). As mesmas seriam, à vez, dirigidas a outras tantas turmas de diferentes anos lectivos durante o período do final da manhã e início da tarde do dia seguinte. Apesar de tudo, o convite era justificável: um familiar meu leccionava nessa escola e, a seu pedido, enviava-lhe anualmente um exemplar de cada livro que publicava. Os mesmos destinavam-se, obviamente, à biblioteca da escola em questão. É claro que as doações baseavam-se em causas puramente culturais e educacionais, nomeadamente no aumento do espólio e das referências literárias disponíveis naquele local, para que os alunos livremente as pudessem consultar e retirar disso o maior proveito possível. Contudo, ao cabo de tanto envio, o director da escola fez questão de me lançar o desafio: visita ao estabelecimento e palestra aos alunos.
Assim, naturalmente honrado por tal convite, anuí. Apreciei a viagem tanto quanto me foi possível fazê-lo, demorando o olhar contemplativo por cada localidade que passava, por cada monte que subia e vale que atravessava. As ruas da cidade onde parei para por instantes almoçar foram igualmente alvo dessa serena prática, bem como os rostos com que me cruzei por sobre aquele sempre cinzento céu de Novembro. Era o prelúdio, somente, do que estava na iminência de se suceder.
Com voltas a mais ou a menos, fruto de algum hipotético engano (ah, GPS, quão a tua ausência foi notada…), lá me encontrei na vila que me aguardava, diante dos seus bem peculiares cenários dignos de uma beleza sóbria e altiva. Uma vez que não cumpri a dita viagem sozinho, aproveitei para desafiar as minhas fiéis companhias a empreender uma pequeno passeio pelas redondezas envolventes. Após confirmarmos a presença no acolhedor hotel que detinha as nossas reservas, depositar as bagagens e inspirar um pouco daquela quente (e acolhedora) atmosfera, fizemo-nos de novo à estrada. Que outra forma haverá de apreciar as virtudes locais? Pelo menos, de um modo mais aprimorado e tranquilo que uma mera passagem, célere e indiferente, poderia proporcionar.
Antes de mais, devo confessar que nunca havia estado naquele lugar. Para mim, tudo era novidade. Bem que poderia ter sonhado aquela vila, as suas ruas, a pequena ponte e o rio que a atravessa, ou pintá-la até com as mais belas cores que só uma fértil imaginação pode prover. Mas nada se equipara ao facto de vermos e sentirmos com os olhos do rosto e do espírito bem abertos o cenário que se dispõe à nossa frente. Já que me havia prestado ao passeio, aproveitei igualmente para realizar um extraordinariamente útil “reconhecimento de território”. Admito que o facto da vila ser pequena (pouco mais de três mil habitantes) ajudou de sobremaneira. Acabei, então, por me deslocar à escola local, encontrar-me com o familiar que lá leccionava e inspeccionar o sítio onde, no dia seguinte, o evento teria lugar. Ainda hoje evoco os comentário (tímidos) de alguns alunos que se cruzaram comigo no corredor e daqueles que, com olhares curiosos e bocas ansiosas, perscrutavam as redondezas sussurrando: «Será ele? Será o escritor?». Em silêncio, sorria.
De volta ao hotel, houve ainda tempo para relaxar um pouco enquanto o relógio não assinalava a hora do jantar. Assim que se reuniram as companhias devidas, restou-me desfrutar de uma das trutas que ali tão perto em viveiros são criadas e saborear a óptima conversa que durante o manjar foi sendo cultivada por todos os comensais. O tempo, é um facto, passou sem que ninguém desse conta disso. Fosse ele o incumbido de arcar com as despesas da refeição e bem que o hotel naquela noite poderia desfrutar do sempre eficaz auxílio de quatro pares de mãos extra na lavagem da louça remanescente!
No regresso ao quarto, antes de rever as palavras que no dia seguinte seriam com maior ou menor zelo proferidas, dei por mim a fitar o vazio da divisão. Um exercício estranho, talvez; mas, no momento certo, produz uma incrível sensação de despojamento. A consequência? Paz. Por mais efémera que se afigure. Devidamente protegido contra as investidas do gélido ar que por aquelas bandas pairava, acabei por me concentrar na revisão das ideias sobre a palestra e, quando o tempo se afigurou propício a tal, desfrutar, pelo menos em teoria, o melhor possível da noite de sono que tinha pela frente.
Não poderei dizer que me encontrava com os nervos em efervescência. Se o dissesse, estaria a mentir. E, estimado leitor, para consigo nunca desejei incorrer em semelhante falta. Por isso, é justo que admita: não em encontrava em ânsias tortuosas ou assistia a súbitos assaltos contra a minha segurança. Encontrava-me expectante, apenas. E receptivo. É claro que um actor, por mais experiente que seja, sempre sente um burburinho dentro de si antes de pisar o palco que é o seu lar. É o prelúdio da acção, o último esgar de sombra antes da luz raiar. Nada de estranho ou peculiar habita em tal evidência.
De certo modo, aquele tipo de trabalho não era novo para mim. Sob um determinado prisma de análise, evocava-me até alguns que realizara durante os meus tempos de faculdade. Na época, deslocava-me com um pequeno grupo de colegas a diversos liceus de Lisboa e arredores, com o intuito de promover junto dos alunos locais a nossa faculdade. Um trabalho tão simples e imensamente aprazível. Anos atrás, tive a oportunidade de publicar uma crónica onde descrevo uma dessas prazerosas experiências. Portanto, voltar a “discursar” perante os alunos de um liceu não era propriamente uma tarefa desconhecida. A diferença residia apenas nos alunos (estes seriam mais novos) e, claro, no conteúdo dos tais “discursos”. Desta vez, eu mesmo iria servir de tema de conversa.
Agora que revelo este aspecto do convite, devo explanar um pouco mais o seu conteúdo. Fui convidado para partilhar o meu caminho e visão sobre o mundo literário, e, com isso, divulgar as obras que até então havia publicado. Para os alunos da classe mais avançada, falaria ainda um pouco, a pedido da professora de português responsável, sobre Fernando Pessoa e a sua belíssima obra “Mensagem”, presença incontornável no programa escolar daquele ano em particular.
A questão a tudo fulcral não se prendia com os temas a abordar, uma vez que estes se encontravam ao perfeito e natural alcance da minha compreensão, mas com a minha vontade expressa de, como em tudo o que faço, primar pela diferença. Não por vaidade ou por um preciosismo excessivo, é claro não; mas por algo infinitamente superior: deixar impressa uma marca significativa e profunda nos meus ouvintes, por mais pequena que fosse. E nada mais me importava do que essa meta, estimado leitor, independentemente dos visados. Se sublinho essa mesmíssima intenção em tudo o que escrevo, por que motivo é que naquela ocasião seria diferente? Aliás, haverá mesmo algo de mais gratificante que sentir, intimamente, o efeito inspirador de um discurso humano e sensível? Eu poderia ser o veículo de tal concretização. Por isso, soube que a minha posição, naquele dia, exigia uma responsabilidade maior. E estava decidido a cumpri-la da melhor forma possível.



Pedro Belo Clara.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

CONVITE


Estimados amigos e amigas,


É com um enorme prazer que vos convido para a sessão de lançamento do meu novo livro, "O velho sábio das montanhas", dia 21 de Dezembro, pelas 16 horas, na livraria Les Enfant Terribles - Espaço NIMAS.



Antes da sessão, será servido champanhe acompanhado com patés diversos. Após esse momento de descontracção e boa conversa, dar-se-á início à apresentação da obra. 

Conto com a vossa presença!

Até breve.


«Entregou os olhos ao céu. Inspirou e expirou profundamente. De seguida, fixou os profundos espelhos da sua sublime alma num qualquer ponto infinito, num qualquer pormenor que somente ele era capaz de observar. Então, no meio de todos nós, da mesma forma como entre nós sempre havia vivido, a todos falou. Como se fossemos um só.»

Pedro Belo Clara in "O velho sábio das montanhas"




PS: https://www.facebook.com/events/199584233561741/










segunda-feira, 25 de novembro de 2013

ALTOS E BAIXOS


Se pensarmos no Caminho como um espaço físico (uma estrada, por exemplo, que se espraia por infindas distâncias), por certo não o imaginamos recto, plano e totalmente desobstruído. Pelo menos, na sua globalidade, não o conceberíamos assim. Seria natural que mentalmente se desenhassem curvas, morros, baixios e outros tipos de inclinações ou acidentes paisagísticos. Assim como este mundo material se preenche, em sua natureza, de vales, montanhas e planícies, também o Caminho, que se justifica ao ser percorrido pelo caminhante (caso contrário, seria somente uma ideia ou concepção filosófica), apresenta os seus peculiares registos de paisagens. Comummente falando, os seus “altos e baixos” – relevos que o adornam e que comportam uma prova para todo aquele que por tais meandros se aventure.

Poder-se-á pensar, para o efeito, que os ditos “altos”, ou zonas de maior elevação, sejam compreendidos pelas emoções mais atreitas ao festejo, celebração ou, simplesmente, ao sorriso. São experimentadas sensações que se revelam quentes e agradáveis, de vibração elevada, e capazes de fomentar uma aprazível experiência. A alegria, por exemplo, será um desses casos. Ao invés, nas demais identificar-se-ão, por senso comum, e seguindo a lógica apresentada, emoções como a melancolia, a tristeza ou a angústia. Sensações, por sua vez, frias e de vibração mais baixa. A presença da dor, nestes casos, pode ser invariavelmente comum – quer ao nível físico, quer ao nível espiritual. Assim, facilmente se entenderá que, por cada passada que no Caminho se invista, novas experiências e sucedidos tomarão o seu lugar. Com eles surgirá uma oportunidade de crescimento, de aprendizagem e de equilíbrio. Como remanescente, a emoção saboreada. Assim se vai recheando o caminho pessoal.

É claro que tal ideia aplicar-se-á a todo o viajante… Apenas se excluirmos a hipótese da transcendência, uma vez que esta, atributo derradeiro dos mais iluminados, naturalmente exclui toda a dualidade. E, no fundo, o que antes foi explanado obedece a esse princípio, fundamental ao bom girar da eterna roda que a existência terrena, com as suas sucessórias estações, é. Aplicando esse molde à ideia que tem vindo a ser transmitida, veremos que experimentar emoções não é mais do caminhar num círculo de sucessões constantes, vivenciando-se ora os “altos” ora os “baixos” que a humana condição pode oferecer. Como o Verão sucede a Primavera, o Inverno o Outono, o sol a lua, a chuva o tempo da seca, as experiências que se coleccionam pela estrada de uma vivência seguem o mesmíssimo propósito. E elas, como evento que se manifesta na matéria, isto é, no mundo físico, comportam a dualidade. Onde há amor, há dor; onde há alegria, há tristeza; onde há euforia, há depressão; onde há vitória, há derrota – é inevitável. Transcender é, por isso, ir além do dual e experimentar um estado de plenitude pura (não confundir com felicidade, pois também essa comporta o seu contrário). Ele é perene, fortemente iluminado e repleto de amor sem entraves ou condições, irradiando de dentro para fora. É nesse momento que a ilusão se quebra e a unidade primordial se revela. Contudo, se falamos de “luz” e de “amor”, facilmente se contraporá a concepção com recurso aos reflexos contrários destes: sombra e dor. Acontece que esse estado de iluminação é apenas a entrada para algo ainda mais superior (ignore-se o subtil pleonasmo). Esse, uma comunhão plena com tudo, é completamente extra-físico. Longa é a jornada de retorno a esse lar… Onde a unidade é finalmente recuperada. Além da luz e da sombra, pulsa o vazio… Um Nada que foi e é Tudo. Da mesma forma exacta em que no lugar de todas palavras está o silêncio, assim que estas cessarem ele, sua origem, fim e recomeço, sobressairá.

Com tais dizeres, não pretendi referir o «não-sentir» ou uma hipotética frieza emocional. O primeiro é um conceito distinto do que foi exposto, e o segundo uma defesa íntima do viajante desiludido, temerário e ferido. Transcender vai ainda para além desses conceitos ou atitudes instintivas ou pré-concebidas. Permanecer no centro elevado de nós próprios – eis o sentido mais translúcido da arte em questão. É um constante contacto com o fluxo energético superior, do qual somos todos uma pequena parte. Muitos viajantes, filhos de múltiplas causas, por diversas ocasiões experimentam estados idênticos, ainda que por efémeros momentos. Este viver (e permanecer) “acima das nuvens” significa estar-se imune aos efeitos da chuva que ocasionalmente tomba, em permanente contacto com o sol que então se revela. Não significa, contudo, que as experiências mais agrestes da vida material cessem para tais indivíduos. Nada disso. Tal estado até será constantemente posto à prova. Embora seja árduo de alcançar, mais árduo é reunir a disciplina necessária para o manter. A conquista da paz interior, no entanto, auxilia (e muito) na experimentação do mesmo.

Em forma de conclusão, pode-se assumir a imagem (ou ideia) de um estado de ser mais elevado e esclarecido, onde a pequena parte recorda a sua ligação ao todo e, assim, a personagem que no momento da vivência é cessa a sua influência mais directa. Então, o «estado de ser» transforma-se num quase «estado de não-ser». Focado não no vento que sopra, torna-se a folha que, suave, se curva e recurva perante o soprar do sopro primordial em sua existência. A ilusão mundana, como cristal que é, acaba por se quebrar perante tamanha luz alcançada, magnífica e excelsa, invocativa e evocativa. Contudo, para que a luz inunde uma divisão, é imperial descerrar as cortinas.

Mas não olvidemos o que antes havia sido debatido. Se retrocedermos no discurso, retomaremos o ponto dos “altos” e “baixos” que propositadamente povoam as existências. Importa, contudo, esclarecer o seguinte: a transcendência no plano físico não comporta o desfasamento desses relevos. Isto é, o sol e a chuva, metaforicamente falando, é claro, continuarão a se suceder e a verter os seus efeitos sobre o indivíduo. A única diferença reside na forma como este, em pleno estado transcendental, os recebe. Estar além da dualidade é constituir uma imunidade aos seus efeitos, embora não esteja a própria dualidade extinta. Assim se prova o quão possível é «viver na Terra como no Céu».

Não se ignore, ainda assim, a evidência de que o caminho até esse estado sublime se pauta por experiências e provações, por vitórias e derrotas. A dualidade deve ser provada para que conquistada possa ser. E em definitivo tal só se reclama quando as paixões, por exemplo, são saboreadas em constante equilíbrio. Não serão reprimidas, ignoradas ou obedecidas… Mas experimentadas de um modo moderado, apenas. Para isso, bastará saber minimizar os seus fortes apelos. Pois, como aquele que vive e caminha sabe, se seguidas elas tornar-se-ão destrutivas. Afinal, o viajante terá de abandonar o seu plácido centro para seguir no encalço da emoção. Mas tal não significa que não se munam de propósito ou cessem de comportar um relevante sentido.

Admita-se a seguinte imagem: se no topo de uma montanha a visão é claramente mais ampla e esclarecedora sobre a paisagem circundante, é a partir de um vale ou de um terreno côncavo que a visão dessa montanha, em si, se torna possível. No seu cume, apenas nos deslumbramos com a paisagem em redor, mas ignoramos o local onde efectivamente nos encontramos. É fácil esquecer as etapas que ao cume nos guiaram, estando este já conquistado. A visão que só o vale oferece é, assim, igualmente preciosa: auxilia-nos a recordar a beleza da montanha e o quão deslumbrante foi admirar aquele horizonte invencível. Poderá causar desagrado esse “baixo” na existência, mas só ele nos permite compreender a vera bênção que aquele “alto” constituiu.

Por diversas ocasiões, ignora o viajante a sua própria efemeridade. Ao longo da caminhada existencial, enquanto se recorda, se salda, se aprende ou se granjeiam as ferramentas necessárias à conquista da etapa, é não raras vezes consumido por um espírito de tamanha invencibilidade. Mas a condição humana, sob o ponto de vista material, é precisamente o oposto: efémera, como os demais elementos que compõem os tangíveis cenário em seu redor. A sanidade, ou a boa saúde física, apenas se poderá revelar um dado adquirido quando experimentada em seu esplendor. Parecerá eterna; mas, tal como as chuvas que chegam após o sol, não o será. Assim que se vive um “alto”, o seu “baixo” correspondente de pronto se anuncia. Ambos são a sombra um do outro, aguardando a hora em que dela irrompa uma reveladora luz - eis o simples suceder das estações. Neste caso em contrário, isto é, tendo a sanidade como exemplo, o seu contrário será a doença. Ela até encerra um motivo de aprendizagem, pois, ao ser consequência de algum comportamento menos equilibrado ou funcional, denuncia o que de errado tem sido feito ou assumido. Seja qual for a sua índole, origem ou gravidade, sempre é um válido e eficaz “despertador de consciências”, uma vez que se traduz num apelo à mudança e à elevação do ser em causa. É, portanto, uma ocasião de transcendência.

Poderá parecer dura, agreste ou injusta, mas constitui um rombo no casco da defesa humana, frágil e temerária, a quebra da máscara onde por tantas vezes o viajante se oculta e protege. Em todo o caso, conferir-lhe-á uma visão diferente sobre os sucedidos e a ordem sob a qual tudo se rege. A verdade é que sem ela não existiria lugar ao crescimento e à evolução. O que serviria permanecer no cume da montanha em plena (mas estagnada) alegria, vivendo de ilusões experimentadas? O apego é um veneno para toda a alma que anseie pela ascensão. A jornada deve ser cumprida até ao seu fim. Todo o viajante que não cumprir o seu desígnio, voltará ao caminho, uma e outra vez, até que se despoje de todas as bagagens, dívidas, feridas e dores. Não será preferível, antes, beber da alegria que nos é dada e, findada essa etapa, partir de pronto para a próxima? Um rio flui… Da nascente até à foz. Para quê temer o que nos espera, sem sequer o conhecermos? Essa visão toldada do Caminho assenta-se num medo íntimo e sem fim… Julgar dessa forma é desconhecer o que nos rege e, como tal, recusar aceitar o supremo bem de todas as coisas.

A dor nunca é desejável, claro… Mas é amplamente necessária. Assim como aceitamos o sol, aceitemos de igual modo a chuva. Ambos têm a sua validez, a sua crucialidade. Importa compreender a valiosa lição que trazem consigo. Nada do que se sucede no Caminho é fruto da casualidade. Se o viajante conseguir efectivamente ver à luz da sabedoria pessoal, saberá da inteligência não visível que tudo rege. Nada é por acaso. Nada se opõe ao Homem. Este é que, por sua vez, se opõe a inúmeras coisas. Rema contra a maré dos acontecimentos e morre de cansaço ao lutar contra forças que se recusa a aceitar e compreender. Os “acasos”, como tantas bocas gostam de os apelidar, são apenas causas e efeitos de outros gestos e de outras decisões, muitas vezes perdidas na linha do tempo… Que é recta e infinita. Apenas aqui, no físico plano, pela visão adoptada ser mais densa e restrita, é que tal visão não é assumida. Se nos elevássemos, veríamos o Tempo encaixar na perfeita metáfora de um rio que corre, sem começo ou fim – e onde tudo se sucede no mesmo exacto tempo.

Tudo detém a sua causa, o seu motivo, a sua razão; assim como todo o fruto guarda a sua semente. Apenas quando este se extingue é que a semente, até então protegida, mergulha nos braços da terra que a ela se abrir, iniciando o seu processo de germinação. Os sucedidos, ainda que tal não esteja visível ao viajante, ocorrem em prol do mesmo… Conspiram a favor daquele que caminha. E, querendo ou não, todos nós partilhamos este mundo de ilusões, todos nós nos quedamos perante as mesmas hipóteses e condições. Apesar de nos diferimos na forma como lidamos com tais aspectos, aplicando maiores ou menores doses de íntima sabedoria. Desse modo, cada um fará o seu próprio trajecto, em prol – que assim seja! – do seu benefício supremo.

É importante que a mente de cada um permaneça limpa de superstições, receios e tensões. Uma mente leve vê com maior clareza e clarividência. Sendo saudável, viverá elevada – focada nos mais luminosos princípios. Desde logo, esse é o primordial passo para a transmutação do estado “baixo” antes referido: a doença. Falo, claro está, da cura. Principiando-se no âmago de cada um, qual resposta à mais incessante das perguntas, encontra-se à simples distância de uma intrépida decisão. A transcendência para os casos doentios, que ao longo das vivências vamos coleccionando, detém-se, portanto, num conjunto de crenças em válidas razões, ainda que desconhecidas, e na certeza de que o primeiro passo a empreender compete ao sujeito em causa – tudo se encontra ao alcance de quem se dignar a estender um braço. Tal concede, desde logo, uma paz prometedora. Afinal, não estamos tão sós quanto ilusoriamente julgaríamos, no seio de uma tão alucinante dor. Aquela ferida poderá ser íntima, mas muitos, seja antes ou depois, partilharam ou partilharão da mesma. Todo o remanescente do processo será cumprido através do notável suceder de todas as coisas. Mas, antes de tudo, importa não perder o proveito que a nova experiência comporta – apesar de dolorosa.  

Se um comboio passar junto da sua estação, que o viajante o não perca. Ao fazê-lo, estará também a perder uma viagem deveras singular e tudo o que ela poderá abranger. Porque não arriscar? Porque não fluir? Porque não aceitar? Grandes bens eclodem na abdicação do “eu”… Sem nunca deixe de ser aquilo que é. Muito pelo contrário: apenas será aquilo que na verdade sempre foi. O que julgava que era não passava de uma roupagem, um disfarce temporário tido como real pela ilusão material do plano onde se encontra. Abdicando, fluirá… E entregar-se-á a um Bem supremo. Confiando nas ocultas (mas certas) razões, saboreará ao longo do percurso a mais aliviante das sensações que somente o mais inominável dos confortos poderá conceder: a serenidade de quem cultiva uma fé.





Pedro Belo Clara.






segunda-feira, 11 de novembro de 2013

CERTA NOITE, NUM QUARTO SEMI-ILUMINADO


            Em finais de Novembro de 2010 tive a oportunidade de apresentar ao público português o meu primeiro livro. No caso, de poesia. Nem outra coisa seria de esperar, diga-se; pois, à época, nove em cada dez trabalhos meus eram do género poético. Não possuo uma explicação plausível ou lógica para tal evidência, à excepção do facto da poesia sempre ter fluido por mim com uma naturalidade maior do que as restantes formas de literatura. Mas até esse dia nascer, como desde logo se pressagia, muitos outros foram mastigados e engolidos com esgares nem sempre agradáveis, o que deixa desde já antever a complexidade inerente ao próprio processo de edição – desde o momento em que decidimos enveredar por um caminho literário até ao ansiado instante que marca a publicação da obra de estreia.
            Se escrever um livro é uma tarefa complexa, ainda que deveras aprazível, editá-lo é simplesmente um acto que exige forças supra-humanas. Ao nível, provavelmente, segundo rezam os anais da mitologia grega, dos trabalhos que Hera incumbiu ao seu famoso enteado Hércules. Afinal, lidamos com diversas emoções que, qual miríade de pipocas implodindo no microondas, não cessam de vibrar por todas as fímbrias do ser: ansiedade, insegurança, frustração… Sei lá eu o que mais! Todos os que já se aventuraram por tais trilhos compreendem perfeitamente o que pretendo transmitir. Contudo, apesar do cenário geral – e eis a loucura suprema –, movidos por ocultas forças lá acabamos por perseverar em tão longa jornada. Assim se prova o quão capaz poderá ser a força de um verdadeiro amor.
            Assumir o que o coração mais nos implora não é um acto simples de executar. Pelo menos, não tão simples quanto poderá parecer. Escutá-lo até que se afigurará fácil, mas para seguir as linhas do que nos dita requer-se coragem (e uma certa dose de loucura, é claro). Quando chegou a minha vez de decidir um destino, no seio daquelas encruzilhadas existenciais em que ou escolhemos o trilho da direita ou o da esquerda, o comprido azul ou o vermelho, optei pelo caminho menos trilhado, menos provável e menos explorado – ignorando ainda, devo admitir, as belezas que tais rumos sempre encerram por tão poucas vezes serem visitados ou percorridos. Posteriormente, evocaria as célebres palavras do poeta Robert Frost: «Two roads diverged in a wood, and I — / I took the one less traveled by, / And that has made all the difference.» Hipótese de tradução: «Duas estradas bifurcavam num bosque, e eu / Eu segui pela que fora menos utilizada, / E isso fez toda a diferença».
            Sorri, quando me confrontei com este dizer. De certa forma, era um alento para a jornada que eu próprio me aprontava a empreender. Toda a escolha comporta uma consequência (não fosse ela uma forma de acção), mas estava preparado para assumi-la. Para o melhor ou para o pior, ao menos seria “à minha maneira”. Nem de sua justiça Sinatra diria melhor. Aliás, a própria mensagem dessa intemporal canção foi o inspirado mote que impulsionou a minha decisão. A partir daí, nada seria como dantes.
            Se aqui dou a conhecer uma parte do meu início como escritor, com os respectivos sentimentos, escolhas, pensamentos e decisões, é por sentir que para se compreender melhor o meu trabalho e a pessoa que sou importa antes perceber as circunstâncias em que tão decisivas opções foram tomadas. Afinal (publicamente me confesso), abdiquei de uma possivelmente bem sucedida carreira bancária para seguir os mais íntimos intentos deste sempre sábio coração. Terei chocado algumas consciências? Não foi a primeira vez. Como justificar uma certeza que é tão íntima? Somente aquele que a sente a poderá compreender e, posteriormente, seguir o seu subitamente iluminado rumo. É óbvio que o início de um novo caminho apresenta inúmeras dificuldades, testes à resistência do incauto caminhante que se apronta para tamanha empresa. Mas, se efectivamente desejar sentir a suavidade das pétalas da rosa que indaga, terá naturalmente de ultrapassar todos os espinhos que a compõem. É, de certo modo, uma forma de se provar digno do destino que escolheu.
As dúvidas eram gerais… E múltiplas. Ainda assim, não me demoveram do propósito. Aquilo que desejava e que como um apelo sentia a ribombar em mim era forte demais para ser ignorado ou proscrito como qualquer vestimenta que abdicamos ao longo do percurso. Era o que mais felicidade me proporcionava. E, sabendo-a não um fim mas antes uma continuidade, apliquei-me por garantir a sua companhia ao longo da jornada – tanto quanto me fosse possível. É claro que por vezes ela se eclipsava, mas… qual o dia que se diz sem chuva? A vida é impermanente: um conjunto de estações que ininterruptamente se sucedem. Há que saber lidar com tal característica tão primordial e intrínseca. O caminho que escolhemos encarrega-se de nos instruir nas especificações do mesmo. Basta estarmos atentos e receptivos.
Enfim, para poupar o leitor a detalhes possivelmente enfadonhos, resumo a ideia: o crucial é assumir a escolha, dar o melhor de nós próprios e… acreditar. Existe, contudo, uma diferença expressa entre “desejos” e “apelos”. Os primeiros são muitas vezes resultados dos devaneios de um corpo de prazeres ou de uma iludida alma que a eles perdidamente se entrega, sem vestígios de harmonia e equilíbrio; os últimos são os ecos da voz da alma, profundos, íntegros, genuínos… E não em raras ocasiões são o mais fiel guia que um Homem pode possuir em dias de tempestade. Haja sabedoria para os distinguir!
Mas, naquele tempo, ainda não compreendia totalmente o meu raio de actuação enquanto escritor. Sabia que queria seguir por essa via. Apesar de tão árdua e parca em estabilidade futura, ainda assim a queria. E a alma nunca cessava de me recordar tal coisa. Era por ali o caminho, e era naquela decisão que tudo se concretizaria. A criação literária trazia até mim um conforto extraordinário, uma felicidade imensa! Como poderia ignorar tal coisa? Renegar tamanha bênção? Por isso, confiei no meu sucesso. Tanto quanto hoje nele ainda confio. Não é uma extensão da arrogância esta íntima crença, mas uma forma de se perseverar no ofício que desenvolvemos. Cheguei a uma idade em que compreendi: se não confiarmos veramente em nós próprios, no nosso trabalho e em nossas acções, ninguém mais o fará. Pelo menos, com a força que só os visados conseguem (e podem) imprimir. Assim sendo, restava seguir em frente… E atravessar todas as brumas que assomavam ao horizonte.
Nos dias que correm, com outra perspectiva, naturalmente mais madura, ponderada e transcendente a muitas poeiras que as questões nunca respondidas levantam, entendo a totalidade do meu trabalho e a minha real função enquanto escritor. Acredito piamente que todo o Homem pode ser um farol para o seu semelhante. E o papel que escolhi é somente uma forma de justificar essa crença. O importante é cada um compreender a sua própria natureza, aceitá-la e, mediante o que se lhe apresenta, optar pela via que mais servirá o seu carácter. Assim, permanecendo e evoluindo no “lugar certo”, cumprindo as “certas funções”, dará um contributo muito mais eficaz e valioso a si próprio e ao colectivo que o rodeia.
Dias e dias de dúvidas, frustrações e poucas certezas depois, sempre com uma fé intensa no provir, mesmo em alturas onde as fundações lhe faltavam, eis que chega o momento de publicamente apresentar o meu primeiro livro. É extraordinário como aquele pequeno objecto consegue resumir tantos suspiros e dores… Memórias do processo findado, sem dúvida. Cada etapa vencida guiou-me até aquele dia. A primeira vitória foi nunca claudicar perante a subtil descrença que sempre sobrevinha de tempos a tempos (acima de tudo, é crucial persistir e jamais desesperar), mas naquele momento deu-se o glorificar de todo o negrume. Justificou-se, em suma, na luz daquele dia singular.
O evento correu optimamente bem, rodeado de amigos, familiares e simples curiosos. Dar autógrafos foi a grande novidade, mas posso abertamente afirmar que tal experiência se revelou bastante prazerosa. Nem poderia imaginar algo melhor. Entretanto, já tive a oportunidade de a repetir por mais duas ocasiões ditas “oficiais”. Em breve, dar-se-á a terceira – felizmente. Mas mais importante que isso é sentir o apoio e a amizade daqueles que nos querem bem. Entre todos a dúvida pode ser geral, a princípio; mas as pequenas vitórias vão igualmente provando aos demais o nosso empenho e vontade em proliferar no rumo que escolhemos. No final, somente contam os sorrisos e os desejos luminosos. Recordo os votos que no término desse dia uma amiga muito querida tão amavelmente me endereçou: «que continues a ser o orgulho da tua família e amigos». O que dizer perante tal coisa? Tempos depois, um outro amigo me confessaria o seguinte: «É desta! Vou iniciar um negócio por conta própria… E tu, com as decisões que tomastes em tua vida, foste um exemplo para mim!». Continuo sem saber o que dizer em resposta.
Eis algo ao qual na altura permanecia cego: o simples facto de poder primar pela diferença ao assumir uma escolha tão ilógica quanto incomum. Confesso que ignorava, de todo, essa hipótese. Mas os dias consumidos, como ondas de um mar de experiências, até às minhas orlas trouxeram a evidência: é possível ser-se um luminoso exemplo e sobre os demais exercer uma influência positiva através da afirmação daquilo que nós próprios somos. Na verdade, nem sei ser outra coisa além daquela que sou, neste tão breve tempo de vida.
A mais simples palavra, dita e assumida no mais casual dos instantes, pode comportar consequências extraordinárias! Não considere o leitor que com tudo isto me envaideço, pois o meu trabalho, e principalmente a intenção que o pensa, estará sempre em primeiro lugar, mesmo em relação à minha pessoa. Esta surge até em último lugar, uma vez que antes ainda se contam aqueles que sirvo através do ofício que laboro. Sejamos sinceros: o que deverá ser o obrar de um trabalho, se não uma material manifestação do amor? E de que serve o amor se não for dirigido àqueles que nos rodeiam? O Amor, meu caro leitor, é a chave que abre todas as portas, a sementeira a partir da qual tudo floresce, a base sobre a qual tudo se constrói.
Como entenderá aquele que agora me lê, nada de mais profundo poderei eu experimentar do que uma expressa gratidão por tudo aquilo que tão generosamente tenho recebido. É um privilégio, deveras. Sei-me intimamente abençoado. Além do mais, o meu trabalho justifica-se sempre que uma luz se reacende em meu semelhante. Afinal, é para ele que escrevo, é por ele que faço aquilo que faço. Porquê? Nem o sei… Apenas por ser assim que deve ser, apenas por ser desse modo que a minha existência se “encaixa” na eterna roda da vida. Os chineses, porém, no auge da sua sabedoria encontram uma belíssima razão: «Fica sempre um pouco de perfume na mão que oferece rosas». Nem todas as respostas estão disponíveis no consciente humano, mas essa é a minha intenção mais primordial. Pelo menos, consigo identificá-la e reunir os meios para a cumprir. E o consequente sentimento é a doce realização.
O caminho é longo, bem o sei… Ainda há tão pouco tempo nele me iniciei. Tenho o hábito de repetir uma expressão que um dia escrevi: «Nuvem após nuvem, até alcançar as estrelas». Apenas para que com essa luz própria uma outra possa ser incidida sobre toda a face que a ela se dirigir. Assim, abertamente afirmo: sou um homem feliz. Restrições? Claro que as há! Indiquem-me uma existência que esteja desprovida delas… Sou um homem feliz. Lamentosamente, nem todos poderão dizer o mesmo; mas oxalá um dia ainda o possam. Desejo-o fervorosamente. O meu testemunho é apenas a minha simples história, tão igual a qualquer outra. Em muitos casos, as ocasiões e os eventos são semelhantes; a diferença reside somente na forma como cada um de nós as aproveita e os vive. Ainda assim, espero que uma nova madrugada possa irromper na vida de tais caminhantes (uma simples metáfora para o que no fundo aqui somos: os caminhantes de uma extensa jornada existencial). Ou que uma qualquer alma se possa rever e encontrar em alguma linha desta crónica que escrevo e com sincero amor compartilho. O fruto, pelo menos, foi colhido e aqui se deposita. Que aquele que fome sentir possa encontrar a sua ansiada satisfação.
Muito há ainda a percorrer… Naturalmente. Mas permaneço diante da minha estrada mais vibrante e sorridente do que nunca. O infinito alonga-se no horizonte e a cada dia me aproximo mais do intento final. Tem sido uma jornada incrível… Perguntar-me-á o amigo leitor: valeu a pena? Vale a pena todos os dias! Por derrotas e vitórias vale um milhão de penas. Faria tudo de novo, se tal me fosse proposto em desafio. Indubitavelmente. E a julgar que tudo começou com um simples pensamento, com uma decisão a implorar o seu definitivo assumir… Há apenas três anos atrás, numa noite de reflexão, no mesmo quarto semi-iluminado onde agora me apronto a encerrar esta crónica.


Pedro Belo Clara.




PS: Dedico estas longas linhas à minha amiga e talentosa poetisa Paula Marques, que muito em breve estará a lançar o seu primeiro livro de poesias.


Nenhum caminho é igual a um outro. Ainda assim, deixei impresso o meu testemunho, resumido à sua forma mais crucial. Que nele consiga se rever e compreender que as dificuldades que experimentamos não nos assistem exclusivamente – em diversas circunstâncias são um lugar-comum. Assim, estreita-se a solidão do Homem. Felicidades à dedicada e a si, leitor, se por ventura se prepara para trilhar um caminho semelhante. Saibam, ambos, que alguém que sofre e ama como vós já trilhou rumos idênticos; saibam que não estarão sós; saibam que valerá a pena se permanecerem fiéis a vós próprios. E não se esqueçam: a vida é um sopro. Dêem-lhe forma!  


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

PECULIARIDADES DE SE SER EUROPEU

          
Aqui, repousando placidamente numa esplanada aberta a uma tão agradável tarde de início de Outono, não renego o pensamento que sublinha as peculiaridades que fazem deste país e da grande maioria das nações do velho continente locais deveras singulares e especiais. Todos os povos detém as suas características, é certo, e os portugueses, honestamente o digo, possuem traços bem particulares e distintos dos demais europeus. Contudo, não é sobre esse assunto que pretendo me debruçar. Afinal, encontro-me numa esplanada. E que outro local mais propício a ideias de união, sejam elas filosóficas, literárias ou musicais, poderá existir do que uma esplanada? A mera extensão do berço onde nasceram, outrora, tantos ideais que revolucionaram o continente e o próprio mundo?

De facto, a Europa das culturas criou-se em redor dos cafés. Desde A Brasileira, em Lisboa, onde Pessoa maturou as linhas do seu génio grandioso, ao famoso Café de la Paix (O Café da Paz), perto da Rue de la Paix (Rua da Paz), em Paris, onde o poeta canadiano Robert Service escreveu o poema “The Absinthe Drinker” (“O Bebedor de Absinto”). Ou o Café de Flore, por exemplo, onde por horas infindas Sartre e Beauvoir debateram as suas filosofias. E isto sem esquecer, de entre muitos outros, os cafés da Dinamarca onde Kierkegaard discorria e de Viena, na Áustria, onde certo dia um largo grupo de amigos se dispôs a escrever uma só sinfonia. É inevitável: na Europa citadina respira-se cultura!

Ainda que estes exemplos sejam partes de um passado, é importante compreender que novas ideias podem irromper de antigos berços. Neles, a mesma energia, a mesma atmosfera inspiradora e cativante ainda se faz sentir, quase que implorando por uma via de manifestação imediata. Impresso este dizer na folha branca e de pronto me assomem à memórias as palavras que George Steiner proferiu na sua iluminada palestra que se tornou o belíssimo ensaio “A Ideia de Europa”: «o café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais». E isso é, em regra geral, um privilégio da Europa.

Por mais grandiosas que possam ser outras nações de outros continentes (tomemos o exemplo dos Estados Unidos da América), a verdade é que elas não desfrutam de tão peculiares características que, como antes referi, são o autêntico berço dos renascimentos culturais. É uma questão inata, mesmo, uma forma de abordar, em primeira instância, a concepção de uma cidade. Ao passearmos por Nova Iorque, no seio do seu alvoroço que é, simultaneamente, dinâmico e atraente, entre as luzes, os edifícios gigantescos e a constante noção de que tudo o que a compõe é altivo e, diga-se, enorme, visitamos a Quinta ou a Sétima Avenida, entre outras hipóteses. Em suma, ruas e mais ruas que sobriamente foram organizadas e nomeadas através de simples números. Existem excepções, é claro. Mas veja-se o caso europeu: as mesmas ruas, mais amplas ou mais estreitas, evocam o nome de poetas, romancistas, filósofos, dramaturgos, estadistas e até mesmo de grandes batalhas de outrora. São, indubitavelmente, locais onde a história está a ser constantemente revivida, mesmo que pouco ou nada saibamos sobre ela. E, como tal, numa espécie de simbiose cultural, esta não corre o risco de cair no olvido.

Se tal acontece na Europa é porque o velho continente é pródigo em acontecimentos marcantes que fazem a história de hoje, graças à sua evidente ancestralidade quando comparado, por exemplo, com o dito “Novo Mundo”. Mas essa característica não se torna obsoleta ou alvo de ataques jocosos. Muito pelo contrário! É sobejamente aproveitada e reafirmada como orgulhosa característica, concedendo à atmosfera que a envolve um teor mais elevado, translúcido e limpo. Pois não se trata apenas do nome das ruas ou das estátuas que embelezam as praças. Os próprios locais fazem questão de orgulhosamente preservar a sua memória mais preciosa. Em Lisboa, por exemplo, basta referir o café Nicola para logo se evocar a figura do poeta Bocage que ali sempre saboreava o seu indispensável cafezinho.

A Europa é isto: história e cultura! À parte de todos os demais defeitos que, como em qualquer outro caso elevado à categoria de exemplo, lhe poderemos apontar. Esqueçamos, por hoje, tais questões. Foquemo-nos somente naquilo que nos prende a atenção. E, estando eu nesta esplanada aberta a uma tão agradável tarde de início de Outono, é perfeitamente compreensível que livremente discorra sobre tais matérias, a meu ver, fascinantes.

Não direi, contudo, que neste caso o banal comporta o grandioso. Ou seja: muito provavelmente, o casal que se senta bem à minha frente não discute Kafka ou as problemáticas do “eu” comportadas pelo existencialismo de Sartre; apenas factos normais da vida quotidiana. Mas… e se tal não se verificasse? E se debatessem mesmo a obra de Kafka, o existencialismo de Sartre? O quão espantoso não seria testemunhar, neste berço igual a tantos outros que do mesmo modo se revelaram profícuos, o debate de novas ideias e de novas concepções? Um novo entendimento da poesia? Uma revolucionária visão sobre a forma como consumimos a música contemporânea? Enfim… Devaneios de idealista, por certo. Embora acredite que outras cores revestiriam este lugar, bem mais vivas e pulsantes… Essa é uma esperança de que nunca quererei abdicar.

Escrevo estas linhas e recordo um episódio que horas atrás testemunhei na secção musical de uma conhecida cadeia comercial. Pois ele é bem representativo de uma das consequências da estrutura cultural que suporta a grande parte dos países europeus: a espontaneidade. Então, como dizia, estava eu a caminhar pelo corredor do dito espaço quando escutei uma simples (mas bela) melodia a ser perfeitamente completada por sua suave (e doce) voz feminina. Frágil e quase tímida, sim; mas dona de uma harmonia espantosa. Ora, escusado será dizer que a atmosfera de tal lugar de pronto se modificou. Admito que, por breves segundos, pensei que se trataria de um qualquer DVD que, como lá é habitual, estivesse a passar num dos ecrãs. Nada disso. A voz provinha de uma jovem que, num súbito impulso, havia pegado num bandolim que se encontrava exposto e, com o auxílio de um amigo que amparava uma guitarra clássica, lá ia esboçando as linhas da sua improvisada melodia.

Cultura manifestada na sua mais espontânea e pura forma: é tão agradavelmente contagiante! Não irei afirmar que tais exemplos são exclusivos da Europa. Nada disso. E ainda bem que assim é. Pois a arte é apenas a expressão, em forma sublimada, da alma humana. Embora outros países não disponham da mentalidade cultural que se formou na maioria das nações europeias, tal não significa que a mesma neles permaneça inerte. E a encarnação de tamanhas dádivas assume-se, por exemplo, nos músicos que povoam as ruas de Nova Iorque, nas melodias improvisadas nos cafés de bairro no Brasil, nos tangos sussurrados em bares argentinos, nos ritmos entoados nas secas vias que traçam caminhos por essa África fora – entre muitos, muitos outros.

É isto que, em suma, me cativa e atrai: a naturalidade da arte, a partilha incondicional de talentos, a celebração da própria criação improvisada no instante mais fugidio! E, volto a repetir, a atmosfera que se cria em tais circunstâncias. Pois viver com e pela cultura é, indubitavelmente, conquistar um lugar superior de consciência e de convivência social. Sim, a cultura engrandece e alteia o Homem. Efectivamente autêntica, livre e acessível a todos. Numa opinião muito pessoal, esse factor, aliado à preservação de todo um legado valiosíssimo, é o que torna a vida citadina europeia bem mais suportável. Pelo menos, por instantes se olvidam os apertos paisagísticos do betão, as múltiplas perturbações dos múltiplos ruídos e a permanente sensação de encarceramento. Na manifestação da arte e na sua difusão, a alma encontra fluidez e uma aprazível sensação de liberdade.

Se agora somarmos todos os factores culturais ligados à Europa, compreenderemos uma das vantagens que, a esse ponto, o continente, em regra, nos oferece: a possibilidade, sempre presente, de construir o amanhã através das escolhas que hoje se assumem, mais elevadas, humanas e justas. Que será, afinal, a cultura? Se não um meio de junção de povos e de celebração da sua identidade? O que comporta, então, essa valiosa vertente, por tantas ocasiões lamentavelmente ignorada, se não a educação das gerações vindouras? É um legado que se confia de herdeiro para herdeiro.

Ainda que seja nativo de um país que, por opção política, provisoriamente aboliu o ministério que tutelava a cultura, não me importo agora com as temporárias restrições que nada são quando comparadas com a perene invencibilidade de outros valores e ideais bem mais elevados. Afinal, como alguém um dia afirmou, poderão matar todas as flores, mas jamais matarão a Primavera. Continuarás europeia, Europa, fiel ao teu estilo mais íntimo, pois por teus territórios haverá sempre alguém a defender as gloriosas virtudes que ostentas. Assim, permanecerás livre. Tão livre quanto o pensamento daqueles que te idealizaram.

Volto a saborear o café. Tranquilo, sorrio por ser e me sentir veramente europeu numa esplanada que bem poderia ser o centro do mundo. Hoje, e mais do que nunca, respiro o mesmo perfume que outrora tanto inebriou as iluminadas mentes de outrora.




Pedro Belo Clara.   

domingo, 6 de outubro de 2013

UM DOMINGO DIFERENTE


Como o caríssimo leitor está por certo recordado, na última crónica que tive o imenso prazer de assinar neste espaço referi, de entre outros assuntos, as eleições autárquicas que num domingo próximo se desenrolariam em Portugal. Ora, acontece que esse domingo já se findou e são os sobejos do mesmo que hoje compõem a razão desta crónica.

Sempre que o clima eleitoral se faz sentir, evoco os dias da minha infância. Não propriamente das enfadonhas campanhas, dos discursos que para a criança que era se afiguravam vazios e complexos (estranha virtude!) ou dos habituais passeios pelas cidades que, à boa moda circense, se enchiam de bandeiras e aplausos. Nada disso. Tais etapas eram apenas os passos necessários que nos guiariam ao grande dia. E é a ele que me referido: ao grande dia! 

A bem da verdade, pouco mudou desde então. Pelo menos, no que ao prelúdio do processo diz respeito. Em geral regra, e digo isto com um certo pesar, as campanhas continuam enfadonhas, os discursos vagos (ainda que implacavelmente oportunistas) e os passeios de angariação de votos são completos desfiles circenses. É, assim, quase sempre difícil compreender a linha da verdade no meio de tanta máscara. Se me refiro agora a tais circunstâncias, é porque as mesmas me incomodam; desde logo, pelo aroma a falsidade que exalam. Ainda assim, gosto de acreditar nessa espécie em extinção que é o “político honesto”.

Contudo, nos tempos da infância, era óbvio o meu diminuto interesse por tais questões. É que nem sequer delas me apercebia. Eram, como referi, um crescendo de acontecimentos que, invariavelmente, iam desembocar do dia da votação. Esse sim, para mim, era o maior feito! Havia algo de especial em dias como aquele. Não só por ser o que era, claro, mas pelo próprio acto de exercer um «dever cívico». Creio até ter cultivado um certo deslumbre sobre essa expressão no imediato momento em que a escutei - «dever cívico». Ah, as coisas maravilhosas que povoam o mágico mundo dos adultos…

Lembro-me perfeitamente de, pelas várias ocasiões que ao longo daqueles anos surgiram, fazer questão de acompanhar os meus pais ou avós no exercer de tal acto indispensável ao bom funcionamento de uma democracia. Como os dias eram sempre de fim-de-semana, a ocasião era duplamente especial. Quem não aprecia um domingo diferente? Os melhores fatos eram usados, os cabelos aprimorados, as gravatas bem afinadas! Excluindo o meu pai, diga-se, pouco ou nada dado a esse apêndice de seda. Mas… que importava isso? O dia era de voto! Quantos suspiros eu soltava, em ânsias contidas, sonhando pelo dia em que eu próprio estaria apto, segundo a sociedade, a exercer tão sagrado direito… Até lá, teria de me contentar em dobrar pequenos papéis com cruzes e depositá-los na minha urna improvisada, o pequeno caixote do lixo doméstico. Vazio e limpo, claro está (pois de sujeiras já o mundo político está cheio!).

Julgo que o meu encanto, mas do que o acto em si, residia na mágica atmosfera que àqueles dias era inerente. A importância, senão mesmo crucialidade, da acção propriamente dita era algo impossível de ignorar. A simples ideia de um mero cidadão poder contribuir para os destinos do seu país era, de igual modo, a grandiosa expressão que resumia todas as envolvências experimentadas. Fascinante!

Mas o dia não se queria assim tão incipiente ou incompleto. O dever era orgulhosamente cumprido pelos adultos – enquanto eu, sempre curioso, viajava de cabine em cabine para conferir as opções políticas dos familiares –, mas, findado o acto, todos nos reuníamos para desfrutar da seguinte etapa do nosso passeio de domingo. Como a hora escolhida para votar era geralmente a matinal, seguia-se, obviamente, o saborear de uma refeição a preceito. Por isso, os dias de voto eram, invariavelmente, dias de celebração familiar. Talvez esse aspecto só sublinhasse o gosto e a importância que à data eu conferia. Mas não éramos caso único. Era comum, lembro-me, ver casais com crianças como eu, e até indivíduos mais idosos, na companhia dos seus deslocarem-se aos locais de voto de carro e, cumprido o «dever cívico», seguirem para um restaurante com o intuito de partilharem os remanescentes instantes daqueles domingos felizes. Parecia ser algo inquestionável: dia de votação implicava almoço de família.

Satisfeitos os apetites, retornávamos ao lar e, ao início da noite, conferíamos as primeiras projecções dos resultados que seriam os finais. Depois, era celebrar ou resignar conforme os ânimos e as inclinações de cada um. E adormecer feliz, claro, após um dia muitíssimo bem passado na carinhosa companhia de quem mais amava (e amo! – é importante que acrescente esse facto). Simples ou não, era a nossa tradição.

Mas os anos passam e certas coisas tendem a tombar nos negros abismos do olvido. Não só para os próprios como para quem os rodeia. No passado domingo, como o leitor já o sabe, fomos a votos. É verdade que a persistente chuva que se abateu por Lisboa naquele dia afastou muitos eleitores das mesas de voto, enquanto que para os mais resistentes apenas terá estragado um ou outro plano. Mas… confesso que senti a falta dos carros com famílias dentro, dos grupos que habitualmente  conversavam à entrada do edifício, das pequenas multidões que entravam e saiam e, claro, dos almoços subsequentes. Na verdade, esse bom hábito tem caído em desuso. E este dia de votação revelou-se um dia de chuva, tão banal quanto qualquer outro.

Não sou homem de me prender a passados. Contudo, acredito que o melhor de nós, sejam práticas, tendências ou hábitos, se ainda nos servir, merece ser aplicado em algo de concreto. Tal poderá recordar um passado ido, sim; mas não mais será esse passado. Se atentarmos bem, veremos que o Tempo é algo de impermanente. Por isso, aquele passado nunca mais o será. Evoluirá, apenas, para uma outra forma temporal.

Por razões pessoais, foi-me impossível exercer o dito «dever cívico» de manhã. Mas de tarde, debaixo daquela chuva ininterrupta, não deixei de o fazer. Como poderia? Eu, que sempre havia esperado pelo dia dos meus dezoito anos para legalmente estar apto a votar? Então, entrei no edifício da Junta onde resido e juntei-me alegremente à população que por lá se quedava. Desde logo me deparei com uma das virtudes da democracia, o governo do povo para o povo (em teoria, pelo menos). Como é habitual em dias de votação, junto às urnas estão outros eleitores como nós, previamente seleccionados para o efeito, habitantes da mesma freguesia em que votamos. E eles também detém o direito ao voto, obviamente, mas ali permanecem no cumprir de um trabalho deveras comunitário. Nada de políticos, polícias ou elementos de qualquer instituição governamental. Pessoas comuns, como eu e o estimado leitor, a orientar um processo tão importante como o eleitoral em clima sóbrio e familiar. É uma bela imagem, não acha?

Cumprido o dever e suportada a chuva, o retorno ao lar. Desta vez, não haveria passeio ou restaurante. Convívio familiar, apenas, no calor doméstico. Enquanto se aguardavam as primeiras projecções, é claro. Parece simples, não? Mas é algo de reconfortante. E essa é a primeira base para um sorriso sincero eclodir. Assim como foi no outrora, é-o, em moldes adaptados, no presente. Em memória de outros dias e das queridas presenças, entretanto idas, que também os coloriam. Que outros não mantenham o legado em que foram criados, é um problema dos mesmos. São opções. Mas perdem algo de precioso, em minha opinião. Prefiro prolongar a atmosfera em que cresci. Pelo menos em minha casa, a boa tradição ainda é o que era. E somente isso importa.





Pedro Belo Clara.

domingo, 29 de setembro de 2013

A VALIOSA PROMESSA DE UM VOTO


Deu-se o caso em Lisboa, cidade onde nasci e vivo, mais precisamente numa estreita rua que muito me é familiar – ou não tivesse habitado lá, de forma quase permanente, durante os primeiros dezassete anos da minha vida.

Como se compreende pela minha histórica ligação ao local, possuo razões bastante válidas para continuar a frequentá-lo. Não me refiro apenas às imensas memórias daquele lugar que por meus olhos foi contemplado e por minha alma sentido ao longo das diversas estações que compõe um só ano, ainda que, como no início referi, tenham sido muitos os que lá passei. Refiro-me antes às pessoas que adornam tais espaços e que, na maioria das vezes, fazem deles aquilo que são.

Foi, assim, num retorno a um passado tantas vezes revisitado que o motivo desta crónica se sucedeu. Por outras palavras, visitava um familiar quando a história em causa chegou ao meu conhecimento. Como expliquei no parágrafo anterior: não só de memórias pessoais se ornamentam os lugares. As pessoas são igualmente uma inestimável parte desse património. E, apesar desse capítulo da minha vida ter já conhecido o seu término, continuam a subsistir razões para que retorne ao mesmo. E ainda bem que assim é. Pelo menos, por enquanto. Creio verdadeiramente que todo o vinho merece ser saboreado em pleno antes que a garrafa que o guarda fique vazia. Por isso, não se trata de um «passado extinto»; antes de um «passado» que… evoluiu para «presente».            

Mas não me alongarei mais em assuntos que não sejam tidos como principais. Assim, como dizia, àquele lugar tinha regressado com o intuito de visitar um familiar (e, claro, recordar alegremente outros tempos). Mas antes que relate o resto da história, devo esclarecer o leitor do seguinte: a rua a que me refiro é, a bem da verdade, uma longa calçada. Até o seu próprio nome sublinha essa evidência. Ela vem desaguar, no sentido de quem a desce, numa outra rua, sempre movimentada, e nasce, se continuarmos com a visão do transeunte que a desce, no centro da zona que confere o nome à freguesia onde se situa. Em suma, é longa, estreita e, num determinado ponto, bastante acentuada.

Devo, porém, realizar uma nova pausa e proporcionar ao meu caro leitor brasileiro o seguinte esclarecimento, perfeitamente justificável e, espero, revelador do significado de certas terminologias que irei utilizar. Cada cidade, em Portugal, é constituída por diversas freguesias (não confundir com bairros). No fundo, zonas de um determinado espaço citadino que contam com aquilo a que chamamos de “junta de freguesia”. Assim, cada freguesia possui a sua junta e cada junta o seu presidente. É a expressão mais básica do poder político – o poder local. Por sua vez, cada cidade possui a sua “câmara municipal” e, consequentemente, o seu presidente. É esta figura que assume e desempenha um papel semelhante ao dos “prefeitos” que tão bem os brasileiros conhecem. E sempre que se elegem novos presidentes, para as juntas e para as câmaras, designamos essas eleições de “autárquicas”. Afinal, servem para eleger os novos membros das diversas autarquias do país. Compreendido?

Continuemos: acontece que, como consequência de uma intenção da junta de freguesia local em renovar o pavimento das estradas e ruas da zona, a dita calçada encontrava-se à data (e, confesso, ainda se encontra) em plenas obras de reabilitação. É claro que empreitadas do género não se operam sem a habitual confusão e ruídos próprios dos trabalhos, adensados pelas persistentes queixas de moradores e comerciantes. É inevitável. E, ao mesmo tempo, cómico e antagónico. A intenção de recuperar a calçada foi de pronto louvada; contudo, a obrigatoriedade de passar pelos dias de repavimento, acerto de passeios, remoção de pedras e nuvens de poeira já não é tão pacientemente suportada. O português é um povo pleno de contradições…

No entanto, o processo de melhoramento da via estava demorado. E, como tal, a paciência dos locais cada vez mais extinta. De certa forma, compreendo. Tais obras mobilizam meios e a vida habitual da rua deixa simplesmente de existir. Tudo o que se faz, desde o caminhar sobre o passeio ao entrar num restaurante para almoçar, é condicionado. Não é agradável, obviamente. Mas, em todo o caso, necessário.

Um comerciante local, proprietário de um restaurante, andava particularmente irritado com os ruídos e com a própria demora na conclusão dos trabalhos. Isto sem contar com os avanços e recuos que o processo ia registando. Ora compunham e saiam do local, ora retornavam e compunham-no de novo. Todos temem, neste ponto, perder o habitual fluxo de clientela. Desde o dito dono do restaurante ao proprietário do cabeleireiro em frente. Mas era algo mais do que isso. O pobre homem queixava-se essencialmente da própria confusão, das redes, pilares, fitas e demais obstáculos que permaneciam espalhados pela rua e, muitas vezes, mesmo em frente à porta do seu estabelecimento. Oh, por quantos dias, pela manhã, teve ele de varrer a poeira que adormecia na entrada do restaurante, de forma a torná-lo novamente apetecível?

Mas um comerciante é um homem de contactos. Principalmente os que dirigem restaurantes de afluência local. É um privilégio conhecer a freguesia… Nunca se sabe quando dela iremos precisar. Além do mais, todos somos humanos… Todos necessitamos de uns minutos para desfrutar de uma refeição verdadeiramente retemperadora. Por isso, acabamos sempre por frequentar lugares do géneros, onde todos se conhecem e tudo (quase) se sabe.

Assim, quis o acaso que num belo dia pisasse a soleira da porta do estabelecimento do enfurecido comerciante uma senhora que, lá está, por acaso era assessora da presidente da dita junta de freguesia. Oportunidades dessas jamais se poderão desperdiçar. E o bom homem, convicto, não o fez. Ainda para mais, encontramo-nos em plena época de eleições autárquicas, onde tudo o que um presidente puder fazer em nome da sua excelsa imagem é, por certo, realizado. Ora bem: a dita senhora não perdeu pela demora. Escutou tudo e algo mais ainda. Anotou mentalmente todas as queixas, por mais minuciosas que estas fossem, sem esboçar, assim me contaram, a mínima reacção. Nada como dedicar ao povo a merecida atenção… No fim, para terminar em grande êxtase o seu poderosíssimo discurso, o comerciante em causa usou a mais que evidente “ameaça”: «ou isto muda, ou a sua presidente deixa de contar com o meu voto!».

Pelo que sei, o homem nem nunca deve ter votado na sua vida. Mas fez bom uso do seu espontâneo recurso. Digam o que quiserem dizer, mas a verdade foi esta: no dia seguinte, os sobejos dos trabalhos naquela parte da calçada tinham sido removidos, não existiam fitas a bloquear a via e a mesma, de forma tão fluida, havia sido reaberta ao trânsito. Não obstante, os dedicados trabalhadores foram incumbidos de novas ordens. Para quê reparar apenas um troço da calçada, quando se pode reparar a totalidade da mesma? Pois bem, foi isso mesmo que foi decretado. Ah, as valiosas promessas de um voto… Assim se prova que, querendo, um político consegue realmente empreender. Só gostaria de saber qual será a desculpa que o nosso amigo comerciante encontrará para se justificar, caso a actual presidente não vença as eleições do próximo domingo e lhe envie alguém para prestar as devidas contas… Uma súbita gripe? Bem, vejamos o lado positivo da empresa: pelo menos, as ruas da freguesias terão outra beleza. E já será caso para dizer: «finalmente!».






Pedro Belo Clara.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

UM CENÁRIO BUCÓLICO


Nascido e criado na grande cidade, no seio de movimentadas avenidas, da azáfama quotidiana, das nuvens de fumo, das ondas de ruído, dos sempre apetecíveis cinemas e dos relaxantes domingos no parque, quis o destino, sempre irónico em suas intenções, que o autor desta crónica fosse portador de uma natureza completamente antagónica em relação ao espaço que o abraçou. Em suma, nasci “do avesso”. Passo a explicar: apesar do meio urbano ter sido aquele que me viu crescer ao longo dos anos, é íntima a minha ligação com as atmosferas bucólicas e os seus motivos campestres. Talvez tenha vindo ao mundo já com esse “erro de ligação” ou, simplesmente, a vida citadina, à proa do seu peso e cansaço, me tenha cultivado a atracção pelo oposto: o campo. Seja como for, o destino foi deveras irónico em suas concepções. Não seria antes de esperar que um citadino fosse um confesso amante do meio onde nasce, cresce e vive? Talvez… Se a vida fosse uma ciência certa e desprovida de excepções. Mas convenhamos: ao assim ser, onde residiria o seu interesse, o seu desafio, a sua beleza?
Eis-me, então, com um pé em dois mundos, bem sobre a mais velha linha que divide uma das mais velhas dicotomias existentes: cidade e campo – os dois lados de uma só fronteira. Não obstante as intensas e obscuras questões inerentes à própria existência, que sempre atormentam o Homem que sobre elas se digna a discorrer, vejam, para derradeiro cúmulo, a constituição de tamanha má-formação logo à nascença!  Nascido na cidade e um confesso amante do campo… Que melhor epíteto haverá? Enfim, dos inconformados será o reino dos céus. Ou talvez não. Se um dia eu o comprovar, talvez regresse para confirmar a premissa que lancei. Combinado? Por enquanto, resta pensar que este estranho fado, esta inata concepção e sua subsequente errância, detêm um válido motivo de ser. Mas isso é já uma questão de fé. E a mesma, ao ser deveras paradoxal, anuncia uma árdua explanação que não convém ao propósito deste texto.
Entretanto, e porque viver “do avesso” não é uma experiência propriamente agradável (experimente o caro leitor, se for um adorador dos trópicos, passar um mês inteiro na Suécia, onde as horas de sol diário por vezes se contam pelos dedos de uma só mão!), este bucólico amor que aqui confesso teve, necessariamente, de encontrar uma via para fluir, uma forma para se manifestar. O implacável destino que tira, é certo, da mesma forma dá. Assim, no tempo que provou ser o adequado, dispus da felicidade de encontrar um autêntico refúgio campestre a “apenas” cem quilómetros da capital (e digo “apenas”, com as aspas devidas, pois para os meus caríssimos amigos brasileiros essa distância é uma perfeita ninharia… É o que dá viver num país imenso como é o de Vera Cruz. Mas acreditem: para um europeu comum, cem quilómetros é uma distância considerável).
Às divindades, pagãs ou não-pagãs (qual delas passível de louvor?), verdadeiramente me gratifico por tamanha achado. Tanto, que o meu epíteto merece agora uma alteração: nascido na cidade, mas um orgulhoso habitante do campo. Ainda que, a bem da verdade, seja na capital que passo, pelos mais variados motivos, a maior parte do meu tempo, envolto nos habituais alvoroços e demais devaneios citadinos. Mesmo assim, é óptimo poder desfrutar da hipótese de um refúgio e de todas as opções que ele nos concede. Pois o desabrochar das flores, a maturação dos frutos ou o acobrear das paisagens são milagres que o cenário urbano nem sempre consegue oferecer na sua máxima plenitude. E as caminhadas por alamedas de pinheiros? E as visitas às ruínas de antigas propriedades? Nessas alturas, recorda o Homem que, afinal, não é apenas um fatigado corpo, mas igualmente um espírito de considerável leveza.
De tanto nos habituarmos às virtudes destes locais, acabamos por construir e a eles associar a venerada imagem de um santuário. Pois são qualquer coisa de sagrado, de virgem, de harmonioso. São, no fundo, os palcos que marcam o retorno do Homem aos mais primordiais aspectos da sua natureza primitiva. Por isso, sentimos uma fortíssima necessidade de os defender e preservar. Mas os anos guardam algo de obscuro em seus fundos bolsos… O dito progresso, se é inevitável, é por norma pouco sustentável. Ainda que pessoalmente não creia que assim deva ser, o Homem teima em optar por essa via. E as consequências vão estando à vista de todos nós.
Foi num dos inúmeros passeios que tenho por hábito dar pelos bucólicos trilhos que tanto me atraem que senti, pela primeira vez naquelas terras, o avanço da cidade. Num dos terrenos que ladeavam a estrada, um local de tamanha vegetação, densa e orgulhosamente imponente, constatei que o que outrora tanto o caracterizou não mais subsistia. A maior parte das árvores lá existentes haviam sido cortadas com o intuito de se proceder à venda da respectiva madeira. Não direi que a imagem era desoladora… Mas incompleta. Até que é comum, por estas paragens, certos proprietários concederem as suas terras ao cultivo do pinheiro e do eucalipto, para que, no tempo adequado, possam recolher os lucros de tal operação. Mesmo os que ao abandono se encontram acabam por ser alvos de “limpezas” do género. Os terrenos possuem donos, negligentes ou não, e, por isso, é justo que cada um faça o que melhor entende com aquilo que é seu. Ademais, existe uma legislação adequada e ela, até ver, tem sido cumprida. Mas… ao olhamos uma paisagem que nos habituámos a considerar como parte de um íntimo santuário, como nos poderemos sentir quando assistimos à profanação do mesmo?
Não deixa, assim, de sobrar um gosto residual cujo sabor não bem se compreende, seja uma sensação de inocência perdida ou de harmonia devassada. É verdade que o desbaste até revelou novos trilhos até então engolidos pela vegetação circundante e uma velhinha casa de pedra (das primeiras a existirem na região) em ruína absoluta, mas tais consolações não se equiparam aos pinheiros que valsavam com o vento e guardavam o viajante dos abusos de um sol duro e ímpio. E o caso não é virgem: noutros locais tenho assistido ao mesmo acto. Se não ao abate de certas espécies de árvores, ao desbravar de terrenos com a intenção de neles realizar despejos de detritos de construções civis. A mudança voa como a brisa da manhã… Então, e mais do que nunca, o havia sentido. Os tentáculos da cidade, envergando a máscara económica, avançam a ritmo lento, mas seguro. A magia que inspirava fadas e duendes dissipa-se perante o esventrar de campos cada vez mais áridos. Algo que tão magistralmente perdurou, não mais se verifica. E o tão amado refúgio corre o risco de deixar de o ser.
Aquela caminhada fomentou em mim diversos pensamentos. E com perfeitas justificações. De um bucólico cenário em particular, facilmente se extrapolaram as conjugações mentais para a generalidade dos acontecimentos. Na verdade, não mais irei prender o olhar no cume daqueles altivos pinheiros, tão briosamente erguidos de encontro aos céus de safira. Outro motivos de contemplação sobejam, é claro, mas há algo que se perde sem que, em nome de um equilíbrio crucial, um outro seja concedido em troca. Há mais de dez anos que me demoro por estes campestres cenários… E nunca, como antes referi, me tinha deparado com sucedidos do género. Seja pela falta de experiência no caso ou pelo alarme que ele indirectamente constitui, a constatação do facto não se revela simples de compreender e aceitar.
É importante referir que nada tenho contra os madeireiros: compreendo o seu trabalho e respeito as suas necessidades. Contudo, sem o equilíbrio necessário à boa administração das acções a empreender, perder-se-á o que de mais natural e belo dispomos em nossas paisagens. E mesmo assim, quando se adopta um método de replantação e corte, não deixa de latejar uma certa dor por entender que tais bosques não mais serão os mágicos e incorruptíveis bosques de outrora. Algo que nós vimos e sentimos, não mais poderá ser visto ou sentido da mesma forma por gerações vindouras. Se agravarmos a questão, estaremos já a lidar com actos que trarão consequências a serem pagas pelos filhos e pelos netos de quem as criou: a gananciosa desflorestação, claro está, que apenas beneficia, e por pouco tempo, as carteiras que se recheiam com o dinheiro sujo de tão desrespeitosas práticas. Não é esse o caso do refúgio que vos falo. Pelo menos, ainda não. E se um dia o for, acredite o leitor, prefiro não estar vivo para o testemunhar. Creio que não aguentaria o terror do cenário. É de família: o meu trisavô abriu o caminho à morte quando se deparou com o abate das inúmeras árvores de fruto que ornamentavam a sua grandiosa quinta (o acto, ordem do governo fascista de Salazar, fora justificado pela vaga e nada reconfortante máxima “interesse nacional”). Portanto, é certo que comigo não seria diferente.
O excesso da exploração florestal é uma chaga que assola diversas nações, sem que os governos, muitas vezes participantes dos lucros dessas grandes corporações, se importem com os nefandos efeitos de tais empreendimentos. É uma prática corrente, mas de futuro bastante sombrio. Chegará o dia em que o Homem compreenderá, por fim, que não pode viver apartado da sua mais primordial origem? Gosto de pensar que sim. Seja pela via mais suave ou pela mais severa, só espero que quando esse raro instante de iluminação lhe surgir não seja já tarde de mais.





Pedro Belo Clara. 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

UMA OBSERVAÇÃO SUBTERRÂNEA


Simples gestos, inocentes causas, profundas manifestações. Deu-se o caso em questão numa viagem, de entre outras tantas, pelo metropolitano de Lisboa. Nesta situação em particular, uma até bastante curta; mas longa o suficiente para testemunhar a incidência que me preparo para relatar, um sucedido passível de registo, de debate e de esclarecedora conclusão.

Confesso, antes de mais, que retiro uma grande satisfação de tais jornadas subterrâneas. Pelos seus princípios, pela sua envolvência, pelos seus “acasos” sempre certos e significativos. Isto, é claro, se exceptuarmos as ditas “horas de ponta”, o maior terror de todo o viajante que se declara um amante confesso das viagens serenas. De facto, como desfrutar da plenitude de tudo o que de bom nos oferecem entre carrosséis de gentes que, em múltiplas cascatas, se parecem lançar de toda e por toda a parte visível e palpável? Atenção: não classifico a tarefa de impossível! Apenas de… complexa. Pois, no seio de tamanhos tumultos, sempre se revela árduo o ofício de focarmos momentaneamente a nossa atenção naquilo que nos rodeia. E daí, posteriormente, poder capturar a mais pitoresca das imagens, a mais simbólica das situações. Admita agora o estimado leitor: se optar por assumir o papel de um passivo observador, quanto entendimento não poderá aflorar daquilo que vê em seu redor? Que ideias, pensamentos, conjugações, axiomas filosóficos? Compreenderá agora, por certo, se antes não havia ainda compreendido, o aspecto deste assunto que foco.

Mas quem, em boa verdade (e pela verdade se diga), consegue atentar nos diversos sucedidos que despontam, a cada instante, em torno de si próprio, quando a única vontade de quem contempla se prende com o agarrar de um espaço vazio numa carruagem apinhada? Um pedaço de ferro disponível, sequer, que o ampare nos sempre imprevisíveis arranques do “comboio”? Principalmente, quando o derradeiro desejo reside no escutar da simpática voz electrónica que anuncia a estação esperada… Até que ela se revela, qual sol entre as nuvens, brilhando de forma profética e redentora, quem, de boa mente, poderá tecer pensamentos sobre o que vê? Tudo isto, não esqueçamos, entre brumas compostas pelos mais diversos (e característicos) perfumes e ecos de musicas reproduzidas em modos gritantes. Leitor: como vê, contemplar no metropolitano pode revelar-se um trabalho deveras hercúleo! Para observar, importa estar disponível e receptivo. Sem dogmas, preconceitos ou outras restrições. Aberto ao que vier, apenas. Como se um rosto sorrisse e se entregasse à fluidez do vento que passa. Então, tudo seguirá o seu ritmo natural.

Enfim, que todo este longo enunciado não nos afaste do principal assunto desta crónica dita “subterrânea”… Ou não se desse o caso que a sustenta no específico local em que se deu. De facto, no dia em que tudo se sucedeu, a carruagem que me transportava até se encontrava preenchida… Mas sem tocar, no entanto, os seus extremos mais fundamentalistas. Permaneci de pé ao longo de toda a viagem, embora devidamente amparado e confortável em meu recanto – quase que direi – improvisado. Concluir-se-á, portanto, que, mesmo sem dispor de uma “paz absoluta”, tinha ao meu serviço as condições mínimas necessárias a uma observação atenta. Mas até nem seria necessário tanto, acrescente-se, não fosse o caso dar-se bem perto de minhas barbas. Por mais aparadas que estivessem (e estavam, eu o garanto), foi à curta distância de um toque, tão ligeiro e sem esforço de impulso, que tudo se sucedeu. É natural, nesta fase, que o leitor se questione: para quê observar, quando simplesmente se pode empreender uma viagem da forma mais comum? Viajar, apenas, sem enlevos ou anunciações? Poderia optar por não o fazer, é claro sim. Mas, se assim fosse, não sobejaria uma crónica como esta (enaltecer o valor da mesma não é um envaidecido propósito meu, não… Faço-a pelo registo que os sucedidos dignos de tal merecem e por aquilo que podem transmitir através dos exemplos que comportam). Além do mais, parece que contraio um sério interesse pela arte observadora… Tanto quanto viajar pelas linhas de um qualquer metropolitano. Enfim… Se a cada Homem é-lhe dada a benesse de cultuar uma íntima loucura, seja ela de que índole for, detenha ela as divisas que detiver, aceite-se, então, este sadio devaneio. Que mais não é do que um descontraído entretenimento; uma forma de tocar, conhecer e compreender. Apenas.

Se recuarmos agora um pouco no discurso que tenho vindo a registar, recordaremos a confissão expressa que revelei: satisfaz-me a viagem metropolitana. A raiz desse sentir é profunda, e pauta-se, essencialmente, por uma sensação íntima de estranha beleza, sedutora e cativante, que irrompe do silêncio, quando o há, entre “estranhos”. É uma melodia que se escuta de forma melancólica, com traços de cansaço, abandono e indiferença. Embora sempre reserve um lugar para o sorriso, para o breve toque, para o súbito cruzar de olhares. Ali, numa pequena extensão onde os passageiros se confinam, o espaço que os separa, em ilusão, é o espaço que os une. Se espremesse-mos a imagem, retiraríamos o sumo da mais pura humanidade. Quando refiro “pura”, não pretendo mencionar a ausência de alguma “sujidade” moral ou espiritual – nada disso –; antes o que de mais básico e primordial assiste a nossa condição, comum a todos nós: dores, alegrias, tristezas, dúvidas, preocupações, inseguranças, certezas, paixões. Ser humano é experiênciar um mundo de dualidades, é sentir cada recorte desses e de muitos outros sentires. Ali, numa simples carruagem, os “estranhos” revelam-se família e, entre murmúrios, soltam as suas mais íntimas confissões. Recordam-se os laços que, no fundo, sempre nos uniram, mas que pela ilusão do real foram sendo esquecidos. Nunca deixámos de ser uma coisa só. Devo dizer, aliás, que esse pensamento fascina-me de sobremaneira. Tanto que, anos atrás, compus um conjunto de poemas (quatro, no total) que descrevem toda uma viagem pelo metropolitano lisboeta. Um registo poético, portanto, de cada rosto observado e de cada sentimento sentido. Com os devidos pensamentos e conclusões, como não poderia deixar de ser. A todo o leitor que por tal se interesse, fica no ar o mote para sua procura.

O famoso caso que testemunhei, apesar de tão simples e espontâneo, deteve também a sua quota parte de humanidade. Não no sentir – isto é, na recepção do que se percepcionou –, mas no gesto em si e na profunda significância do mesmo. Em plena viagem, numa determinada estação, contemplada pela linha que frequentava, um grupo de três jovens entrou na carruagem e, de pé, tal como eu, amparam-se o melhor que conseguiram junto das zonas de apoio ainda livres. Como antes revelei, por obra de um qualquer acaso consciencioso, que se preparava para eleger uma testemunha adequada ao evento que se aprontava a despontar, permaneceram bem junto de mim. O grupo compunha-se por duas raparigas e um rapaz, provavelmente partilhando todos da mesmíssima idade (com uma certa segurança, arriscaria as dezasseis ou dezassete primaveras). Mais do que pela indumentária, típica, na sua globalidade, de jovens citadinos em tão tenra idade (se exceptuarmos o chapéu preto que uma das amigas envergava, qual manequim em dia de desfile), mas pelas mochilas que carregavam, era possível concluir que se preparavam para uma óptima tarde de praia.

Até ao momento, nada de pouco usual há a registar: três jovens, amigos fiéis, prontos para desfrutar da aprazível companhia de seus semelhantes, sorrindo, entre habituais brincadeiras de juventude, no seio de uma boa conversa. Mas, de súbito, sem que nada o previsse, uma das raparigas, senhora de uma ímpar beleza de verdes olhos e acobreados cabelos, revelou o que até então havia permanecido oculto à minha percepção. Numa de suas mãos, pendente, guardava um pedaço de pão, mínimo. Mas não julgue aquele resíduo alimentício como um remanescente de abastada sanduíche… Muito pelo contrário! Era um simples pedaço: pão, apenas, seco e gretado, que em seu diâmetro nem preenchia a palma da mão que o segurava! Provavelmente, seria o sobejo de um pão maior (isto é, completo) que a dita moça, sozinha ou em boa companhia, havia consumido.

Na solidão muito se consome, mas pouco se partilha. Pois a exteriorização é nula, em regra geral. Assim, imagine-se o significado maior do dito pão se partilhado tivesse sido, antes, em clima de amigável confraternização. Essa é, aliás, no que a esta crónica diz respeito, a palavra a reter: partilha. É que a jovem, por fim, num gesto tão natural quanto espontâneo, retirou uma parte do já se si exíguo pedaço de pão e, imagine-se, levou-o à boca de um de seus amigos. Enquanto este pacientemente o deglutia, a bela jovem repetiu o seu gesto e “alimentou” o outro amigo que permanecia em falta. De seguida, e ainda sem se extinguir, por completo, o naco do famoso pão, serviu-se a si própria, enquanto se ia preparando para renovar o ciclo da dádiva. Perante isto, que imagem, que alegoria, que evocação sobressai diante da nossa percepção? Uma partilha de pão entre amigos, sem que seja, obviamente, numa derradeira ceia?  

Que de antemão soubesse, nenhum dos jovens era membro de uma qualquer comunidade religiosa, dada, talvez, a práticas daquela índole; tampouco pareciam carecer de um expresso auxílio financeiro para que nada tivessem como alimento, à excepção de um pedaço de pão seco e gretado. Nada disso. A própria indumentária, as conversas e os comportamentos nunca sugeriram tais coisas. É claro que tudo poderia não passar de uma simples brincadeira entre ambos, de um peculiar modo de terminarem um pão que havia sido repartido no início da viagem daqueles três jovens. Tudo isso seria exequível; e importa que se abram, aqui, os caminhos do entendimento, por forma a permanecermos, sempre que possível, receptivos a toda a hipótese. É por isso que afirmo: não desejo ver, na paisagem, elementos que lá não estão; não desejo tornar reais aspectos que são meras assumpções. É vital que sejamos não só coerentes no assunto que relatamos, mas igualmente fiéis ao que foi percepcionado. Contudo, eis o que se sabe, com plena convicção: o caso deu-se e eu fui a sua testemunha; o gesto consumou-se da exacta forma em que o relatei. O resto, como sempre acontece, ficará ao critério de quem o quiser interpretar.

Pessoalmente, tal sucedido instigou uma reflexão em minha pessoa. E considero que ambos, autor e leitor, poderemos reservar um pouco do nosso sempre escasso tempo para reflectir sobre ele. Não no acto em si, é claro; mas na profunda significância do mesmo. Ao constatarmos um gesto tão cristão a implodir, assim, de uma acção tão natural, como se enraizado estive já, de forma inata, na alma daquela jovem, é difícil não indagar sobre a inconsciente intenção que o fomentou. Apesar do toque algo religioso que o caso parece assumir, peço que as atenções se desviem do mesmo… Pois não creio que seja a religião que o suporta, em teoria, o elemento a merecer aqui um digno sublinhado. Toda a religião é uma via; e todas essas vias, com mais ou menos enlevos, acabam por desembocar no mesmo destino. Mais do que a religiosidade em si, independentemente da sua origem (toda ela válida e passível de ser respeitada), o que imperou no acto em questão foi a mais primordial premissa da mais vera das “religiões”, aquela que todo o Homem em seu coração poderia (se não mesmo deveria) cultivar: a fraternidade. Que laço mais forte e sincero poderá advir de outras filosofias e dogmas obscuros do que do próprio sentir fraternal? Esqueçamos a religião, foco de tanto conflito e dúvida; atentemos no mais natural dos gestos que um Homem poderá ter para com o seu semelhante! Foi essa linha de pensar, leitor, que mais se vincou na minha constatação do sucedido… E do quanto ele, o acto, serviria de exemplo para muitos de nós. Se o nosso quotidiano se povoasse de gestos assim, provenham eles de inocentes brincadeiras ou de inatas predisposições fraternas, de amor e compaixão, este velho mundo seria, por certo, um local bem mais luminoso do que aquele que hoje conhecemos.






Pedro Belo Clara.