É extraordinariamente
fiel e exacta a forma que
a vida encontra
para se plasmar
no
caminho pelo viajante
percorrido,
seja ele qual for. Aliás, não é a própria vida um caminho de
existência? Com a devida
agudeza de percepção, compreenderemos
que inúmeros aspectos de um
se podem retirar e/ou aplicar no outro. Tal
facto é a prova da sua indissociabilidade.
Darei
um exemplo: sempre que
empreendo uma caminhada, assisto
em movimento contínuo ao que
foi, é e será. No fundo,
tudo isso se assume e manifesta numa mera ilusão. De
certa forma, nada foi nem
nada será: tudo é. O
simples acto de caminhar é que, como acontece ao longo de uma
existência, instiga essa toldada assumpção. É preciso transcender
o tempo para racionalmente entendê-la. Partindo
dessa ideia, constatamos
como na matéria se desenvolve a prática de imensos preceitos
teóricos, já que ela
é o palco da expansão do próprio
espírito. Será, no fundo, como entender o caminho físico que se
percorre como uma metáfora da existência. Na verdade, é um
exercício pessoal que, somado ao benefício medicinal de “andar a
pé”, reúne inúmeros proveitos para quem o pratica.
Contudo, importa que no seio de
tanto fascínio e deslumbre não ceda o espírito a certas
“tentações” que também povoam o quotidiano da vida mundana.
Nomeadamente, ao apego. É verdade que uma paisagem nova ao olhar
sempre tende a prendê-lo, inundando a alma do caminhante na mais
fresca das fragrâncias. Afinal, é algo desconhecido, e bem sabemos
das
virtudes, esperanças e oportunidades que as coisas desconhecidas
podem prover. O próprio Thoreau afirma-o: «uma paisagem nunca vista
é uma grande felicidade, e em cada volta há sempre algo novo».
Será mesmo esse cenário, por vezes, o tónico ideal para dissolver
a monotonia que os velhos caminhos, de tão gastos que estão, podem
fomentar. Contudo, se o
problema é a repetição do cenário, também
para tal se encontrará uma solução. Vejamos: será que o que se
estagna e se repete é o cenário envolvente? Ou a mente do viajante
que por dias sem conta o contemplou? Pois bem, eis a derradeira
constatação: tudo surgirá
renovado se a mente de quem observa renovada estiver.
Uma das maiores e mais proveitosas valências desta prática
prende-se com isto: compreender como o milagre da vida se renova no
nascer de cada dia.
Mas retornemos ao apego. Afinal, se
nos deixarmos guiar pelos frementes impulsos de um qualquer
deslumbre, corre-se o risco de para com ele cultivarmos uma espécie
de atracção e consequente aprisionamento. Que em nada se relaciona,
sublinho, com o gosto sentido em ver ou provar uma
certa atmosfera, cenário ou
demais elementos. O apego é uma sensação pouco luminosa, com
raízes fundas no ser. Nasce do medo, nomeadamente do temor da perda,
e arrisca-se a crescer infindavelmente se for alimentado pela
substancial força
das emoções. Em casos mais graves, roçará os limites da obsessão.
Mas o ofício sobre o qual tenho vindo a divagar (admito a minha
falta, leitor, e por ela peço a sua indulgência) exige abnegação,
despojo e, principalmente, desprendimento... Passada após passada,
tal premissa tornar-se-á translúcida à compreensão do viajante.
Num de meus livros, em jeito de poema, escrevi: «caminhar é somente
isto: fluir pelos caminhos». Eis o prelúdio da ideia em causa.
Ademais, o viajante não é dono do caminho que escolhe trilhar... Em
primeira instância, é um convidado seu, um alguém que responde a
um íntimo apelo escrito nas finas linhas do vento. Depois (e será
essa, eu creio, a transcendência final), tornar-se-á uma parte de
si.
Escrevo estas palavras e à minha
memória assomem as de Eugénio de Andrade, aquelas que numa crónica
sobre Teixeira de Pascoaes retratam o saudoso poeta numa praia a
recolher conchas e pedras. Ao que parece, Pascoaes guardava sempre
algumas lembranças dos passeios que realizava. Desprovido de
qualquer pretensão comparativa, devo confidenciar que pelos motivos
antes explanados nunca trago de minhas viagens recordações físicas
do caminho trilhado. Não por rígido princípio, mas por uma
absoluta ausência de necessidade ou impulso. Cheguei, isso sim, a
talhar num ramo de palmeira um modesto cajado de apoio (o simbolismo
é evidente), mas até esse anexo nem conta mais com o meu uso. Há
qualquer coisa no espírito que se quer livre que reclama ausência,
silêncio e solidão. Devemos abandonar os mais fúteis mantos e
máscaras se desejarmos ser um simples grão de vento. Bem, sempre
nos poderíamos focar nas humildes flores... Por nossas mãos
colhidas, não serão uma forma de apego? Se até essas eu ofereço,
o apego, a sê-lo, ao menos não é individualizado. Um dia, minha
mãe teve junto da janela da sua cozinha uma bem aromática rosa de
Santa Teresa por mim recolhida no quintal de uma casa em ruínas.
Permaneceu viçosa por mais de uma semana num jarro com água sempre
fresca. Enfim, hoje, de consciência mais amadurecida (estou
em crer), prefiro
deixar todos esses belíssimos exemplares botânicos no lugar a que
pertencem. Pois só ali, em canteiros, matagais, veredas ou valas, é
que poderão embriagar o olhar do viajante mais atento. Talvez não
seja propriamente um caso de apego, mas aqui o caminho ensina-nos as
implicâncias das vertigens do egoísmo, ainda que esbatido, ou da
dúbia exclusividade.
Despojado vou, despojado retorno...
Só as memórias de tudo o que foi visto, saboreado e sentido, valem
por si e excluem outros actos de dominância. Que mais poderei pedir?
Além disso, a Natureza detém a sua própria ordem. Quem sou eu para
voluntariamente alterar esse curso? Se a vida a meus olhos se
apresenta como um rio fluido, então fluido serei. Tanto quanto sei
ser, claro está. Ainda assim, trago impregnados em minha essência o
aroma dos locais por onde passo; neles, deixo a semente do meu
próprio perfume, cintilando como estrela até ao nosso próximo
encontro. Só isso me basta, quanto ao capítulo do “trazer e
deixar” diz respeito. E há
até caminhos
que conheci no auge do florescimento, nas securas do estio, na
melancolia do outono
e na mortiça sombra invernal – um
mesmo cenário rendido aos efeitos das estações, sem que nada
contra possa ser
empreendido.
Esse
nível de aceitação
por certo que surpreende
e instruí,
de sobremaneira, os espíritos
mais inconformistas e rebeldes. Eis
uma outra prova do implacável plasmar da existência num caminho que
se percorre e das luminosas ilações que daí se poderão retirar.
O resultado de uma caminhada
reflecte-se na alma de cada um, e verifica-se, como habitualmente, no
término da mesma. Trata-se de evocar a velha prática de “varrer o
quintal como quem varre os recantos do coração”. O preceito é o
mesmo. Será interessante efectuar esse exercício apenas para
constatar qual será a disposição final. Cansaço? Sim, por
certo... Mas provavelmente uma leveza sem fim. São os tais estado de
espírito que tanto gostaríamos que se eternizassem, mas que sempre
se revelam tão efémeros como uma rosa nos inícios do outono. Ainda
assim, poderá ser forte o suficiente para em breve nos levar à
estrada. Oh, por quantas vezes não regressei eu ao lugar que me
esperava com o mais dócil dos brilhos retido no olhar? Desse sereno
êxtase retira-se a viva luz que tão própria é aos caminhantes: a
luz dos deslumbres contemplados e, por isso, impressos na visão de
quem bebeu algo mais do que a mera aparência de todas as coisas.
Nada existe por si só, e este
nobre e simples ofício também essa lição nos ensina. Cada flor,
cada árvore, cada ave vagabunda, cada réptil, cada homem e mulher.
Em
que medida são estes elementos distintos entre
si? Não nos equivoquemos:
caminhante e caminho são uma coisa só. É esse o segredo maior.
Pedro Belo Clara.
Despojamo-nos para continuarmos a caminhada. Pessoalmente, gosto de pensar que escolho o caminho... Gostei bastante do texto e do blogue.
ResponderEliminarAgradeço a sua presença e a atenta leitura dos trabalhos expostos. Apraz-me saber que os apreciou. Saudações literárias.
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