quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Companheiros

O episódio que hoje aqui compartilho, foi experimentado por dois sinceros amigos de minha pessoa, irmãos desta longa viagem e que há muito decidiram cruzar as suas existências. Estes companheiros de caminho, por razões que tantas vezes caem no esquecimento, demoravam-se pelas incidências das banais desavenças de quem, na verdade, se ama e, principalmente, vive, chora e sorri. Sei que tal assunto, tão pessoal, não era de minha responsabilidade, tampouco um fardo que eu deveria carregar por si só, e em inúmeras ocasiões questionei mesmo o meu direito legítimo de intervir. Decidi, por fim, não o fazer, embora soubesse que o mais ínfimo dos actos traz em si a sua consequência, o seu natural impacto – e isso seria o tudo que me cabia em parte.

Os irmãos de quem falo, procuraram-me à vez, expondo cada um dos seus válidos argumentos, os motivos de tal questão, as suas dores expressas e a dificuldade sentida em retomar o diálogo entre ambos. Esse seria sempre, no fundo, o meu mais sincero conselho, pois, querendo, o diálogo tranquilo auxilia a revelação do mais íntimo dos sentimentos reprimidos, dos pontos de vista ignorados ou não entendidos. Infelizmente, nem sempre o Homem se encontra apto para tal e, recorrendo a defesas absurdas, temendo um ataque invisível ao seu orgulho, encerra-se nas muralhas do seu silêncio absorto. Ambos tinham a sua razão; por isso, se o diálogo conseguisse subsistir entre ambos, certo estaria eu de que a tola querela se dissolveria.

Assim, permanecendo em minha posição neutral, aquela que minha Consciência ditava, optando sempre pelo bom senso, sentei ambos na minha mesa e, juntos, partilhámos uma bela refeição. Eles anuíram o convite – o primeiro passo para a suprema resolução das discórdias – e, nesse dia, antes de inaugurarmos o simples repasto, como que encontrando um pretexto de “ocasião especial”, seleccionei uma garrafa de um dos melhores vinhos que possuía armazenados. Um desses caríssimos amigos tentou demover-me, justificando-se pela não necessidade de pompa na situação, mas eu insisti e ainda me recordo das palavras que proferi: «abro esta garrafa, das melhores que possuo, apenas para que nos possamos lembrar de que todo o dia é digno de ser celebrado, e que todas as palavras retidas deverão ser no hoje proferidas, antes que o amanhã se revele tarde demais…». Mas o silêncio ainda teimava em comandar os minutos daqueles momentos de degustação… No entanto, desprovido de qualquer urgência, sabia, no fundo de mim mesmo, que a situação se resolveria por si e no seu tempo mais adequado e propício.

Perto do final da refeição, gabava um deles a qualidade daquele vinho aveludado, apesar de possuir já um certo depósito, típico em bebidas que, daquele tipo, adquirem já uma certa maturidade. Então, declarei-lhes que naquela ocorrência morava o reflexo de muitos Homens, aqueles que exigem sempre de seu semelhante a sua luz mais luminosa, amando-os e estimando-os profundamente por isso, mas que renegam a sua treva mais sombria… Apreciamos o sabor de um excelente vinho, mas suspiramos queixumes por causa do depósito dos anos? A dor fecha a porta ao perdão, é certo, mas só sabe perdoar aquele que entende verdadeiramente as artes do Amor; e o Amor comporta esse mesmo acto, o de desejar a luz mais luminosa de nosso companheiro ou companheira, respeitando, tolerando e até amando a sua treva mais sombria – e é assim que alguém se poderá revelar merecedor do amor de terceiros.  

No término daquele almoço, junto ao alpendre, vi aquele irmão e aquela irmã, por fim, abraçados, permitindo o fluir de todo o carinho que residia dentro de seus corações. Nem sempre a tripulação de um barco rema na mesma direcção, bem sei, e nada de incomum nisso existe, mas ali, naqueles doces instantes, entenderam que quando as palavras já nada podem contra os muros do silêncio, um abraço sincero e sentido consegue quebrar a clausura e reacender a fogosa chama do Incondicional Amor.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os três livros

Tenho, numa determinada prateleira de minha emadeirada estante, três livros: o mantido, o lido e o vivido. O mantido, impecável em sua conservação, jamais foi lido e muito menos vivido; apenas foi conservado e ali se encontra, assim, ocupando o seu espaço, sem nunca ter sido desbravado por olhos ávido de curiosidade ou navegado por dedos deveras irrequietos. O lido, por sua vez, já desfrutou da possibilidade de ser aberto e explorado, com suas palavras lançadas na frescura de um vento viajante que, no entanto, rapidamente as levou em seu sopro incessante. Por fim, o livro vivido, aquele que tanto me deslumbra e me faz indagar, um livro tão gasto que se adorna de andrajosas vestes de indigente, sublinhado e anotado pelo carvão de um lápis desrespeitoso, de alvura corrompida, virgindade usurpada e decência renegada… Haverá alguém capaz de o amar verdadeiramente ou, pelo menos, de admirar a imagem daquilo que ele é? Eu; eu amo-o, admiro-o e respeito-o autenticamente.

É verdade que nutro sentimentos cordiais para com os restantes livros, aceitando-os em suas diferenças e em seus percursos percorridos, sabendo que, no seu silêncio, também eles almejam ser um dia como o seu irmão – livros lidos, sentidos, vividos. Embora permaneçam praticamente invictos, orgulhosos de sua condição conservada, altivos em sua honradez transmitida, suspiram sempre as linhas desse seu desejo tão íntimo e oculto. Pois o vivido, tão tímido e vexado por sua condição, um mendigo que esmola roga às artes da bela aparência, é o único que se distingue por ser verdadeiramente quem é – um livro experimentado, cuja sabedoria foi lida, entendida e aplicada nas demais circunstâncias da existência de quem o consumiu. São livros assim que nos concedem os melhores conselhos, os confortos mais confortáveis, os alívios mais ansiados e demandados. É obvio que os livros de índole idêntica a este apresentam as suas marcas próprias, indistintas feridas que, provavelmente, jamais sararão, embora conservem sempre em si a mais honesta das aprendizagens.

Cada um de nós, caminhantes do longo Caminho, assume, de certa forma, o carácter de um desses três distintos livros. Assim, somente se revela ainda mais absurdo o olvidar do livro vivido, baseando-se unicamente o inexperiente julgamento na sua aparência tosca. O seu brilho aparente poderá estar quase a se desvanecer, é certo, mas um outro cintilar refulge no âmago de sua condição e do seu simples ser, cada vez mais enriquecido e vivido – o cintilar da experiência assumida. Todos possuímos as nossas feridas, o resultado de anteriores etapas ganhas e perdidas; eles definem a nossa força e as nossas escolhas, são o motivo da nossa aprendizagem e o despoletador da memória da lição entendida. Não existe absolutamente nenhum descrédito em sermos livros vividos, meus queridos irmãos caminhantes; todos temos nossas dores. E elas são o significado de uma existência ganha e vivida, são o manto que adorna todo o caminhante que, a cada manhã, se ergue perante o sol nascente e se apronta para mais um dia de caminho, seguro de que encontrará Dor e Júbilo, Chuva e Sol. Mas, mesmo assim, com uma bravura ímpar tão comum àqueles que caminham, àqueles que são ou decidem ser livros vividos, gratifica-se pelas bênçãos que o assistem e de novo parte em direcção do horizonte mais longínquo.

Pedro Belo Clara.



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ocorrências

Num aprazível entardecer, desfrutando da fresca sombra proporcionada pela frondosa árvore onde me recostava, evocava eu as passagens da minha passagem pelos caminhos desta Terra, enquanto as andorinhas, atarefadas, já se preparavam para partir. Recordando cada recorte da paisagem admirada pelo meu olhar de caminhante, cada encanto dos dias vividos, cada desfecho das histórias que assinei com o nome desta personagem que aqui encarnei, veio um vento suave que me reconfortou e acalentou a memória revivida. De súbito chegou e de súbito partiu para outras paragens, deixando apenas em minha boca o paladar da vivência evocada e o perfume que trazia em si desde terras distantes. Então, como que num flash de luz no discernimento, entendi que todas as ocorrências de uma só existência são como aquele vento que afagou o castanho de meus cabelos: vão e vêm; passam por nós, deixam em nós o seu distinto aroma, a sua mais indelével marca, aquela que, num dia tranquilo como este, iremos recordar com a mais terna das saudades.

É claro que toda a história pessoal, composta por viagens, experiências e pó de Caminho, apresenta os seus particulares desencantos, aspectos que, à partida, não sobejariam qualquer resquício de saudade ou benquerença. Mas o que seria uma rosa se se visse privada de seus espinhos? Conservaria ela a mesma beleza, autêntica e selvagem? Quem caminha de semblante erguido, atento às oscilações de um horizonte ilusoriamente estável, quase imóvel, compreende que cada acto, cada acontecimento serve um determinado propósito e que tudo se desenrola e existe como uma bênção que nos é assistida (e sobre esse assunto já muitas das anteriores entradas se debruçaram).

Múltiplas são as vias que nos guiam até ao mesmo fim, mas em algum momento os divergentes pontos de observação acabam por se harmonizar e por se unir. Chegará o dia, irmãos caminhantes, em que, munidos de um amplo entendimento e de uma humilde aceitação (humilde, não subserviente), compreenderemos que, por detrás de um extenso e aparente Mal, subsiste um infinito Bem, o Bem que será a centelha que incendiará a nossa fogueira, onde das cinzas remanescentes se erguerá o Ideal que habitará na casa da renovada Consciência Humana.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Sonhador

Certa manhã, o Caminho prendou-me com um encontro deveras peculiar: um simples homem, companheiro fiel das viagens pelos pensamentos, detinha-se junto da estrada, introspectivo, fixando uma pedra como se desejasse movê-la apenas com o olhar. Passei junto dele, curioso, e logo despertou o fantástico mecanismo despoletador de diálogos. Assim, troquei algumas palavras com aquele irmão, mais um intrigante pedaço de Luz que se ocupava de suspiros e breves lamentos, e demorei-me, como quem degusta uma finíssima iguaria, nas palavras e nas frases compostas pela douta melodia que ele entoava. Falava de loucuras, de decisões cruciais, de persistentes indagações que repudiava e, ao mesmo tempo, amava por sabê-las impulsionadoras de novas situações evolutivas. E versava e filosofa sobre aspectos que desconhecia e outros que apenas havia escutado em ecos de histórias distantes, enquanto que meu Ser se ia reflectindo de uma forma cada vez mais nítida no definir e no afirmar daquele companheiro. Sucediam-se os instantes e assim ficámos, em monólogo presencial, assistindo ao crescimento de algo único, de uma partilha silenciosa de algum conceito grandioso. Mas, de súbito, perante meu semblante já confuso (confesso) mas não menos maravilhado, sua tristeza se metamorfoseou em espontâneo júbilo e convicção certa e inexpugnável. Que acontecimento deveras fantástico esse, a alquimia dos sentires no auge de seus efeitos! Sorriu e saudou-me como caminhantes que éramos, seguindo depois o seu trilho, rumo a um horizonte íntimo e inalcançável.

Conheci esse homem, ou partes dele, naqueles momentos de convívio, e deparei-me com a sua peculiar loucura naquele preciso instante. Se algo há que se lhe possa atribuir, então esse algo é a espontaneidade. Livre e desprendido como uma criança, como uma tábua de inscrições que nunca foi utilizada, ele, que se dizia sonhador, trazia em si vestígios de um passado de dor e de frustração, mas estava apto (ou melhor, decidido) a enfrentar os novos dias com as cores de seus belos sonhos. E era essa a sua loucura: perante a desilusão de quem planta no quintal dos sonhos moribundos, sorria e formulava um novo sonho, mais forte e mais brilhante que nunca. Por cada sonho que tombar, um outro se deverá erguer à luz do dia mais excelso! Era essa a sua loucura, sim, talvez sabedoria ou singular forma de caminhar pelas florestas de sua existência, mas, naquela despedida, observei nele, como numa aura, o refulgir de novas cores, rodeando e abençoado o seu porvir.


Pedro Belo Clara.