quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

UNIÕES



Ainda que trilhemos um solitário rumo, tal não significa que estejamos sós ao longo do mesmo. Não me refiro apenas ao prazer único que a nossa própria companhia proporciona ou às luzes que brilham em redor da existência, mas igualmente à presença de nossos amigos e familiares, rostos que nos recebem e que no decorrer desta incrível viagem vamos conhecendo. Mesmo que o Caminho seja interno e, por consequência, deva ser trilhado pelo nosso próprio pé, desfrutaremos de tão deleitosas companhias até que tudo se cumpra, até que sejamos não só o Caminho que percorremos como o Infinito em que ele se funde.

Todo o processo é planeado, mesmo que isso comporte algo que ainda não compreendamos ou saibamos aceitar; todas as vias possíveis estão definidas – ainda que a escolha resida em nós. Tudo o que nele ocorre, assim, serve um propósito evolutivo, compreendido por etapas que nos ofertam hipóteses de crescimento e de cumprimento de antigas dívidas. Mesmo que, por diversas ocasiões, coisas tais se venham a revelar desagradáveis. Mas, no fundo, tais pedras apenas nos guiam à maior de todas as fontes, onde a nossa sede pode em pleno ser finalmente saciada. E é nesta óptica que as relações mantidas com terceiros, ao longo de uma particular existência, se revelam como uma de suas valências.

Bem sabemos dos encontros e desencontros, créditos e débitos de outras viagens, aspectos que, de forma mais ou menos indelével, se fincaram em nós. Por isso mesmo, são circunstâncias que importa resolver – a nossa própria leveza ou elevação do ser que somos depende disso mesmo. Em prol de uma contínua evolução somos levados a perdoar, libertar, transcender… Cada existência comporta uma íntima história que o autor da mesma deve conhecer. E nessas bases se originam as relações, ao nos rodearmos das certas pessoas que detêm os certos aspectos para nosso crescimento – e vice-versa, pois também nós desempenhamos esse papel para com terceiros. Tal poderá ser compreendido pela família em que nascemos, mas igualmente por todas as pessoas que cruzarão o nosso rumo. Nada é um mero acaso: importa entender e aceitar tal coisa. Uma visão mais profunda e reflectiva sobre a vida em si, trará ao de cima esse aspecto. É uma certa “aleatoriedade” que se oculta na lógica da vida em si, em sua inteligência expressa, por motivos nem sempre bem compreendidos – mas que sempre se manifestam em nosso favor (aceitar é transcender).

Possuímos certas carências ou comportamentos que aparentam ser inatos, mas que apresentam raízes mais antigas e profundas. Com o objectivo de os ultrapassar e, como consequência, aprender e evoluir, é-nos dado aqui, nesta nova experiência que não passa de um regresso, tudo o que mais necessitamos: desafios, testes, oportunidades ou a simples presença de indivíduos com as características necessárias para nos prestar um auxílio valioso. Através de pensamentos e atitudes, bem como de decisões, atraímos até nós e moldamos uma realidade específica. E isso também se aplica aos nossos conhecimentos, amigos de longa ou curta data e relacionamentos de índole amorosa. Muitas vezes, é aí que se oculta o maior dos desafios: uma união a dois.

De certa forma, muitos de nós, viajantes, ignoram a vera bênção que comporta um relacionamento amoroso, uma partilha de vidas e mundos… Pois ela é, no fundo, a manifestação terrena de uma dádiva absolutamente divina. E o trilho nem sempre é brando ou fácil de ser seguindo. Por vezes, perdemo-nos em doces ilusões, típicas dos contos infantis que tantas crianças fazem sonhar, e olvidamos a realidade de cada coisa, nomeadamente que a perfeição de alguém reside no equilíbrio da sua singular imperfeição. Mas de toda a situação se extrai a valiosa aprendizagem. No fundo, adoptando uma visão mais distanciada e global, sempre benéfica em horas de imenso tumulto, entendemos que na despedida de um certo amor mora sempre um «até já» e o anunciar de um novo aroma ou vislumbre ou canção. Ainda que tal, na época em causa, sempre nos pareça terrivelmente inalcançável ou até mesmo impossível. Mas até o mais longínquo dos dias acaba por chegar; a Vida é justa em sua natural e fluida sapiência e encontra-se em constante mutação. Basta acreditar.

Os “grandes amores” comportam sempre grandes responsabilidades, grandes aprendizagens, grandes vivências… A comunhão pode mesmo ser profunda, atingindo níveis de alma – há uma expressa diferença entre amor espiritual e amor material ou carnal. Mas esses “grandes amores” são deveras árduos de serem achados… Aliás, eles não se buscam nem se conquistam – simplesmente vêm até nós, como uma pétala de rosa pelo vento soprada que, docemente, vem pousar por sobre o ombro de nossa existência quando menos esperamos ou menos dignos, em erro, nos julgamos. Mas a união de duas almas e seus corpos deve ser benéfica para ambos. Relacionamentos manipuladores, abusivos ou destrutivos em nada contribuem para a serenidade pretendida e respectivas evoluções – a sua maioral intenção. Procura-se antes o apresentar de oportunidades de partilha, de saldar antigas dívidas e, claro está, de aprendizagem e ensinamento. É comum vermos um carácter sonhador encontrar a sua âncora em personalidades mais pragmáticas, por exemplo. Em todo o caso, sabe-se que, na união mais equilibrada, o Fogo encontra na Água a sua brandura … Assim como a Terra e o Ar, de tão opostos, compõem duas partes de um todo, fundindo-se na sua diferença: um, naturalmente livre e vagabundo, e outro, tão quedado e fértil. Mas, em caso de relacionamentos já deteriorados, sem qualquer hipótese de reparo, impõe-se a coragem necessária para findar tais relações da forma mais justa e respeitosa possível. Tudo é efémero, sim; como tal, a duração de certas etapas nem sempre correspondem ao que idealizamos. Sem cair numa fácil capitulação, é importante entender até que ponto não mais serve tal união… Geralmente, quando ambos cessam os benefícios que o «dar e receber» do casal proporcionavam. Se essa hora chegar, que se curem as feridas e com um sorriso de esperança se abram os braços àquilo que a maré dos dias vindouros trará até às nossas margens.  

Nada de mais belo há do que partilhar as maravilhas e as obscuridades de nosso mundo íntimo com a pessoa que veramente amamos. E, na mesma medida, estarmos dispostos a amar e a respeitar aquelas que connosco forem partilhadas. Neste simples aspecto, o ego manifesta-se muito facilmente, toldando percepções e envenenando a dócil beleza que o relacionamento pudesse proporcionar. Mas com a vinda de novos dias, com as iminentes aprendizagens, com todo o potencial que se vai desenvolvendo, vai chegando a hora de transmutar comportamentos, de consolidar aprendizagens… Deixar, por fim, esse egocentrismo de ser e agir. Não ao foque em nós, mas no outro – eis o que tão vulgarmente nos escapa. Talvez seja essa mesma a derradeira forma de altruísmo, a vera filantropia; por certo, um dos seus máximos expoentes. E tal entrega só se revela possível quando se ama… Quando veramente se ama. Pois um casal encerra em suas mãos, de forma definitiva, a hipótese de concretizar a terrena manifestação da mais bela e pura (se assim for mantida e cuidada) das magias que ao Homem é dada a experiênciar – o Amor.



Pedro Belo Clara. 





sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

ESTRELA DE NATAL



Findada a quadra festiva, com a celebração natalícia e a viragem do nosso calendário, recorri a um exercício que ultimamente tem caído em desuso – embora continue a ofertar todas as suas vantagens da forma mais directa (por vezes, crua) possível. Sim, refiro-me aos afamados períodos reflectivos, onde ponderamos os débitos e os créditos do nosso coração. Contudo, muito para além das palavras ditas ou não ditas, das acções consumadas, dos momentos de partilha e da solidão das horas de pensamento, houve algo que sobressaiu de todas essas memórias. Estranhamente, até; uma vez que a mente conceptual, sempre obstinada, tem o hábito de ignorar a simplicidade profunda das simples e banais coisas. Talvez, nessa ocasião, os excessos dos feriados tivessem toldado a sua atenta vigília. Quem o saberá?

Bem, tudo aconteceu no ano transacto (2011, entenda-se), na exacta quadra que ainda por aqui deixa os seus vestígios reluzirem. Teria sido essa a razão que fez emergir a recordação? Ter-se-á avivado com o regressar de tal cenário e, como gaveta que se entreabre sem que ninguém lhe toque, de pronto oferecido o aroma distinto de tal tempo? É bem provável… Mas sigamos em frente no relato. Caminhava eu por uma ampla avenida a norte da cidade que me viu nascer, quando um vulto, ao longe, se anunciou. Lentamente, enquanto nossos passos nos iam invariavelmente aproximando, o seu rosto e forma revelavam-se – até ao ponto de entender, por forma segura, que tal pessoa fixara o seu estranho olhar em mim. Desenganem-se agora os leitores mais entusiastas ou utópicos, pois vossas expectativas sairão por certo goradas – não, não foi o simpático velhinho de brancas barbas que me interpelou naquele fresco dia… Tampouco conhecia eu a identidade dessa figura mistério! Continuando: o encontro tornava-se cada vez mais inevitável, como é normal em quem caminha em sentidos paralelos e opostos, e eu, no seio de uma tola mundaneidade (admito-o, leitor), aquela que nos faz sempre desconfiar do que é oculto e incógnito, desviava o olhar e indagava o porquê de tal figura não retirar o seu de minha pessoa. Apesar do crescente desconforto, eis que, por fim, brando e firme enfrento o desconhecido! Na confluência de nossos estranhos mundos, fronteiras que em exíguos instantes se iriam tocar, escuto as palavras que me estavam reservadas: “Feliz Natal!”… Assim, de forma tão natural e simples: um desejo de boas festas. De pronto retorqui, recomposto, retribuindo da forma que melhor sabia, compassiva e educadamente, tamanha e rara amabilidade para com um completo estranho.

Na verdade, apenas quando formulou o voto é que a fala da amável senhora, provavelmente quase de meia-idade, denunciou-a como sendo portadora de uma certa deficiência a nível mental. Terá sido esse – e só esse – o motivo de tanta simpatia? Haverá sequer motivo para assim sermos, amáveis e disponíveis para o nosso semelhante? Ou não deverá tudo fluir de nosso coração, aberto e receptivo? As brumas do Tempo tendencialmente enublam o coração dos Homens… Mas por certo que não é necessário todos sermos portadores de uma qualquer deficiência para formularmos tão simples e sincero desejo! Talvez, numa realidade obscura de valores invertidos, onde escassa é a luz que assoma ao olhar do indivíduo, deficiente seja aquele que assim se comporta… Nesse caso, serei um orgulhoso deficiente. Pois, no fundo, basta que em nós resida a vontade de assim sermos: abertos, espontâneos, fraternos. Olvidamos muitos princípios nos dias que correm; principalmente que aquilo que nos une, como Homens que somos, é bem mais nítido e forte do que o aquilo que nos aparta. Porque se insiste, então, no ilusório separatismo?

É uma escolha – no fundo, a isso se resume. E foi precisamente essa escolha que aquela senhora assumiu, disso consciente ou não, ao passar junto de mim e expressar o seu desejo. Talvez o tivesse feito a todos os que cruzaram o seu caminho, talvez tenha até cumprimentado todos os veraneantes daquela rua, mas… que importância isso detém? Afinal, o símbolo supremo da época natalícia, a sua mais sublime mensagem, não é (ou deveria sempre ser) o Amor? Talvez os seus sobejos, compreendidos por luzes apagadas, caixas vazias e papéis rasgados, tenham soterrado tal princípio nos pântanos do desenfreado consumismo... Mas aquela senhora, apesar de sua peculiar condição, entendera o segredo do natal de todo os dias. Ela e somente ela é que desterrou costumes idos e cintilou como a célebre estrela que embeleza a quadra em questão. Para mim, pelo menos, um outro sol brilhou – e isso é o tudo que me basta. Mas tal situação carrega raízes ainda bem mais profundas e significativas, que irrompem do solo e se fortificam em sólidos ramos. Pois sobejou a suprema prova de que tais actos poderiam (e bem!) povoar o imenso deserto do quotidiano humano, se cada um de nós, definitivamente, decidisse fazer de seu coração um fértil canteiro – onde somente se cultivariam as sementes da mais alta estirpe.



Pedro Belo Clara.