sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O edifício rosáceo da Mouzinho da Silveira

Numa húmida tarde de Outono, por entre soltos pensamentos e tombadas folhas, capturou-me a atenção a peculiar fachada de um rosáceo edifício que embelezava uma declinada via. Retomando de súbito à frieza da realidade e à taciturnidade das ruas empedradas, assomou-me o seu carácter forte e robusto, quase imperial, um verdadeiro símbolo (ainda que singelo) de um outrora orgulhoso – uma bandeira lembrando um invicto estandarte, os seus pormenores majestosos, as suas curvas elegantes e invulgares.

Muitos o observavam, ainda que de relance; outros, demorando-se em ideias e planos sem saída, tomavam-no por mais um elemento daquele cinzento retrato citadino. E logo a ele, que até brilhava com a cor com que se pintam magníficos ocasos! Mas meus olhos continuavam presos aos varandins, às janelas e seus recortes, à típica cobertura da época em que nasceu. Num ápice, nova e desconcertante ideia se apoderou de meus julgamentos e ponderações: esta é sua fachada, rosto sublime com que encara o mundo, mas… e o seu interior? Como é fortificada cada uma de suas estruturas? Como acolhe cada vida que abriga? Serão igualmente fortes e robustas, sadias até? Ou baterá nele – metaforicamente – um coração de orgulhosa e abandonada mulher, firme em figura mas frágil em recatados instantes de ternura? Se cede ao mais breve sinal de instabilidade, de que terá valido a beleza estonteante de sua fachada? Provavelmente, o seu género de presença faz justiça a esse mesmo nome (fachada, entenda-se). Então, consumido pelos efeitos do abalo, quem admirará seus despedaçados destroços? Perante a crueza da verdade, quebra-se a mais intrínseca e emaranhada das falsidades.

Notem, meus caros, que estes dias partilham dessa hipotética condição: um desejo inapagável pela conquista do que se vê e não daquilo que apenas se poderá sentir, uma repetição constante de consumo desenfreado e de autêntico cuspir quando a utilidade expira. Qual o lugar, no seio desta ignorância, que acolherá o brilho que vive além daquilo que se vê? Eis o porquê do vazio que nos assombra, dessa fome insaciável e incógnita – alienados do verdadeiro motivo e da verdadeira razão, manipulados pelos ardis de pérfidas distracções, esquecemo-nos do inigualável sabor que se sente quando se ama a essência, não a vulgaridade ou a ilusória beleza (ignóbeis iscos!) de um fútil invólucro. 


(03/12/2010)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Encontros de Sabedoria

Acredito verdadeiramente num sentido para os dias. Em cada instante, ao consumir de cada momento, ao dobrar cada esquina por entre as azáfamas e os corrupios citadinos, existe algo (um elemento, uma situação) que nos obriga a parar para pensarmos um pouco. Esse algo, cujo significado sempre é de revelação tardia, apresenta-se como uma prova derradeira (não um obstáculo), um “tira-teimas” de nossas acções, um sinal de que a nossa sabedoria e nossas convicções irão ser testadas. E, nestas situações, quantos não tropeçam em suas próprias palavras? Quantos aclamam feitos e certezas que se despedaçam quando confrontadas com a árdua actuação?

É comum, infelizmente, vivermos hoje despidos de quaisquer valores, especialmente daqueles que deveriam estar fortemente enraizados em nosso carácter. Os peculiares encontros com certos pedintes e com suas ardilosas “técnicas de pedinchice” é um óptimo exemplo disso mesmo. Como te sentes quando um deles te entrecruza o caminho? Como decides proceder? E depois? Como lidas com as dúvidas incessantes sobre a sinceridade do pedido? Claro que existe sempre a opção de ignorar os rogos persistentes – cada acto é somente uma escolha assumida e isenta de qualquer julgamento (excluindo o de seu autor) – mas… e se anuíres às suas exigências? O que pensarás depois? Que foste como um pequeno peixe capturado por uma rede de falsas tramas ou preferes acreditar que salvaste alguém de mais um negro dia de privação? Reflecte.

Ainda que o tipo de situações atrás referidas sejam sempre um duro teste, há algo que poderei afirmar: se viveres sempre pela tua verdade, mesmo que ela se possa vir a revelar errónea (o que, de facto, será uma ilusão, pois o sentimento sentido deverá na circunstância ser sincero), e certamente assegurarás uma integridade sincera e difícil de quebrar. O mendigo que esmola pedia mentiu-te? Algum indigente te manipulou em seu favor? O necessitado perfidamente te levou a acreditar na sua mais extrema necessidade? Bem, na verdade, quem será o tolo? Talvez todos ajam de acordo com a sua vontade, aquela que lhes trará o que mais pretendem (proveito próprio, claro), mas quem ficará realmente a perder? Tu que, enganado, foste sincero? Ou aquele que, conscientemente, te mentiu?

Liberta-te da culpa, da frieza absurda e de tudo o mais que se venha a apoderar de ti. Ainda que consideres – hipoteticamente – ter sido ridiculamente tratado, pondera nas circunstâncias e verás que, no fundo, não só foste coerente com aquilo que consideravas justo, como também deste sinal que todo o indivíduo é capaz do mais puro acto de humanismo. E então? Consideras que ficaste realmente a perder com a situação? Olha bem para dentro de ti (demora o tempo que for necessário) e encontra o cintilar do novo conhecimento que brilha em ti. Será essa sabedoria que te aproximará mais de quem tu realmente és, a útil alavanca que te impulsionará para a nova etapa do teu caminho.


(16/12/2010)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Consciência e Actuação

Michael Collins foi um homem simples, nascido em Sam’s Cross (West Cork), uma cidade infamemente célebre por ser um autêntico covil de ladrões e vagabundos. A sua família possuía uma humilde quinta e viviam daquilo que a terra lhes dava, sendo felizes (ou, pelo menos, supostamente) no seio das suas conscientes limitações e condições. Talvez esta história não tenha nenhum ingrediente que as distinga das demais, talvez ela até comece da mesma forma que começam as histórias mais simples e banais. Mas certamente que o amigo leitor já se estará a questionar sobre o porquê desta introdução. Quem foi, afinal, este Michael Collins e o que é que ele tinha assim de tão especial? Foi algum larápio de renome? O chefe de uma mítica pandilha? Um autêntico mestre em assaltar delegações bancárias?

Collins foi muito mais do que isso. Foi um homem que, já desde sua tenra idade, possuía um enorme sentido patriótico e uma firme convicção num ideal tão grandioso, tão forte e tão verdadeiro que transcendia até toda a simples condição humana; foi o líder da revolta irlandesa em princípios do séc. XX, aquela que colocou um fim aos 700 anos (!) de domínio inglês no território. Onde todos os outros falharam, Collins venceu e a Republica da Irlanda voltou a conhecer o forte brilho do sol da liberdade. É claro que sua história continuou, com todas as virtudes e vicissitudes, mas foquemo-nos apenas no seu combate extraordinário em nome do que sentia ser o correcto.

A nossa própria história (humana, entenda-se) é rica em inúmeras personagens do género, como Spartacus, Wallace, Guevara, Gandhi, Luther King, Mandela – todos eles gravaram o seu nome nas paredes do tempo, independentemente da Era e do contexto em que viveram. Mas o que será que eles possuíam? De que eram realmente feitos para, em vida ou em morte, terem conseguido imortalizar seus feitos?

Todos eles eram humanos, tal como o leitor e eu – isso eu posso garantir. É claro que ao longo desse tortuoso caminho que decidiram seguir, muitas foram as tentações e as provações, autênticos testes de fé que avaliaram a firmeza de suas personalidades e a verdade da palavra que diziam defender. Independentemente de se reprovar (ou não) os métodos utilizados por cada um (relembre-se, em nome do bom senso, das épocas em questão, das implicações políticas e das zonas geográficas envolventes), a verdade é que todos foram capazes de dar um passo em frente quando mais ninguém se atrevia a fazê-lo. Eles levaram a vontade ao auge! Quer pela espada, quer pela palavra (escrita ou falada), eles foram os paladinos de um ideal e de uma verdade, líderes destemidos que fizeram de suas vidas o meio único para a conquista de centelhas que conseguissem iluminar a escuridão que rodeava o Mundo. Não foram tarefas (ou melhor, demandas) suaves, isso também vos posso garantir, mas nunca ninguém lhes disse que o seriam, pois não? O que os distinguiu dos demais? Persistência! Pois é essa a grande qualidade de um vencedor; é cair e saber se levantar uma e outra vez, quantas vezes forem necessárias, até que o propósito esteja cumprido.

Ainda que muitos não acreditem, todos temos essa centelha em nós, essa força magnífica que glorifica a luta por um ideal que consideramos nobre. É sempre possível argumentar que tais personagens estavam destinadas a tais feitos, que já possuíam as ferramentas necessárias para o desempenho da sua missão. Talvez seja válido, mas não descuremos o facto de que eles foram escolhidos só porque se fizeram escolher. Sim, o segredo está na nossa própria escolha e na vontade em aceitar todas as consequências que daí possam advir. É por isso que afirmo que não será fácil, mas a encruzilhada já se faz anunciar no caminho: ou escolhemos dar esse passo ou ficamos na sombra para sempre. Podemos temer, assim como eles também recearam, mas note-se que isso nunca foi um motivo capaz de impedir os seus avanços.

Eram tempos árduos e distintos dos de hoje, onde o “eu” era renegado em prol de uma causa maior. No entanto, é importante acreditar que sob as actuais circunstâncias tudo pode ser diferente – o colectivo constrói-se pela afirmação de cada indivíduo e, juntos, aqueles que decidirem embarcar na caravela que navegará pela nova maré alcançarão o tão desejado porto de abrigo.

Nesta etapa, repito aquilo que tenho vindo a constatar: podemos viver na pior crise económica ou humana, mas é nesse preciso momento, quando o mundo material ameaça revelar a sua fragilidade, que as questões espirituais se levantam, quer como um consolo ou simplesmente como o anunciar de que está na hora de despertar consciências. Por isso, é chegada a altura de, finalmente, gritarmos bem alto o nosso querer, como se fossemos combatentes de uma luz pronta para a investida; é hora de decidirmos quem queremos, de facto, ser; é tempo de escolhermos o nosso lado nesta batalha universal, que há muito se desenrola sem um fim anunciado. Afinal, é tudo uma questão de consciencialização e (lembre-se!) de escolhas.

(adaptação do artigo com o mesmo nome e de minha autoria editado pelo Jornal CHACA em Fev 2009).




(Michael Collins, 1890-1922)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Chuva Oblíqua

Que fizeram eles a esta chuva
Que tão oblíqua cai,
Tornando difícil a conquista
De um guarida segura?

Não há árvore que dela proteja,
Nem arbusto denso o suficiente
Para esta chuva corrosiva
De proporções inimagináveis!...

Mas o sol ainda brilha, lá bem no alto,
Escondido pela ira de tais nuvens
E daqueles que se dizem Deuses
De um Olimpo de castigos implacáveis.

Que fizeram eles a esta chuva
Que mergulha aqueles em que toca
Num imenso sono desperto,
Que é a eficaz propagadora
De uma vontade controladora?

Só a elevação do olhar,
Para aqueles que conseguirem,
Será a protecção ideal -
Só a compreensão de um problema real
Se apresenta como solução.

Pois não existe um escudo tão forte
Quanto este ardiloso fenómeno,
Nem o furioso vento,
Nem o bravo pássaro que,
Sem destino, vai
Fugindo desta chuva
Que tão oblíqua cai.



(PBC - 2009).