segunda-feira, 27 de maio de 2013

O CAMINHO


O Caminho não é uma via única, exclusiva. O Caminho, a poder ser falado, escrito e entendido, é uma coisa só, na mais total das abrangências. O Caminho nasceu no Infinito e nele terá o seu término. É Tudo. E Nada é. Parece circular; mas é uma longa linha recta sob a qual incidem os acontecimentos, vivências e suas etapas, assim como os ciclos que tudo regem nos prados materiais. Apenas uma percepção limitada, ainda não desperta, considera tempos e secções naquilo que é eterno. Mesmo que o cenário se altere, por efémera ser a matéria, a essência mantêm-se. Renova-se o que é fugaz, preservando assim a sua eternidade. O que é perene, é imutável.

O Caminho é um todo indivisível. E cada intrépido viajante que o decidir caminhar, uma e outra vez, sendo ele caminhante de justo epíteto, deverá descobrir por si a língua em que ele murmura, o alfabeto em que ele se faz expressar. E todas as línguas por ele são faladas, todos os caracteres por ele são compreendidos. A sua real ideia está muito para além de tudo o que sobre ele se poderá idealizar. Se se pensa sobre ele, não se pensa sobre o verdadeiro Caminho. Ele é o impensável, o que não se pode idealizar. Porém, quando se sente a sua magia, quando se escuta o silêncio que profere, todo o caminhante sabe aquilo que ele é. Não são os olhos do rosto que o verão, antes os da Alma. E tudo o que aqui está escrito, da mesma forma se destina à Alma. É para ser lido, sentido e absorvido pela luminosa percepção que a reveste. A Palavra, tal como o Caminho, fala ao Divino que habita em cada Homem.

Do centro da figura humana, no instante em que esboça um passo, uma panóplia de caminhos e direcções se criam, se abrem e se completam aos pés de cada um. Linhas infinitas que partem da mesma infinidade, paralelas entre elas, embora sejam subdivisões da sua principal matriz. Para cada uma, um destino. E um rumo que, findado esse, de pronto se fará anunciar. Mas tal fenómeno é apenas a arte da roda que eterna gira. Afinal, na matéria reina o efémero e o dual, com a concordância e o equilíbrio das estações. Como tal, a ideia que mais sobressai, a impressão logo captada pela percepção mais desperta e, como tal, atenta, é a da sucessão. Por vezes, é o caminho da cegueira que ao viajante concede a visão. Assim como o da sombra lhe trará o da luz, o da dúvida lhe fornecerá o da fé, o da manipulação lhe dará o do amor… São gémeos, em suma, com particularidades que os distinguem. Será necessário, por vezes, atravessar todo um inóspito deserto para desfrutar do mais paradisíaco dos oásis, aquele que se queda na clareira de um âmago íntimo e profundo. Ou simplesmente crer na ideia que detém como certa e verdadeira para si próprio e permitir-se esperar… Até alcançar a sua conquista. Até o mais inverosímil dos caminhos desemboca no mesmo local de todos os outros. Apesar disso, os rumos não deixam de estar adornados de hipóteses e de escolhas. Tudo está escrito em ténues palavras… Cabe ao viajante, por suas opções e actos, reforçá-las. Então, estará a fluir pelo rumo que cria. Seja ele qual for.

Mas nem só de rumos se compõem as existências… Não fossem elas as condições mais intrincadamente simplificadas. Os sentires, as percepções, as quebras, as dívidas, os encontros, são outros aspectos de toda uma diversidade que cabe na vida terrena. Que, acumulada por outras tantas viagens, reúne matéria digna de contemplação. Mas a experiência forma-se de tais coisas, tece-se em linhas de mil cores. Não só auxiliarão o viajante a recordar, como também a lhe fornecer as condições que mais necessita para cumprir a sua meta, o seu mais divino propósito. Por isso, resistir significa quebrar e perder sentidos… Enquanto a brandura, flexível, permite fluidez. É essa a grande lição do humilde junco, em contraste com o orgulho do frondoso carvalho. Embora, para tal, seja importante, em primeiro lugar, entender, e, só então, construir o estrado que suportará a crença que munirá o viajante. Essa valência, como será claro de se notar, necessita de longas raízes para ser forte e profunda.

É comum a indagação ao longo do trilho percorrido. Tal aspecto é intrínseco à condição humana, esteja ele mais ou menos vincado no coração de cada caminhante. Compreende-se, no fundo, como uma parte do processo de experiência o entendimento do próprio ser e daquilo que o rodeia. Principalmente, por o esquecimento o ter assolado, como uma nuvem que cobre e filtra a luz do sol. Contudo, o espírito esclarecido é um sopro, o mesmo que afastará a nuvem e permitirá, de novo, o completo raiar desse excelso sol. Cura o negrume do olvido, fomentador de múltiplos temores, a água que jorra da fonte da memória. Por vezes, a jornada pessoal revela-se paralela à demanda por tais águas. Até porque esses aspectos compõem um trilho evolutivo e, assim, ascensional – a suprema intenção, inicialmente oculta, de todo aquele que caminha por sobre esta terra.

É claro que a experiência, ao ser diversa, por consequência da multiplicidade deste mundo de matéria, comporta em si uma miríade de elementos. Aí se confundirão as percepções. Não se traduz num erro, pois cada visão justifica o seu parecer; mas certas nuvens, uma vez mais, poderão embaciar o sol que sempre brilha. Mais do que o sofrimento, a felicidade, a justiça ou o amor, a natureza humana denuncia-se aqui, na simples experiência. Os restantes, são os seus objectos ou alvos, sendo ela, assim, superior, no sentido de global, a todos eles. Não se entenderá o sofrimento como uma opção, ainda que a dor esteja naturalmente ligada à dualidade da vida efémera? Ou como uma ponte para algo mais de superior e de divino, se se excluir a baixeza vibracional da simples vitimização, lamentavelmente comum de ocorrer. Pois, se um sorriso se une à dor, o sofrimento desde logo se esvai, ainda que esta, qual incómodo espinho, continue a latejar (bem se sabe de sua necessidade, ao ser por sua força que se racha a dura casca que envolve a adormecida consciência). E a felicidade? Entre doutas filosofias e notáveis discorreres, terá já aquela mente mais insaciável, que mais se dedica e se sacrifica a essa busca, questionado e, consequentemente, entendido que a verdadeira felicidade, aquela que aqui se pode experiênciar, ainda que seja um estado efémero e, assim, sujeito a alterações de forma e conteúdo, apenas significa estar-se em paz consigo próprio? E a justiça não será apenas um escudo do ego, ou seja, da personalidade que de rojo arrasta (ignore-se o possível pleonasmo) a personagem ao sabor de seus caprichos, servindo de motivo a vis intentos, dos quais certos castigos e vinganças são lamentáveis exemplos? Essa fúria é filha de outras tormentas, apaziguadas pelas diversas formas do amor. Embora só a sua mais suprema face se poderá unir à plenitude, o vento que baila pelas etéreas dimensões. Aquela que aqui se reflecte, mesmo sem saber como há o viajante de lidar com seus pressupostos, é sublime, sim, mas de frágil equilíbrio… É flor que exige rega constante. Na sua máxima expressão, as condições extinguem-se. Assim, é motivo que pode (e deve) enlaçar os Homens, sem espaço para apegos, supressões, tiranias ou subserviências. A justificação de uma existência? Por certo que sim, se esse for o seu íntimo trilho. 

O motivo, assim, é de ascensão. Mas cada degrau é alcançado pelo esforço do espírito, cada vez mais solto e liberto. A cada passada, uma vida, uma personagem e demais envolvências. Em suma, uma experiência. Que, obviamente, pode (e, certamente, irá) comportar o saborear de diversos elementos: amor, felicidade, justiça, pobreza, dor, riqueza, poder, opressão, transcendência num derradeiro grito emudecido… Mas que são tais coisas senão elementos de uma singular experiência? Eis a natureza global, ou, se vista por um outro ângulo, primordial, da humana condição que reveste e serve o caminhante. É um campo aberto ao cultivo. O que aí medrar, serão sementes lavradas pela mão de cada viajante, em nome de sua intenção e propósito. Mas por que bebe da fonte mais distante, aquele que tem água por perto? Apenas se sentir o apelo do trilho que o guiará até esse destino… Pois se tudo é experiência, tudo igualmente é aprendizagem. E esse é o seu pressuposto mais básico.

O que sobeja, então, como resíduo final, como resultado da soma de todas as parcelas? Sabedoria incrementada e à Alma dividida anexada, recordação e evolução. Assim, a Alma, esclarecida, compreenderá que ela mesma fora um raio desse sol que, magnânime, sempre brilhou. E com um sorriso recordará o quase que infindos dias em que o contemplou, entre nuvens, sem saber que, de tão simples forma, contemplava a resposta a todas as suas perguntas, admirava cada recorte do destino que a aguardava e suspirava, néscia, diante da luz que foi o seu princípio e será o seu fim. Até à eternidade.




Pedro Belo Clara.