terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

DIVAGAÇÕES SOBRE UMA GAIVOTA QUE PASSA


Os dias cinzentos convidam à reflexão. E é no seio dessa húmida atmosfera de marítimos odores, prenhe de saudade e de sal, que se queda um poeta.

No coração escuta o bramir de um mar sempre ausente. Crê que o traz em si, entranhado na mais recôndita das fímbrias do ser, desde que se conhece como é. Em certos dias, quando o rebuliço se reforça e o eco mais se faz sentir, dá por ele a indagar se por suas veias corre o mais comum dos líquidos ou uma qualquer mistura de água e sódio. Nos altos céus de platina, embebidos em melancolia, uma gaivota imprime a sua invisível rota. Algures no meio, entre coração e céu, o poeta, rochedo profundamente fincado num areal de praia imaginada, é testemunha de fenómenos que não compreende. Mas voltemos, por ora, à gaivota.

Devo confessar que o seu voo sempre me intrigou. Agora, intriga-me ainda mais. Intriga-me e seduz. Especialmente quando tais peculiares aves trocam os imensos espelhos onde habitualmente se estudam e revêem em detrimento de deambulações por sobre estradas de rumos confusos, agitações fumegantes e brilhos toscamente intermitentes. Não poderei explicar o porquê, claro está. O voo da gaivota é semelhante ao voo de qualquer outra ave: repleto de mistérios. Talvez por essa mesma razão, ao concluí-la, o Homem tenha almejado (admitamos: cobiçado) essa arte tão intrinsecamente ligada à essência daqueles que ostentam penas e asas.

Mas lá que o voo é intrigante, é. «Gaivotas em terra, sinal de temporal» - escutei tal máxima durante toda a minha infância. Quem sabe se tal repetição não se tornou, com o fermentar dos anos, em ladainha interior até à exaustão repetida, eco após eco, numa espécie de oração que recordava a chegada dos dias cinzentos e chuvosos, os tais que tanto convidam à reflexão? Com eles vinham as gaivotas. E era vê-las pelos céus da cidade, em círculos sobrevoando as construções altivas, masmorras de betão, como se por ali, entre a calçada, buscassem pacientemente a prata de um suculento pescado. Ao mínimo movimento, assim davam a entender, lá investiriam em voo picado, prontas a reclamar o seu justo prémio. Mas nunca o fizeram, curiosamente… Nem nunca, em plena rua, me deparei com uma. Certamente que, se esbarrasse nesse exemplar, haveria de me deparar com um em estado de plena “convalescença”, permita-se a expressão, já que doloroso deverá ser, eu suspeito, o impacto, àquela altitude, na calçada empedrada. Sim, se a pobre ave confundisse as pedras reluzentes com as escamas de um fresco peixe, certamente investiria, ávida e triunfante, sobre o foco da sua ilusão!

Sempre desejei perguntar a uma gaivota o seu nome. Mas nunca encontrei uma disponível para me falar. Gostaria de encontrar o Fernão, confesso… Ou outro qualquer, até. Mas o Fernão é especial. Essa obstinação de ser a gaivota que voa mais alto tem que se lhe diga… Sabedoria intuída, é o que é. Porque procuraria o Fernão? Creio que seria agradável desfrutar da hipótese de lhe expor algumas dúvidas que durante a noite amiúde me assaltam… Talvez o meu voo não seja assim tão seguro quanto o dele. Ou não tenha ainda me despenhado as vezes suficientes. Há quem aprenda a voar pelo simples bater de asas; outros, pelas quedas que suportam. A existência é multifacetada… Ou simplesmente a mudez das tardes cinzas instigasse o sonho de voar que tão profundamente se enraizou no imaginário humano. Existem coisas que as aves conhecem melhor que os Homens… O voo, sempre secreto e místico, tê-las-á abençoado, pois possuem uma visão bem mais acurada das coisas. Muito poderemos aprender com cada uma delas.

Não necessito de asas para voar, é certo… Mas, não podendo, resigno-me a observá-las no alto da cidade. Sim, observar o voo da gaivota. É importante que não percamos o rumo da conversa. Mesmo que não saiba ao certo qual é. Enfim, sempre indaguei o porquê da gaivota eleger a cidade como destino de passeio… Especialmente uma região tão a norte como esta, e naturalmente mais afastada do rio que banha a cidade - o ambiente mais propício ao seu voo. Será efectivamente um refúgio? Ou algum sensor ancestral desperta no interior da gaivota em dias assim, levando-a a instintivamente sobrevoar regiões de marítimos antepassados? Talvez as ruas que hoje calco tenham sido as caves de um mar imenso que milénios atrás cobriu estas estradas envelhecidas… E a gaivota pressinta, muito justamente, um perfume de sal no meio de tanta palavra agreste futilmente lançada ao vento e ruídos metálicos repercutidos até ao seguro limiar da enfraquecida sanidade. Mesmo que a dita tenha, cientificamente falando, agora, nascido a apenas cinco anos atrás (suponhamos, claro - se não lhe sei o nome, como especular sobre a sua idade?). Ao que parece, a intuição de uma gaivota vence o frívolo esquecimento imposto, como uma herança sem hipótese de recusa, pelo implacável Tempo. E ainda há quem não queira ser como elas…

Existem factos que corroboram as evidências. O bairro da Ameixoeira, por exemplo, aqui tão perto desta gaivota que vagueia (quem sabe se não reservou a tarde para explorar as ruas que o formam?), deve o seu peculiar nome, segundo alguns estudiosos, a uma depreciação da palavra “Ameijoeira”, pois, ao que parece, grandes quantidades de fósseis pré-históricos, respeitante aos seres ostentadores de concha, foram descobertos naquela zona da cidade há muitos anos atrás. Ora, não sugere isso que, havendo conchas fossilizadas, algures nas dobras do Tempo um grande mar cobriu a planície? E as gaivotas, em dias cinzentos, ainda hoje lá retornam, mesmo tendo nascido há apenas cinco anos atrás, como a nossa teoria sugeriu, seguindo escrupulosa e fielmente um instinto de apelos distantes, preciosamente legado através de incontáveis gerações. Não é só do voo que se desprende misticismo; o coração de uma gaivota encerra segredos que qualquer Homem ansiaria por conhecer!

A chuva ameaça o seu retorno. A gaivota recolher-se-á em breve. Sinto já, ainda que agora a contemple, a ausência do estridente grasnar que entre as muralhas dos descoloridos prédios ecoava. Uma última dança, então, gaivota, agora que as tuas semelhantes juntam o seu voo ao teu. Eis a valsa da despedida: círculos e círculos sem vestígio impresso na imensa platina do céu melancólico, curvas e contra-curvas embebidas em mistério e oculta sabedoria. O voo da gaivota é uma poesia. Sem rima, verso ou palavra. O voo da gaivota é melodia. E silêncio.

A branca folha até aqui proscrita nas imperfeições do tampo da secretária aclama os afagos da mão deste poeta que sou. Outras palavras urgem ser registadas. De olhar preso ao velho bloco de notas, é hora de a pena desbravar a imensidão das linhas cerradas. Ao mesmo tempo, a gaivota, nas lonjuras celestiais, soletra o seu alfabeto aos pequenos peixes que julga contemplar. Como é bela, ostentando a eternidade dos poemas sem nome... Mas o poeta só incrusta, repetidamente, letras na rudeza das pedras. A sua forma é limitada.

Após mais um círculo desenhado no etéreo, desperta o apelo que perfumou a infância. Desejo ser como a gaivota. Um sopro de vento. Apenas.





Pedro Belo Clara.




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