Os dias
cinzentos convidam à reflexão. E é no seio dessa húmida atmosfera
de marítimos odores,
prenhe de saudade e de sal, que se queda um poeta.
No
coração escuta o bramir de um mar sempre ausente. Crê que o traz
em si, entranhado na mais recôndita das fímbrias do ser, desde que
se conhece como é. Em certos dias, quando o rebuliço se reforça e
o eco mais se faz sentir, dá por ele a indagar se por suas veias
corre o mais comum dos líquidos ou uma qualquer mistura de água e
sódio. Nos altos céus de platina, embebidos em melancolia, uma
gaivota imprime a sua invisível rota. Algures no meio, entre coração
e céu, o poeta, rochedo profundamente fincado num areal de praia
imaginada, é testemunha de fenómenos que não compreende. Mas
voltemos, por ora, à gaivota.
Devo
confessar que o seu voo sempre me intrigou. Agora, intriga-me ainda
mais. Intriga-me e seduz. Especialmente quando tais peculiares aves
trocam os imensos espelhos onde habitualmente se estudam e revêem em
detrimento de deambulações por sobre estradas de rumos confusos,
agitações fumegantes e brilhos toscamente intermitentes. Não
poderei explicar o porquê, claro está. O voo da gaivota é
semelhante ao voo de qualquer outra ave: repleto de mistérios.
Talvez por essa mesma razão, ao concluí-la, o Homem tenha almejado
(admitamos: cobiçado) essa arte tão intrinsecamente
ligada à essência daqueles que ostentam penas e asas.
Mas
lá que o voo é intrigante, é. «Gaivotas em terra, sinal de
temporal» - escutei tal máxima durante toda a minha infância. Quem
sabe se tal repetição não se tornou, com o fermentar dos anos, em
ladainha interior até à exaustão repetida, eco após eco, numa
espécie de oração que recordava a chegada dos dias cinzentos e
chuvosos, os tais que tanto convidam à reflexão? Com
eles vinham as gaivotas. E era
vê-las pelos céus da cidade, em círculos sobrevoando as
construções altivas, masmorras de betão, como se por ali, entre a
calçada, buscassem pacientemente a prata de um suculento pescado. Ao
mínimo movimento, assim davam a entender, lá investiriam em voo
picado, prontas a reclamar o seu justo prémio. Mas nunca o fizeram,
curiosamente… Nem nunca, em plena rua, me deparei com uma.
Certamente que, se esbarrasse nesse exemplar, haveria de me deparar
com um em estado de plena “convalescença”, permita-se
a expressão, já que doloroso deverá ser, eu suspeito, o impacto,
àquela altitude, na calçada empedrada. Sim, se a pobre ave
confundisse as pedras reluzentes com as escamas de um fresco peixe,
certamente investiria, ávida e triunfante, sobre o foco da sua
ilusão!
Sempre
desejei perguntar a uma gaivota o seu nome. Mas nunca encontrei uma
disponível para me falar. Gostaria de encontrar o Fernão, confesso…
Ou outro qualquer, até. Mas o Fernão é especial. Essa obstinação
de ser a gaivota que voa mais
alto tem que se lhe diga… Sabedoria intuída, é o que é. Porque
procuraria o Fernão? Creio que seria agradável desfrutar da
hipótese de lhe expor algumas dúvidas que durante a noite amiúde
me assaltam… Talvez o meu voo não seja assim tão seguro quanto o
dele. Ou não tenha ainda me despenhado as vezes suficientes. Há
quem aprenda a voar pelo simples bater de asas; outros, pelas quedas
que suportam. A existência é multifacetada… Ou simplesmente a
mudez das tardes cinzas instigasse o sonho de voar que tão
profundamente se enraizou no imaginário humano. Existem coisas que
as aves conhecem melhor que os Homens… O voo, sempre secreto e
místico, tê-las-á abençoado, pois possuem uma visão bem mais
acurada das coisas. Muito poderemos aprender com cada uma delas.
Não
necessito de asas para voar, é certo… Mas, não podendo,
resigno-me a observá-las no alto da cidade. Sim, observar o voo da
gaivota. É importante que não percamos o rumo da conversa. Mesmo
que não saiba ao certo qual é. Enfim, sempre indaguei o porquê da
gaivota eleger a cidade como destino de passeio… Especialmente uma
região tão a norte como esta, e naturalmente mais afastada do rio
que banha a cidade - o ambiente mais propício ao seu voo. Será
efectivamente um refúgio? Ou algum sensor ancestral desperta no
interior da gaivota em dias assim, levando-a a instintivamente
sobrevoar regiões de marítimos antepassados? Talvez as ruas que
hoje calco tenham sido as caves de um mar imenso que milénios atrás
cobriu estas estradas envelhecidas… E a gaivota pressinta, muito
justamente, um perfume de sal no meio de tanta palavra agreste
futilmente lançada ao vento e ruídos metálicos repercutidos até
ao seguro limiar da enfraquecida sanidade. Mesmo que a dita tenha,
cientificamente falando, agora, nascido a apenas cinco anos atrás
(suponhamos, claro - se não lhe sei o nome, como especular sobre a
sua idade?). Ao que parece, a intuição de uma gaivota vence o
frívolo esquecimento imposto, como uma herança sem hipótese de
recusa, pelo implacável Tempo. E ainda há quem não queira ser como
elas…
Existem
factos que corroboram as evidências. O bairro da Ameixoeira, por
exemplo, aqui tão perto desta gaivota que vagueia (quem sabe se não
reservou a tarde para explorar as ruas que o formam?), deve o seu
peculiar nome, segundo alguns estudiosos, a uma depreciação da
palavra “Ameijoeira”, pois, ao que parece, grandes quantidades de
fósseis pré-históricos, respeitante aos seres ostentadores de
concha, foram descobertos naquela zona da cidade há muitos anos
atrás. Ora, não sugere isso que, havendo conchas fossilizadas,
algures nas dobras do Tempo um grande mar cobriu a planície? E as
gaivotas, em dias cinzentos, ainda hoje lá retornam, mesmo tendo
nascido há apenas cinco anos atrás, como a nossa teoria sugeriu,
seguindo escrupulosa e fielmente um instinto de apelos distantes,
preciosamente legado através de incontáveis gerações. Não é só
do voo que se desprende misticismo; o coração de uma gaivota
encerra segredos que qualquer Homem ansiaria por conhecer!
A
chuva ameaça o seu retorno. A gaivota recolher-se-á em breve. Sinto
já, ainda que agora a contemple, a ausência do estridente grasnar
que entre as muralhas dos descoloridos prédios ecoava. Uma última
dança, então, gaivota, agora que as tuas semelhantes juntam o seu
voo ao teu. Eis a valsa da despedida: círculos e círculos sem
vestígio impresso na imensa platina do céu melancólico, curvas e
contra-curvas embebidas em mistério e oculta sabedoria. O voo da
gaivota é uma poesia. Sem rima, verso ou palavra. O voo da gaivota é
melodia. E silêncio.
A
branca folha até aqui proscrita nas imperfeições do tampo da
secretária aclama os afagos da mão deste poeta que sou. Outras
palavras urgem ser registadas. De olhar preso ao velho bloco de
notas, é hora de a pena desbravar a imensidão das linhas cerradas.
Ao mesmo tempo, a gaivota, nas lonjuras celestiais, soletra o seu
alfabeto aos pequenos peixes que julga contemplar. Como é bela,
ostentando a eternidade dos poemas sem nome... Mas o poeta só
incrusta, repetidamente, letras na rudeza das pedras. A sua forma é
limitada.
Após
mais um círculo desenhado no etéreo, desperta
o apelo que perfumou a infância. Desejo ser como a
gaivota. Um sopro de vento. Apenas.
Pedro
Belo Clara.
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