terça-feira, 26 de novembro de 2013

CONVITE


Estimados amigos e amigas,


É com um enorme prazer que vos convido para a sessão de lançamento do meu novo livro, "O velho sábio das montanhas", dia 21 de Dezembro, pelas 16 horas, na livraria Les Enfant Terribles - Espaço NIMAS.



Antes da sessão, será servido champanhe acompanhado com patés diversos. Após esse momento de descontracção e boa conversa, dar-se-á início à apresentação da obra. 

Conto com a vossa presença!

Até breve.


«Entregou os olhos ao céu. Inspirou e expirou profundamente. De seguida, fixou os profundos espelhos da sua sublime alma num qualquer ponto infinito, num qualquer pormenor que somente ele era capaz de observar. Então, no meio de todos nós, da mesma forma como entre nós sempre havia vivido, a todos falou. Como se fossemos um só.»

Pedro Belo Clara in "O velho sábio das montanhas"




PS: https://www.facebook.com/events/199584233561741/










segunda-feira, 25 de novembro de 2013

ALTOS E BAIXOS


Se pensarmos no Caminho como um espaço físico (uma estrada, por exemplo, que se espraia por infindas distâncias), por certo não o imaginamos recto, plano e totalmente desobstruído. Pelo menos, na sua globalidade, não o conceberíamos assim. Seria natural que mentalmente se desenhassem curvas, morros, baixios e outros tipos de inclinações ou acidentes paisagísticos. Assim como este mundo material se preenche, em sua natureza, de vales, montanhas e planícies, também o Caminho, que se justifica ao ser percorrido pelo caminhante (caso contrário, seria somente uma ideia ou concepção filosófica), apresenta os seus peculiares registos de paisagens. Comummente falando, os seus “altos e baixos” – relevos que o adornam e que comportam uma prova para todo aquele que por tais meandros se aventure.

Poder-se-á pensar, para o efeito, que os ditos “altos”, ou zonas de maior elevação, sejam compreendidos pelas emoções mais atreitas ao festejo, celebração ou, simplesmente, ao sorriso. São experimentadas sensações que se revelam quentes e agradáveis, de vibração elevada, e capazes de fomentar uma aprazível experiência. A alegria, por exemplo, será um desses casos. Ao invés, nas demais identificar-se-ão, por senso comum, e seguindo a lógica apresentada, emoções como a melancolia, a tristeza ou a angústia. Sensações, por sua vez, frias e de vibração mais baixa. A presença da dor, nestes casos, pode ser invariavelmente comum – quer ao nível físico, quer ao nível espiritual. Assim, facilmente se entenderá que, por cada passada que no Caminho se invista, novas experiências e sucedidos tomarão o seu lugar. Com eles surgirá uma oportunidade de crescimento, de aprendizagem e de equilíbrio. Como remanescente, a emoção saboreada. Assim se vai recheando o caminho pessoal.

É claro que tal ideia aplicar-se-á a todo o viajante… Apenas se excluirmos a hipótese da transcendência, uma vez que esta, atributo derradeiro dos mais iluminados, naturalmente exclui toda a dualidade. E, no fundo, o que antes foi explanado obedece a esse princípio, fundamental ao bom girar da eterna roda que a existência terrena, com as suas sucessórias estações, é. Aplicando esse molde à ideia que tem vindo a ser transmitida, veremos que experimentar emoções não é mais do caminhar num círculo de sucessões constantes, vivenciando-se ora os “altos” ora os “baixos” que a humana condição pode oferecer. Como o Verão sucede a Primavera, o Inverno o Outono, o sol a lua, a chuva o tempo da seca, as experiências que se coleccionam pela estrada de uma vivência seguem o mesmíssimo propósito. E elas, como evento que se manifesta na matéria, isto é, no mundo físico, comportam a dualidade. Onde há amor, há dor; onde há alegria, há tristeza; onde há euforia, há depressão; onde há vitória, há derrota – é inevitável. Transcender é, por isso, ir além do dual e experimentar um estado de plenitude pura (não confundir com felicidade, pois também essa comporta o seu contrário). Ele é perene, fortemente iluminado e repleto de amor sem entraves ou condições, irradiando de dentro para fora. É nesse momento que a ilusão se quebra e a unidade primordial se revela. Contudo, se falamos de “luz” e de “amor”, facilmente se contraporá a concepção com recurso aos reflexos contrários destes: sombra e dor. Acontece que esse estado de iluminação é apenas a entrada para algo ainda mais superior (ignore-se o subtil pleonasmo). Esse, uma comunhão plena com tudo, é completamente extra-físico. Longa é a jornada de retorno a esse lar… Onde a unidade é finalmente recuperada. Além da luz e da sombra, pulsa o vazio… Um Nada que foi e é Tudo. Da mesma forma exacta em que no lugar de todas palavras está o silêncio, assim que estas cessarem ele, sua origem, fim e recomeço, sobressairá.

Com tais dizeres, não pretendi referir o «não-sentir» ou uma hipotética frieza emocional. O primeiro é um conceito distinto do que foi exposto, e o segundo uma defesa íntima do viajante desiludido, temerário e ferido. Transcender vai ainda para além desses conceitos ou atitudes instintivas ou pré-concebidas. Permanecer no centro elevado de nós próprios – eis o sentido mais translúcido da arte em questão. É um constante contacto com o fluxo energético superior, do qual somos todos uma pequena parte. Muitos viajantes, filhos de múltiplas causas, por diversas ocasiões experimentam estados idênticos, ainda que por efémeros momentos. Este viver (e permanecer) “acima das nuvens” significa estar-se imune aos efeitos da chuva que ocasionalmente tomba, em permanente contacto com o sol que então se revela. Não significa, contudo, que as experiências mais agrestes da vida material cessem para tais indivíduos. Nada disso. Tal estado até será constantemente posto à prova. Embora seja árduo de alcançar, mais árduo é reunir a disciplina necessária para o manter. A conquista da paz interior, no entanto, auxilia (e muito) na experimentação do mesmo.

Em forma de conclusão, pode-se assumir a imagem (ou ideia) de um estado de ser mais elevado e esclarecido, onde a pequena parte recorda a sua ligação ao todo e, assim, a personagem que no momento da vivência é cessa a sua influência mais directa. Então, o «estado de ser» transforma-se num quase «estado de não-ser». Focado não no vento que sopra, torna-se a folha que, suave, se curva e recurva perante o soprar do sopro primordial em sua existência. A ilusão mundana, como cristal que é, acaba por se quebrar perante tamanha luz alcançada, magnífica e excelsa, invocativa e evocativa. Contudo, para que a luz inunde uma divisão, é imperial descerrar as cortinas.

Mas não olvidemos o que antes havia sido debatido. Se retrocedermos no discurso, retomaremos o ponto dos “altos” e “baixos” que propositadamente povoam as existências. Importa, contudo, esclarecer o seguinte: a transcendência no plano físico não comporta o desfasamento desses relevos. Isto é, o sol e a chuva, metaforicamente falando, é claro, continuarão a se suceder e a verter os seus efeitos sobre o indivíduo. A única diferença reside na forma como este, em pleno estado transcendental, os recebe. Estar além da dualidade é constituir uma imunidade aos seus efeitos, embora não esteja a própria dualidade extinta. Assim se prova o quão possível é «viver na Terra como no Céu».

Não se ignore, ainda assim, a evidência de que o caminho até esse estado sublime se pauta por experiências e provações, por vitórias e derrotas. A dualidade deve ser provada para que conquistada possa ser. E em definitivo tal só se reclama quando as paixões, por exemplo, são saboreadas em constante equilíbrio. Não serão reprimidas, ignoradas ou obedecidas… Mas experimentadas de um modo moderado, apenas. Para isso, bastará saber minimizar os seus fortes apelos. Pois, como aquele que vive e caminha sabe, se seguidas elas tornar-se-ão destrutivas. Afinal, o viajante terá de abandonar o seu plácido centro para seguir no encalço da emoção. Mas tal não significa que não se munam de propósito ou cessem de comportar um relevante sentido.

Admita-se a seguinte imagem: se no topo de uma montanha a visão é claramente mais ampla e esclarecedora sobre a paisagem circundante, é a partir de um vale ou de um terreno côncavo que a visão dessa montanha, em si, se torna possível. No seu cume, apenas nos deslumbramos com a paisagem em redor, mas ignoramos o local onde efectivamente nos encontramos. É fácil esquecer as etapas que ao cume nos guiaram, estando este já conquistado. A visão que só o vale oferece é, assim, igualmente preciosa: auxilia-nos a recordar a beleza da montanha e o quão deslumbrante foi admirar aquele horizonte invencível. Poderá causar desagrado esse “baixo” na existência, mas só ele nos permite compreender a vera bênção que aquele “alto” constituiu.

Por diversas ocasiões, ignora o viajante a sua própria efemeridade. Ao longo da caminhada existencial, enquanto se recorda, se salda, se aprende ou se granjeiam as ferramentas necessárias à conquista da etapa, é não raras vezes consumido por um espírito de tamanha invencibilidade. Mas a condição humana, sob o ponto de vista material, é precisamente o oposto: efémera, como os demais elementos que compõem os tangíveis cenário em seu redor. A sanidade, ou a boa saúde física, apenas se poderá revelar um dado adquirido quando experimentada em seu esplendor. Parecerá eterna; mas, tal como as chuvas que chegam após o sol, não o será. Assim que se vive um “alto”, o seu “baixo” correspondente de pronto se anuncia. Ambos são a sombra um do outro, aguardando a hora em que dela irrompa uma reveladora luz - eis o simples suceder das estações. Neste caso em contrário, isto é, tendo a sanidade como exemplo, o seu contrário será a doença. Ela até encerra um motivo de aprendizagem, pois, ao ser consequência de algum comportamento menos equilibrado ou funcional, denuncia o que de errado tem sido feito ou assumido. Seja qual for a sua índole, origem ou gravidade, sempre é um válido e eficaz “despertador de consciências”, uma vez que se traduz num apelo à mudança e à elevação do ser em causa. É, portanto, uma ocasião de transcendência.

Poderá parecer dura, agreste ou injusta, mas constitui um rombo no casco da defesa humana, frágil e temerária, a quebra da máscara onde por tantas vezes o viajante se oculta e protege. Em todo o caso, conferir-lhe-á uma visão diferente sobre os sucedidos e a ordem sob a qual tudo se rege. A verdade é que sem ela não existiria lugar ao crescimento e à evolução. O que serviria permanecer no cume da montanha em plena (mas estagnada) alegria, vivendo de ilusões experimentadas? O apego é um veneno para toda a alma que anseie pela ascensão. A jornada deve ser cumprida até ao seu fim. Todo o viajante que não cumprir o seu desígnio, voltará ao caminho, uma e outra vez, até que se despoje de todas as bagagens, dívidas, feridas e dores. Não será preferível, antes, beber da alegria que nos é dada e, findada essa etapa, partir de pronto para a próxima? Um rio flui… Da nascente até à foz. Para quê temer o que nos espera, sem sequer o conhecermos? Essa visão toldada do Caminho assenta-se num medo íntimo e sem fim… Julgar dessa forma é desconhecer o que nos rege e, como tal, recusar aceitar o supremo bem de todas as coisas.

A dor nunca é desejável, claro… Mas é amplamente necessária. Assim como aceitamos o sol, aceitemos de igual modo a chuva. Ambos têm a sua validez, a sua crucialidade. Importa compreender a valiosa lição que trazem consigo. Nada do que se sucede no Caminho é fruto da casualidade. Se o viajante conseguir efectivamente ver à luz da sabedoria pessoal, saberá da inteligência não visível que tudo rege. Nada é por acaso. Nada se opõe ao Homem. Este é que, por sua vez, se opõe a inúmeras coisas. Rema contra a maré dos acontecimentos e morre de cansaço ao lutar contra forças que se recusa a aceitar e compreender. Os “acasos”, como tantas bocas gostam de os apelidar, são apenas causas e efeitos de outros gestos e de outras decisões, muitas vezes perdidas na linha do tempo… Que é recta e infinita. Apenas aqui, no físico plano, pela visão adoptada ser mais densa e restrita, é que tal visão não é assumida. Se nos elevássemos, veríamos o Tempo encaixar na perfeita metáfora de um rio que corre, sem começo ou fim – e onde tudo se sucede no mesmo exacto tempo.

Tudo detém a sua causa, o seu motivo, a sua razão; assim como todo o fruto guarda a sua semente. Apenas quando este se extingue é que a semente, até então protegida, mergulha nos braços da terra que a ela se abrir, iniciando o seu processo de germinação. Os sucedidos, ainda que tal não esteja visível ao viajante, ocorrem em prol do mesmo… Conspiram a favor daquele que caminha. E, querendo ou não, todos nós partilhamos este mundo de ilusões, todos nós nos quedamos perante as mesmas hipóteses e condições. Apesar de nos diferimos na forma como lidamos com tais aspectos, aplicando maiores ou menores doses de íntima sabedoria. Desse modo, cada um fará o seu próprio trajecto, em prol – que assim seja! – do seu benefício supremo.

É importante que a mente de cada um permaneça limpa de superstições, receios e tensões. Uma mente leve vê com maior clareza e clarividência. Sendo saudável, viverá elevada – focada nos mais luminosos princípios. Desde logo, esse é o primordial passo para a transmutação do estado “baixo” antes referido: a doença. Falo, claro está, da cura. Principiando-se no âmago de cada um, qual resposta à mais incessante das perguntas, encontra-se à simples distância de uma intrépida decisão. A transcendência para os casos doentios, que ao longo das vivências vamos coleccionando, detém-se, portanto, num conjunto de crenças em válidas razões, ainda que desconhecidas, e na certeza de que o primeiro passo a empreender compete ao sujeito em causa – tudo se encontra ao alcance de quem se dignar a estender um braço. Tal concede, desde logo, uma paz prometedora. Afinal, não estamos tão sós quanto ilusoriamente julgaríamos, no seio de uma tão alucinante dor. Aquela ferida poderá ser íntima, mas muitos, seja antes ou depois, partilharam ou partilharão da mesma. Todo o remanescente do processo será cumprido através do notável suceder de todas as coisas. Mas, antes de tudo, importa não perder o proveito que a nova experiência comporta – apesar de dolorosa.  

Se um comboio passar junto da sua estação, que o viajante o não perca. Ao fazê-lo, estará também a perder uma viagem deveras singular e tudo o que ela poderá abranger. Porque não arriscar? Porque não fluir? Porque não aceitar? Grandes bens eclodem na abdicação do “eu”… Sem nunca deixe de ser aquilo que é. Muito pelo contrário: apenas será aquilo que na verdade sempre foi. O que julgava que era não passava de uma roupagem, um disfarce temporário tido como real pela ilusão material do plano onde se encontra. Abdicando, fluirá… E entregar-se-á a um Bem supremo. Confiando nas ocultas (mas certas) razões, saboreará ao longo do percurso a mais aliviante das sensações que somente o mais inominável dos confortos poderá conceder: a serenidade de quem cultiva uma fé.





Pedro Belo Clara.






segunda-feira, 11 de novembro de 2013

CERTA NOITE, NUM QUARTO SEMI-ILUMINADO


            Em finais de Novembro de 2010 tive a oportunidade de apresentar ao público português o meu primeiro livro. No caso, de poesia. Nem outra coisa seria de esperar, diga-se; pois, à época, nove em cada dez trabalhos meus eram do género poético. Não possuo uma explicação plausível ou lógica para tal evidência, à excepção do facto da poesia sempre ter fluido por mim com uma naturalidade maior do que as restantes formas de literatura. Mas até esse dia nascer, como desde logo se pressagia, muitos outros foram mastigados e engolidos com esgares nem sempre agradáveis, o que deixa desde já antever a complexidade inerente ao próprio processo de edição – desde o momento em que decidimos enveredar por um caminho literário até ao ansiado instante que marca a publicação da obra de estreia.
            Se escrever um livro é uma tarefa complexa, ainda que deveras aprazível, editá-lo é simplesmente um acto que exige forças supra-humanas. Ao nível, provavelmente, segundo rezam os anais da mitologia grega, dos trabalhos que Hera incumbiu ao seu famoso enteado Hércules. Afinal, lidamos com diversas emoções que, qual miríade de pipocas implodindo no microondas, não cessam de vibrar por todas as fímbrias do ser: ansiedade, insegurança, frustração… Sei lá eu o que mais! Todos os que já se aventuraram por tais trilhos compreendem perfeitamente o que pretendo transmitir. Contudo, apesar do cenário geral – e eis a loucura suprema –, movidos por ocultas forças lá acabamos por perseverar em tão longa jornada. Assim se prova o quão capaz poderá ser a força de um verdadeiro amor.
            Assumir o que o coração mais nos implora não é um acto simples de executar. Pelo menos, não tão simples quanto poderá parecer. Escutá-lo até que se afigurará fácil, mas para seguir as linhas do que nos dita requer-se coragem (e uma certa dose de loucura, é claro). Quando chegou a minha vez de decidir um destino, no seio daquelas encruzilhadas existenciais em que ou escolhemos o trilho da direita ou o da esquerda, o comprido azul ou o vermelho, optei pelo caminho menos trilhado, menos provável e menos explorado – ignorando ainda, devo admitir, as belezas que tais rumos sempre encerram por tão poucas vezes serem visitados ou percorridos. Posteriormente, evocaria as célebres palavras do poeta Robert Frost: «Two roads diverged in a wood, and I — / I took the one less traveled by, / And that has made all the difference.» Hipótese de tradução: «Duas estradas bifurcavam num bosque, e eu / Eu segui pela que fora menos utilizada, / E isso fez toda a diferença».
            Sorri, quando me confrontei com este dizer. De certa forma, era um alento para a jornada que eu próprio me aprontava a empreender. Toda a escolha comporta uma consequência (não fosse ela uma forma de acção), mas estava preparado para assumi-la. Para o melhor ou para o pior, ao menos seria “à minha maneira”. Nem de sua justiça Sinatra diria melhor. Aliás, a própria mensagem dessa intemporal canção foi o inspirado mote que impulsionou a minha decisão. A partir daí, nada seria como dantes.
            Se aqui dou a conhecer uma parte do meu início como escritor, com os respectivos sentimentos, escolhas, pensamentos e decisões, é por sentir que para se compreender melhor o meu trabalho e a pessoa que sou importa antes perceber as circunstâncias em que tão decisivas opções foram tomadas. Afinal (publicamente me confesso), abdiquei de uma possivelmente bem sucedida carreira bancária para seguir os mais íntimos intentos deste sempre sábio coração. Terei chocado algumas consciências? Não foi a primeira vez. Como justificar uma certeza que é tão íntima? Somente aquele que a sente a poderá compreender e, posteriormente, seguir o seu subitamente iluminado rumo. É óbvio que o início de um novo caminho apresenta inúmeras dificuldades, testes à resistência do incauto caminhante que se apronta para tamanha empresa. Mas, se efectivamente desejar sentir a suavidade das pétalas da rosa que indaga, terá naturalmente de ultrapassar todos os espinhos que a compõem. É, de certo modo, uma forma de se provar digno do destino que escolheu.
As dúvidas eram gerais… E múltiplas. Ainda assim, não me demoveram do propósito. Aquilo que desejava e que como um apelo sentia a ribombar em mim era forte demais para ser ignorado ou proscrito como qualquer vestimenta que abdicamos ao longo do percurso. Era o que mais felicidade me proporcionava. E, sabendo-a não um fim mas antes uma continuidade, apliquei-me por garantir a sua companhia ao longo da jornada – tanto quanto me fosse possível. É claro que por vezes ela se eclipsava, mas… qual o dia que se diz sem chuva? A vida é impermanente: um conjunto de estações que ininterruptamente se sucedem. Há que saber lidar com tal característica tão primordial e intrínseca. O caminho que escolhemos encarrega-se de nos instruir nas especificações do mesmo. Basta estarmos atentos e receptivos.
Enfim, para poupar o leitor a detalhes possivelmente enfadonhos, resumo a ideia: o crucial é assumir a escolha, dar o melhor de nós próprios e… acreditar. Existe, contudo, uma diferença expressa entre “desejos” e “apelos”. Os primeiros são muitas vezes resultados dos devaneios de um corpo de prazeres ou de uma iludida alma que a eles perdidamente se entrega, sem vestígios de harmonia e equilíbrio; os últimos são os ecos da voz da alma, profundos, íntegros, genuínos… E não em raras ocasiões são o mais fiel guia que um Homem pode possuir em dias de tempestade. Haja sabedoria para os distinguir!
Mas, naquele tempo, ainda não compreendia totalmente o meu raio de actuação enquanto escritor. Sabia que queria seguir por essa via. Apesar de tão árdua e parca em estabilidade futura, ainda assim a queria. E a alma nunca cessava de me recordar tal coisa. Era por ali o caminho, e era naquela decisão que tudo se concretizaria. A criação literária trazia até mim um conforto extraordinário, uma felicidade imensa! Como poderia ignorar tal coisa? Renegar tamanha bênção? Por isso, confiei no meu sucesso. Tanto quanto hoje nele ainda confio. Não é uma extensão da arrogância esta íntima crença, mas uma forma de se perseverar no ofício que desenvolvemos. Cheguei a uma idade em que compreendi: se não confiarmos veramente em nós próprios, no nosso trabalho e em nossas acções, ninguém mais o fará. Pelo menos, com a força que só os visados conseguem (e podem) imprimir. Assim sendo, restava seguir em frente… E atravessar todas as brumas que assomavam ao horizonte.
Nos dias que correm, com outra perspectiva, naturalmente mais madura, ponderada e transcendente a muitas poeiras que as questões nunca respondidas levantam, entendo a totalidade do meu trabalho e a minha real função enquanto escritor. Acredito piamente que todo o Homem pode ser um farol para o seu semelhante. E o papel que escolhi é somente uma forma de justificar essa crença. O importante é cada um compreender a sua própria natureza, aceitá-la e, mediante o que se lhe apresenta, optar pela via que mais servirá o seu carácter. Assim, permanecendo e evoluindo no “lugar certo”, cumprindo as “certas funções”, dará um contributo muito mais eficaz e valioso a si próprio e ao colectivo que o rodeia.
Dias e dias de dúvidas, frustrações e poucas certezas depois, sempre com uma fé intensa no provir, mesmo em alturas onde as fundações lhe faltavam, eis que chega o momento de publicamente apresentar o meu primeiro livro. É extraordinário como aquele pequeno objecto consegue resumir tantos suspiros e dores… Memórias do processo findado, sem dúvida. Cada etapa vencida guiou-me até aquele dia. A primeira vitória foi nunca claudicar perante a subtil descrença que sempre sobrevinha de tempos a tempos (acima de tudo, é crucial persistir e jamais desesperar), mas naquele momento deu-se o glorificar de todo o negrume. Justificou-se, em suma, na luz daquele dia singular.
O evento correu optimamente bem, rodeado de amigos, familiares e simples curiosos. Dar autógrafos foi a grande novidade, mas posso abertamente afirmar que tal experiência se revelou bastante prazerosa. Nem poderia imaginar algo melhor. Entretanto, já tive a oportunidade de a repetir por mais duas ocasiões ditas “oficiais”. Em breve, dar-se-á a terceira – felizmente. Mas mais importante que isso é sentir o apoio e a amizade daqueles que nos querem bem. Entre todos a dúvida pode ser geral, a princípio; mas as pequenas vitórias vão igualmente provando aos demais o nosso empenho e vontade em proliferar no rumo que escolhemos. No final, somente contam os sorrisos e os desejos luminosos. Recordo os votos que no término desse dia uma amiga muito querida tão amavelmente me endereçou: «que continues a ser o orgulho da tua família e amigos». O que dizer perante tal coisa? Tempos depois, um outro amigo me confessaria o seguinte: «É desta! Vou iniciar um negócio por conta própria… E tu, com as decisões que tomastes em tua vida, foste um exemplo para mim!». Continuo sem saber o que dizer em resposta.
Eis algo ao qual na altura permanecia cego: o simples facto de poder primar pela diferença ao assumir uma escolha tão ilógica quanto incomum. Confesso que ignorava, de todo, essa hipótese. Mas os dias consumidos, como ondas de um mar de experiências, até às minhas orlas trouxeram a evidência: é possível ser-se um luminoso exemplo e sobre os demais exercer uma influência positiva através da afirmação daquilo que nós próprios somos. Na verdade, nem sei ser outra coisa além daquela que sou, neste tão breve tempo de vida.
A mais simples palavra, dita e assumida no mais casual dos instantes, pode comportar consequências extraordinárias! Não considere o leitor que com tudo isto me envaideço, pois o meu trabalho, e principalmente a intenção que o pensa, estará sempre em primeiro lugar, mesmo em relação à minha pessoa. Esta surge até em último lugar, uma vez que antes ainda se contam aqueles que sirvo através do ofício que laboro. Sejamos sinceros: o que deverá ser o obrar de um trabalho, se não uma material manifestação do amor? E de que serve o amor se não for dirigido àqueles que nos rodeiam? O Amor, meu caro leitor, é a chave que abre todas as portas, a sementeira a partir da qual tudo floresce, a base sobre a qual tudo se constrói.
Como entenderá aquele que agora me lê, nada de mais profundo poderei eu experimentar do que uma expressa gratidão por tudo aquilo que tão generosamente tenho recebido. É um privilégio, deveras. Sei-me intimamente abençoado. Além do mais, o meu trabalho justifica-se sempre que uma luz se reacende em meu semelhante. Afinal, é para ele que escrevo, é por ele que faço aquilo que faço. Porquê? Nem o sei… Apenas por ser assim que deve ser, apenas por ser desse modo que a minha existência se “encaixa” na eterna roda da vida. Os chineses, porém, no auge da sua sabedoria encontram uma belíssima razão: «Fica sempre um pouco de perfume na mão que oferece rosas». Nem todas as respostas estão disponíveis no consciente humano, mas essa é a minha intenção mais primordial. Pelo menos, consigo identificá-la e reunir os meios para a cumprir. E o consequente sentimento é a doce realização.
O caminho é longo, bem o sei… Ainda há tão pouco tempo nele me iniciei. Tenho o hábito de repetir uma expressão que um dia escrevi: «Nuvem após nuvem, até alcançar as estrelas». Apenas para que com essa luz própria uma outra possa ser incidida sobre toda a face que a ela se dirigir. Assim, abertamente afirmo: sou um homem feliz. Restrições? Claro que as há! Indiquem-me uma existência que esteja desprovida delas… Sou um homem feliz. Lamentosamente, nem todos poderão dizer o mesmo; mas oxalá um dia ainda o possam. Desejo-o fervorosamente. O meu testemunho é apenas a minha simples história, tão igual a qualquer outra. Em muitos casos, as ocasiões e os eventos são semelhantes; a diferença reside somente na forma como cada um de nós as aproveita e os vive. Ainda assim, espero que uma nova madrugada possa irromper na vida de tais caminhantes (uma simples metáfora para o que no fundo aqui somos: os caminhantes de uma extensa jornada existencial). Ou que uma qualquer alma se possa rever e encontrar em alguma linha desta crónica que escrevo e com sincero amor compartilho. O fruto, pelo menos, foi colhido e aqui se deposita. Que aquele que fome sentir possa encontrar a sua ansiada satisfação.
Muito há ainda a percorrer… Naturalmente. Mas permaneço diante da minha estrada mais vibrante e sorridente do que nunca. O infinito alonga-se no horizonte e a cada dia me aproximo mais do intento final. Tem sido uma jornada incrível… Perguntar-me-á o amigo leitor: valeu a pena? Vale a pena todos os dias! Por derrotas e vitórias vale um milhão de penas. Faria tudo de novo, se tal me fosse proposto em desafio. Indubitavelmente. E a julgar que tudo começou com um simples pensamento, com uma decisão a implorar o seu definitivo assumir… Há apenas três anos atrás, numa noite de reflexão, no mesmo quarto semi-iluminado onde agora me apronto a encerrar esta crónica.


Pedro Belo Clara.




PS: Dedico estas longas linhas à minha amiga e talentosa poetisa Paula Marques, que muito em breve estará a lançar o seu primeiro livro de poesias.


Nenhum caminho é igual a um outro. Ainda assim, deixei impresso o meu testemunho, resumido à sua forma mais crucial. Que nele consiga se rever e compreender que as dificuldades que experimentamos não nos assistem exclusivamente – em diversas circunstâncias são um lugar-comum. Assim, estreita-se a solidão do Homem. Felicidades à dedicada e a si, leitor, se por ventura se prepara para trilhar um caminho semelhante. Saibam, ambos, que alguém que sofre e ama como vós já trilhou rumos idênticos; saibam que não estarão sós; saibam que valerá a pena se permanecerem fiéis a vós próprios. E não se esqueçam: a vida é um sopro. Dêem-lhe forma!