sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ECOS DA CRISE


            A seguinte história, que a bem da verdade nem chega a merecer o epíteto de “história” (direi antes “relato” por de uma breve narração se tratar), chegou recentemente ao meu conhecimento por intermediários que me são próximos. O mesmo é dizer que não a testemunhei pessoalmente ou dela, tampouco, fiz parte. Escutei-a, somente. E hoje aqui a reproduzo com um assumido apelo à reflexão individual. Que o leitor, então, faça o que mais lhe aprouver com o que daqui sobejar.
          O interveniente directo deste sucedido, o primeiro narrador do caso em questão, não é nem do meu íntimo nem do meu casual conhecimento, como por certo já terá ficado esclarecido. Contudo, pelas palavras que compuseram o retrato da situação, acabou por pertencer a um círculo mais fechado de contactos, fruto da genuína humanidade que regou o seu simples acto. Acalme a sua curiosidade, caro leitor; no momento certo explicar-lhe-ei tudo devidamente.
            Ora, a pessoa em causa, numa manhã de Janeiro, como por certo o faz no alvorecer de cada novo dia de labor, seguia na sua viatura particular numa rua de Campolide, em Lisboa. Naturalmente, e seguindo sensatamente as regras de trânsito vigentes, parou por instantes junto de um semáforo vermelho. Aproveitando o tempo que a espera certamente lhe iria trazer, decidiu desviar a atenção da estrada e fixá-la nas incidências que pelo passeio, mesmo a seu lado, ocorriam. E em boa hora o fez.
            Acontece que naquele exacto momento, um senhor de ascendência africana, por certo um filho de uma das antigas colónias portuguesas daquele continente com extraordinários recursos naturais, encontrava-se de joelhos, sobre a calçada, sondando, ao que parecia, as terras de um pequeno canteiro aí existente. Numa primeira análise, a condutora do veículo por certo terá pensado, como qualquer um de nós perante a insólita situação, que o pobre homem (que não aparentava mais de sessenta anos de idade) havia perdido um dos seus parcos haveres naquele local. E digo parcos pois, pela indumentária que apresentava, gasta e descolorida, ao que se acrescentava a descuidada aparência, não seria certamente dono de muitos mais.  
         «Coitado… Perdeu algo e não o encontra.» - bem que poderia ter sido este o seu primeiro pensamento como espectadora do caso. Contudo, fiel, talvez, a uma indomável curiosidade, ou a uma intuição bem mais profunda, dona de intentos ocultos mas espantosamente acertados, não despregou o olhar daquele homem que em plena rua lisboeta permanecia ajoelhado. De seguida, ao aguçar a percepção do seu olhar, notou que ele não buscava algo entre a terra, mas – imagine-se! – a própria terra. «Porque motivo?» – indagará o leitor. Bem, de seguida o homem levou um punhado da mesma aos seus ressequidos lábios e… tentou mastigá-la. Creio que isso satisfará a dúvida que brevemente pairou por si.
          Sim, era verdade aquilo que os olhos da condutora presenciavam: um homem, em Lisboa, numa manhã de Inverno como tantas outras, ajoelhava-se para comer um pedaço de terra. É claro que a testemunha poderia simplesmente avançar assim que o sinal assumisse a cor verde, prosseguindo calmamente com os planos reservados para o dia que mal começara – absolutamente indiferente ao que tinha observado. Afinal, que homem era aquele que comia terra num canteiro de Lisboa? «Provavelmente detinha mil e um desarranjos psíquicos a carecer de tratamento urgente! É preciso afastarmo-nos de pessoas assim, loucas, desvairadas e sabe-se lá mais o quê, detentoras de patologias que nem nos mais completos livros de medicina surgem descriminadas… Pessoas assim são um flagelo, um perigo para a sociedade!» - no cume da nossa arrogância mesquinha, é provável que pensemos desse modo. Felizmente, existem excepções que ainda muito condignamente questionam as regras mais infundadas.
          A vida deposita um dos seus mais preciosos segredos não nos acontecimentos que a recheiam, mas na forma como cada um de nós, seus intervenientes directos ou indirectos, a eles reagimos. Assim que o sinal ficou verde, e a ordem de arranque foi dada, a dócil mulher, não querendo olvidar a estranheza do que vira, decidiu estacionar o mais perto que lhe foi possível e indagar, por si mesma, o caso que tanto a intrigava.
          «Oh, senhor… O que está a fazer? A comer terra??» - tê-lo-á questionado. Mas, antes que este tivesse tempo de responder, logo acrescentou: «O que se passa? O senhor tem fome?». Fome. Estaria aqui a resposta que deslindaria o estranho caso? «Sim, minha senhora, tenho fome, muita fome…» - respondera o amável indigente, quase lavado em lágrimas. A mulher, decidida, e já bastante incomodada com a crueza daquele retrato que corre sérios riscos de se repetir noutras ruas de outras cidades espalhadas por esse país fora, num repente dirigiu-se à sua viatura e lá reuniu o pouco que no momento possuía: o seu almoço. «Tome lá, homem, tome lá... Tome e deixe-se disso» - completou.  
O que se passou a seguir emocionaria qualquer um: o homem, praticamente afogado na sua própria emoção, prostrou-se aos pés da bondosa mulher e não cessava de repetir, com um ânimo bem vivo e sentido, a única ladainha que sabia: «Obrigado… Obrigado… Obrigado…». Tanto por tão pouco: uma sandes mista e uma peça de fruta.
            Feita a oferta, tão desprendida e isenta de falsas filantropias (oh, como as há por aí…), seguiu a dita senhora o seu rumo deixando o momentaneamente feliz homem a braços com uma refeição que muito provavelmente não desfrutava há dias. As aparências concedem ilusões tremendas, bem se prova… E a capacidade de julgamento do Homem, sempre tão altivo e impregnado de moralismos que nem auxiliam uma ave de asa quebrada, rege-se por parâmetros tão absurdos quanto questionáveis. Problemas psíquicos? Não. Fome. Tão somente fome.  
        A senhora ficou visivelmente abalada com o caso. Até esse aspecto do relato chegou até mim. Contudo, importa ver a questão por um outro lado: naquele exacto momento, uma simples acção trouxe uma luz infinda a um mundo de precário viver. É claro que, e com imenso pesar o digo, como aquele homem muitos outros haverá, assim como mulheres e, mais grave ainda, crianças. São rostos anónimos que se ocultam na bruma capitalista de uma sociedade virada para dentro, isto é, focada nos interesses pessoais das supostas elites que julgam governar. Até a pobreza, essa inaceitável chaga social de um regime que se diz democrático (embora somente pareça empenhado em adensar as disparidades entre todos os escalões na vez de as diluir), torna-se aceitável quando, num ápice, viramos a atenção para o outro lado da estrada e testemunhamos o flagelo da fome.
          Confesso-lhe, estimado amigo que me lê, que durante o meu tempo de vida nunca pensei ver, ou neste caso escutar, os ecos da fome na cidade que me viu nascer. Indigentes sondando caixotes em busca de haveres ou de restos comestíveis de alimentos? Sim. Mas… terra? Quão profundo não seria o desespero daquele homem para se debruçar em plena via pública e pegar num punhado de terra? Ainda que pela cidade existam, efectivamente, resíduos disponíveis (qual a humanidade daqueles que comem as migalhas de um pão que outros renegaram?) e até as famosas e sempre úteis cantinas onde necessitados de diversas causas encontram refeições quentes. Mas aquele homem escolhera a terra. A terra. De um canteiro pequeno e rasteiro. Numa movimentada rua de Lisboa.
         Esta crónica encerra-se aqui. O caso fala por si. E, mais do que dele tão transparentemente sobressai, flutua pungente a intenção e o significado daquilo que o próprio oculta. Que cada um leia e julgue por si mesmo. A tarefa deste escriba foi cumprida. Agora, será dada palavra à reflexão individual.
Uma crise económica é sempre, em primeiro lugar, uma crise humana, de valores e de prioridades. Que cada um possa meditar no rumo que este país começa por assumir, conduzido por governantes que de conveniência se dizem cegos. Será esta a sociedade que desejamos? Serão estes os exemplos que queremos deixar como legado a nossos filhos e netos? Que cada um sonde o seu recanto mais íntimo e entenda, por fim, que quando a base da pirâmide se agita o topo, invariavelmente, cede. Mesmo que quem o ocupe se julgue confortavelmente intangível. Cada um de nós detém a hipótese de influenciar positivamente o mundo que o rodeia. Pequenos actos fazem a maior das diferenças, encerram o mais proveitoso dos impactos. De um gesto simples pode nascer uma luz incrível. A pessoa que testemunhou a ocorrência tornou-se na prova viva dessa premissa.
Que saibamos dar pão a quem só tem terra para comer.




Pedro Belo Clara. 





quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

RETALHOS DA SAGA DE UM ESCRITOR (PARTE II)


              O dia amanhecera plácido e gélido. Após despertar, dirigi-me à janela do quarto para saborear um pouco o álgido ar daquela manhã de tímido sol. Tudo imergia, ainda, numa imensa e invisível onda de tranquilidade que descia dos montes, circundava as casas e naquela pequena varanda encontrava a sua praia ideal para morrer a meus pés. O coração de súbito acelerou-se quando a mente, retornando a si, desfez o resquício do sonho e ressuscitou a inegável realidade. Afinal, era chegado o dia onde todos os compromissos se cumpririam.
            Não me recordo se a noite fora profícua em descanso ou embalada em vagas de súbitas agitações… Apenas que, decidido, focava-me no objectivo que tinha em mente. E a partir daí não pensara em mais nada. O dia tinha nascido. Era chegada a hora. Tão simples quanto isso.
            Após saciar a parca fome e trocar com as companhias de então dois dedos de conversa, entre sumos de laranja, pequenos pães e bolos e cafés fumegantes, retornei ao quarto para finalizar os retoques na indumentária e reunir o material que o evento mais requereria. Estando tudo pronto e na devida ordem, despedi-me de quem de direito e saí do hotel rumo ao destino mais aguardado. Uma vez que na véspera lá tinha estado, não haveria hipótese de engano. Felizmente. 
            O vento era gélido, não sobravam dúvidas… Mas o frio tipicamente seco daquele local eram bastante suportável quando comparado com o frio húmido que habitualmente paira nessa altura do ano pela cidade que me viu nascer. Em suma, o Outono de lá assemelhava-se ao Inverno de Lisboa, extraindo apenas esse húmido factor que tanta estrutura óssea danifica. Nada de grave, portanto. Creio que os termómetros marcariam àquela hora uns condignos cinco graus centígrados, mas para a minha percepção não estariam menos de doze graus. Por aqui se vê o quão se habitua um organismo às temperaturas que reinam pelo seu ambiente nativo.  
            O vento, contudo, auxiliou-me a conservar a mente vazia, despojada de pensamentos menos desejáveis ou de apertos absolutamente injustificáveis. Cheguei ao portão principal da escola, identifiquei-me e, após concedida a autorização de entrada, dirigi-me à biblioteca onde se desenrolaria o evento. Pelos corredores, caminhando assim tão à-vontade, quase que passava despercebido por entre funcionários e alunos. Um novo professor, quem sabe, que se aprontava para se estrear naquele estabelecimento de ensino?
            Munido de alguns exemplares do meu último livro, à data, publicado, entrei na biblioteca e, vendo os arranjos devidamente concretizados, atravessei a fila de cadeiras ainda vazias para me instalar no lugar que seria meu por efémero direito. É claro que o evento não envolveria somente os temas que anteriormente explanei, mas igualmente a oportunidade de vender, a um preço bastante acessível, alguns exemplares da obra que comigo havia trazido (“Nova Era”, um livro de poesia editado em Dezembro de 2011). As vendas foram bastante razoáveis, devo dizê-lo, embora nunca tivesse alimentado a ilusão de que enriqueceria sobejamente com os lucros aí angariados. Mas importante que tudo isso foi a oportunidade dada aos alunos, professores e funcionários de lerem a obra e meditar sobre a sua universal mensagem. Essa sempre é a minha máxima prioridade.
            Enquanto aguardava a chegada dos alunos e da professora de português com quem havia previamente combinado o alinhamento das três sessões, e que do mesmo modo seria a minha companhia de mesa durante todo o evento, desfrutei de uma agradável conversa com a funcionária da biblioteca. Enfim, assuntos banais que somente nos auxiliam a descontrair e a mergulhar, com o devido afinco, no novo ambiente em que nos encontramos. Aqueles minutos, assim, passaram graças à troca de impressões sobre o estado do tempo, o meu conhecimento sobre a vila e a própria região e até sobre as origens ancestrais da família. O facto de descender de beirões, por parte paterna, e devido à grande proximidade entre as duas zonas do país, sempre acalenta uma conversa que, de outro modo, poderia facilmente esmorecer.
            As cortesias foram sendo trocadas de forma bastante genuína e agradável até a referida professora chegar. Cumprimentámo-nos, falámos sobre pertinentes assuntos que mereciam uma derradeira abordagem e, por fim, tomámos o devido lugar na mesa do evento. Os alunos estavam quase a chegar.
            Com uma afluência bastante regular, de pronto se ocuparam todas as cadeiras. Alguns funcionários, inclusive, tiveram de permanecer de pé. Pelo menos, durante a primeira das três sessões que o evento comportaria. As introduções foram feitas e as apresentações concretizadas, até chegar o momento em que me foi dada a palavra. Assim, comecei por relatar a origem da minha história nas letras, bastante curta ainda, na esperança de que em algum momento, fosse de que forma fosse, certas palavras inspirassem a jovem audiência ou, em derradeira instância, os instigasse a reflectir sobre questões veramente importantes. Acima de tudo, optei por ser fluido… Como se se tratasse de uma conversa entre amigos. Que outra forma haverá de manifestar uma sincera acessibilidade?
            Três turmas diferentes escutaram as palavras que naquele dia proferi. Contando com a indispensável pausa para almoço e café, o evento terá encerrado, oficialmente, por volta das três horas e meia da tarde. Ao longo das horas anteriores contaram-se muitos sorrisos, autógrafos, fotografias e momentos de boa disposição e conversa. No período de almoço, inclusive, onde tive o privilégio de partilhar a refeição com a professora de português anteriormente citada em plena cantina escolar. Sinceramente, é nesse meio que prefiro estar: entre as pessoas. Principalmente, e aplicando a fórmula ao caso em questão, no meio daquelas que me vieram ver e ouvir.  
Nada tenho contra as supostas elites, mas o afastamento social que por norma é seu apanágio contraria a minha natureza. A ideia de quem me convidou, soube depois, consistiria em realizar o almoço num restaurante da zona, hipótese que igualmente aceitaria com o maior dos prazeres. Mas a forma como o caso se desenrolou acabou por ser ainda melhor: almoço na cantina entre os alunos e no meio dos alunos. Sem sequer registar um esboço de hesitação em pegar no meu próprio tabuleiro, servir-me convenientemente e arrumá-lo de pronto, quando findou a refeição. A ideia extravasa completamente a tendência (ou bom-senso) de ser romano em Roma; prende-se antes com uma questão de atitude, de abertura e de aceitação para com o meio envolvente.
A imagem que se poderá reter é a de um político que decide almoçar com alguns representantes do povo que governa, partilhando as suas instalações e o seu meio de convivência. Digo isto apenas, é claro, por motivos comparativos, com o intuito de esclarecer o leitor sobre os sentimentos então vividos. Não detenho ambições políticas, nem nunca as tive, mas, se as possuísse, pode o leitor crer que seria alguém bastante próximo da população pelos motivos anteriormente referidos. A íntima natureza que me assiste não permite que seja de um outro modo.
Creio que uma das mais eficazes virtudes que naquele dia decidi colocar em prática foi a de não criar qualquer tipo de expectativa. Afinal, como numa outra ocasião tive a oportunidade de escrever, «só se desilude aquele que se ilude». Portanto, sem expectativa pré-concebida, seria impossível acalentar ilusões vítreas. Permiti-me simplesmente a ir ao encontro do que me esperava de braços bem abertos. Apenas com um objectivo em mente e despojado de iludidas ambições, terminei o dia de coração cheio.
Ainda hoje esboço um sorriso ao recordar certos episódios vividos naquele dia de Novembro: as pertinentes perguntas de alguns alunos menos tímidos, o clima de amizade que senti em cada recanto da escola, as conversas à hora do almoço com a professora que me recebeu, o café saboreado na belíssima instalação termal da vila, o encontro com o director e demais professores e funcionários, entre muitos, muitos outros exemplos. Uma das maiores gratidões que cultivei e que comigo trouxe, no regresso, foi a forma aberta e veramente simpática com que fui recebido. Por todos, direi: alunos, funcionários, professores e director. Muito além dos agradáveis momentos de venda de livros, das fotografias que os alunos quiseram tirar comigo, os cartazes afixados com o meu nome e rosto ou o magnífico cabaz que a direcção me ofereceu no final do dia (o aveludado vinho que o compunha regou, inclusive, a minha ceia de Natal), permaneceu o sorriso das pessoas com quem me cruzei e, principalmente, o agrado dos alunos com a minha simples presença em sua escola. Eu, sendo um completo desconhecido naquelas paragens, senti-me, e muito humildemente o digo, como uma autêntica rock star.
Poderei ter pensado que me depararia com os orgulhosos descendentes dessa tão nobre e ilustre estirpe lusitana: os herdeiros de Viriato. Gentes de rostos sóbrios e agrestes, com olhares de fino brilho lembrando a sua excelsa origem… Porque não? Mas muito me equivocaria… Encontrei jovens, apenas jovens; tão idênticos, em sonhos e esperanças, àquele que não há muitos anos atrás eu próprio fora.
Ainda que tenha tentado manter-me, durante o desenrolar das agradáveis sessões que partilhámos, num patamar onde pudesse ser, com a máxima clareza, compreendido, na verdade poucas coisas distinguiram a audiência do orador… À parte, apenas, o facto de terem nascido e crescido em zonas distintas do país, com um leve contraste urbano/rural a separar as naturais incidências da juventude. Mas tal aspecto remete ao meio exterior, não à essência. E dentro desse tema, eu o senti, compreendíamos todos o mesmo alfabeto.
A história que sombreia a existência individual, que ajuda a explicar um pouco aquilo que hoje ela é, apresenta-se como um factor diferencial e único ao mesmo tempo. Cada indivíduo detém o seu próprio rumo, a sua própria história. Naturalmente. Por isso, anuo: cada um de nós era um filho de múltiplas causas e escreveu histórias diferentes ao longo do percurso pessoal, ainda que estas se possam unir em determinados pontos. No próprio caminho existencial, apenas por em idade ser mais velho que a audiência, sigo eu na dianteira. Mas tal facto não deverá constituir um factor diferencial, um motivo de apartamento ou relativização. Pelo contrário: é uma séria responsabilidade. Muito mais nos uniu do que certamente nos separou.
Não me recordo já do exacto modo como terminei cada palestra ou como daquele amigável ambiente me despedi. As palavras tendem a oxidar com o tempo, e só subsistem, com maior ou menor desvio, enquanto forem recordadas. Pouco importa, contudo, quando sobeja o principal: o sentimento experimentado.
Na manhã seguinte, com apenas dois graus de temperatura, aprontava-me para a partida com um intenso desejo de retorno. Ainda não tinha abandonado a vila e já elaborava planos para voltar. Assim cogitava, enquanto me divertia a assistir ao jovem casal estrangeiro, provavelmente inglês, que raspava o gelo matinal cravado no vidro do seu carro alugado. De facto, pela tipicidade do local, coisas bem típicas e singulares são passíveis de acontecer – o que apenas incrementa a fineza do perfume que tão bem caracteriza aquelas paragens.
Nesta crónica que assino, e que agora se irá encerrar, apenas poderei sublinhar o sentimento de gratidão que efervesceu como resultado de toda aquela experiência. Sei que me repito, mas é justo que o faça. A felicidade que aí colhi deve-se, em grande parte, a esse aprazível sentir. Foi um gosto imenso provar o etéreo abraço de tais gentes.
Terei eu primado, afinal, pela diferença? Concretizado um positivo impacto junto de algum aluno? Não o sei. Provavelmente, apenas lhes proporcionei um óptimo tempo de descontracção ou uma sempre apetecível fuga às aulas vigentes. Isto eu sei: dei o melhor que tinha em mim, em cada sessão me revelando o mais aberto e acessível que sei ser. Também não sei se isso, junto do próximo, terá bastado, mas a minha consciência vive tranquila e em paz por saber que conseguiu alcançar o seu íntimo propósito. 
Talvez um dia mais tarde um daqueles alunos me reencontre num qualquer lugar e diga de sua justiça. Talvez muitos até já me tenham esquecido, mas… o que importa isso afinal? A semente foi plantada. Basta aguardar o crescimento da árvore. Recorrendo às sábias palavras de um famoso ditado chinês, embaralhando-as, sei que ofereci todas as rosas que tinha para dar. Nas mãos que as concederam, as minhas, habita a essência do seu delicado perfume. E durante largos anos aí perdurará. Disso eu estou certo.




Pedro Belo Clara.