domingo, 29 de setembro de 2013

A VALIOSA PROMESSA DE UM VOTO


Deu-se o caso em Lisboa, cidade onde nasci e vivo, mais precisamente numa estreita rua que muito me é familiar – ou não tivesse habitado lá, de forma quase permanente, durante os primeiros dezassete anos da minha vida.

Como se compreende pela minha histórica ligação ao local, possuo razões bastante válidas para continuar a frequentá-lo. Não me refiro apenas às imensas memórias daquele lugar que por meus olhos foi contemplado e por minha alma sentido ao longo das diversas estações que compõe um só ano, ainda que, como no início referi, tenham sido muitos os que lá passei. Refiro-me antes às pessoas que adornam tais espaços e que, na maioria das vezes, fazem deles aquilo que são.

Foi, assim, num retorno a um passado tantas vezes revisitado que o motivo desta crónica se sucedeu. Por outras palavras, visitava um familiar quando a história em causa chegou ao meu conhecimento. Como expliquei no parágrafo anterior: não só de memórias pessoais se ornamentam os lugares. As pessoas são igualmente uma inestimável parte desse património. E, apesar desse capítulo da minha vida ter já conhecido o seu término, continuam a subsistir razões para que retorne ao mesmo. E ainda bem que assim é. Pelo menos, por enquanto. Creio verdadeiramente que todo o vinho merece ser saboreado em pleno antes que a garrafa que o guarda fique vazia. Por isso, não se trata de um «passado extinto»; antes de um «passado» que… evoluiu para «presente».            

Mas não me alongarei mais em assuntos que não sejam tidos como principais. Assim, como dizia, àquele lugar tinha regressado com o intuito de visitar um familiar (e, claro, recordar alegremente outros tempos). Mas antes que relate o resto da história, devo esclarecer o leitor do seguinte: a rua a que me refiro é, a bem da verdade, uma longa calçada. Até o seu próprio nome sublinha essa evidência. Ela vem desaguar, no sentido de quem a desce, numa outra rua, sempre movimentada, e nasce, se continuarmos com a visão do transeunte que a desce, no centro da zona que confere o nome à freguesia onde se situa. Em suma, é longa, estreita e, num determinado ponto, bastante acentuada.

Devo, porém, realizar uma nova pausa e proporcionar ao meu caro leitor brasileiro o seguinte esclarecimento, perfeitamente justificável e, espero, revelador do significado de certas terminologias que irei utilizar. Cada cidade, em Portugal, é constituída por diversas freguesias (não confundir com bairros). No fundo, zonas de um determinado espaço citadino que contam com aquilo a que chamamos de “junta de freguesia”. Assim, cada freguesia possui a sua junta e cada junta o seu presidente. É a expressão mais básica do poder político – o poder local. Por sua vez, cada cidade possui a sua “câmara municipal” e, consequentemente, o seu presidente. É esta figura que assume e desempenha um papel semelhante ao dos “prefeitos” que tão bem os brasileiros conhecem. E sempre que se elegem novos presidentes, para as juntas e para as câmaras, designamos essas eleições de “autárquicas”. Afinal, servem para eleger os novos membros das diversas autarquias do país. Compreendido?

Continuemos: acontece que, como consequência de uma intenção da junta de freguesia local em renovar o pavimento das estradas e ruas da zona, a dita calçada encontrava-se à data (e, confesso, ainda se encontra) em plenas obras de reabilitação. É claro que empreitadas do género não se operam sem a habitual confusão e ruídos próprios dos trabalhos, adensados pelas persistentes queixas de moradores e comerciantes. É inevitável. E, ao mesmo tempo, cómico e antagónico. A intenção de recuperar a calçada foi de pronto louvada; contudo, a obrigatoriedade de passar pelos dias de repavimento, acerto de passeios, remoção de pedras e nuvens de poeira já não é tão pacientemente suportada. O português é um povo pleno de contradições…

No entanto, o processo de melhoramento da via estava demorado. E, como tal, a paciência dos locais cada vez mais extinta. De certa forma, compreendo. Tais obras mobilizam meios e a vida habitual da rua deixa simplesmente de existir. Tudo o que se faz, desde o caminhar sobre o passeio ao entrar num restaurante para almoçar, é condicionado. Não é agradável, obviamente. Mas, em todo o caso, necessário.

Um comerciante local, proprietário de um restaurante, andava particularmente irritado com os ruídos e com a própria demora na conclusão dos trabalhos. Isto sem contar com os avanços e recuos que o processo ia registando. Ora compunham e saiam do local, ora retornavam e compunham-no de novo. Todos temem, neste ponto, perder o habitual fluxo de clientela. Desde o dito dono do restaurante ao proprietário do cabeleireiro em frente. Mas era algo mais do que isso. O pobre homem queixava-se essencialmente da própria confusão, das redes, pilares, fitas e demais obstáculos que permaneciam espalhados pela rua e, muitas vezes, mesmo em frente à porta do seu estabelecimento. Oh, por quantos dias, pela manhã, teve ele de varrer a poeira que adormecia na entrada do restaurante, de forma a torná-lo novamente apetecível?

Mas um comerciante é um homem de contactos. Principalmente os que dirigem restaurantes de afluência local. É um privilégio conhecer a freguesia… Nunca se sabe quando dela iremos precisar. Além do mais, todos somos humanos… Todos necessitamos de uns minutos para desfrutar de uma refeição verdadeiramente retemperadora. Por isso, acabamos sempre por frequentar lugares do géneros, onde todos se conhecem e tudo (quase) se sabe.

Assim, quis o acaso que num belo dia pisasse a soleira da porta do estabelecimento do enfurecido comerciante uma senhora que, lá está, por acaso era assessora da presidente da dita junta de freguesia. Oportunidades dessas jamais se poderão desperdiçar. E o bom homem, convicto, não o fez. Ainda para mais, encontramo-nos em plena época de eleições autárquicas, onde tudo o que um presidente puder fazer em nome da sua excelsa imagem é, por certo, realizado. Ora bem: a dita senhora não perdeu pela demora. Escutou tudo e algo mais ainda. Anotou mentalmente todas as queixas, por mais minuciosas que estas fossem, sem esboçar, assim me contaram, a mínima reacção. Nada como dedicar ao povo a merecida atenção… No fim, para terminar em grande êxtase o seu poderosíssimo discurso, o comerciante em causa usou a mais que evidente “ameaça”: «ou isto muda, ou a sua presidente deixa de contar com o meu voto!».

Pelo que sei, o homem nem nunca deve ter votado na sua vida. Mas fez bom uso do seu espontâneo recurso. Digam o que quiserem dizer, mas a verdade foi esta: no dia seguinte, os sobejos dos trabalhos naquela parte da calçada tinham sido removidos, não existiam fitas a bloquear a via e a mesma, de forma tão fluida, havia sido reaberta ao trânsito. Não obstante, os dedicados trabalhadores foram incumbidos de novas ordens. Para quê reparar apenas um troço da calçada, quando se pode reparar a totalidade da mesma? Pois bem, foi isso mesmo que foi decretado. Ah, as valiosas promessas de um voto… Assim se prova que, querendo, um político consegue realmente empreender. Só gostaria de saber qual será a desculpa que o nosso amigo comerciante encontrará para se justificar, caso a actual presidente não vença as eleições do próximo domingo e lhe envie alguém para prestar as devidas contas… Uma súbita gripe? Bem, vejamos o lado positivo da empresa: pelo menos, as ruas da freguesias terão outra beleza. E já será caso para dizer: «finalmente!».






Pedro Belo Clara.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

UM CENÁRIO BUCÓLICO


Nascido e criado na grande cidade, no seio de movimentadas avenidas, da azáfama quotidiana, das nuvens de fumo, das ondas de ruído, dos sempre apetecíveis cinemas e dos relaxantes domingos no parque, quis o destino, sempre irónico em suas intenções, que o autor desta crónica fosse portador de uma natureza completamente antagónica em relação ao espaço que o abraçou. Em suma, nasci “do avesso”. Passo a explicar: apesar do meio urbano ter sido aquele que me viu crescer ao longo dos anos, é íntima a minha ligação com as atmosferas bucólicas e os seus motivos campestres. Talvez tenha vindo ao mundo já com esse “erro de ligação” ou, simplesmente, a vida citadina, à proa do seu peso e cansaço, me tenha cultivado a atracção pelo oposto: o campo. Seja como for, o destino foi deveras irónico em suas concepções. Não seria antes de esperar que um citadino fosse um confesso amante do meio onde nasce, cresce e vive? Talvez… Se a vida fosse uma ciência certa e desprovida de excepções. Mas convenhamos: ao assim ser, onde residiria o seu interesse, o seu desafio, a sua beleza?
Eis-me, então, com um pé em dois mundos, bem sobre a mais velha linha que divide uma das mais velhas dicotomias existentes: cidade e campo – os dois lados de uma só fronteira. Não obstante as intensas e obscuras questões inerentes à própria existência, que sempre atormentam o Homem que sobre elas se digna a discorrer, vejam, para derradeiro cúmulo, a constituição de tamanha má-formação logo à nascença!  Nascido na cidade e um confesso amante do campo… Que melhor epíteto haverá? Enfim, dos inconformados será o reino dos céus. Ou talvez não. Se um dia eu o comprovar, talvez regresse para confirmar a premissa que lancei. Combinado? Por enquanto, resta pensar que este estranho fado, esta inata concepção e sua subsequente errância, detêm um válido motivo de ser. Mas isso é já uma questão de fé. E a mesma, ao ser deveras paradoxal, anuncia uma árdua explanação que não convém ao propósito deste texto.
Entretanto, e porque viver “do avesso” não é uma experiência propriamente agradável (experimente o caro leitor, se for um adorador dos trópicos, passar um mês inteiro na Suécia, onde as horas de sol diário por vezes se contam pelos dedos de uma só mão!), este bucólico amor que aqui confesso teve, necessariamente, de encontrar uma via para fluir, uma forma para se manifestar. O implacável destino que tira, é certo, da mesma forma dá. Assim, no tempo que provou ser o adequado, dispus da felicidade de encontrar um autêntico refúgio campestre a “apenas” cem quilómetros da capital (e digo “apenas”, com as aspas devidas, pois para os meus caríssimos amigos brasileiros essa distância é uma perfeita ninharia… É o que dá viver num país imenso como é o de Vera Cruz. Mas acreditem: para um europeu comum, cem quilómetros é uma distância considerável).
Às divindades, pagãs ou não-pagãs (qual delas passível de louvor?), verdadeiramente me gratifico por tamanha achado. Tanto, que o meu epíteto merece agora uma alteração: nascido na cidade, mas um orgulhoso habitante do campo. Ainda que, a bem da verdade, seja na capital que passo, pelos mais variados motivos, a maior parte do meu tempo, envolto nos habituais alvoroços e demais devaneios citadinos. Mesmo assim, é óptimo poder desfrutar da hipótese de um refúgio e de todas as opções que ele nos concede. Pois o desabrochar das flores, a maturação dos frutos ou o acobrear das paisagens são milagres que o cenário urbano nem sempre consegue oferecer na sua máxima plenitude. E as caminhadas por alamedas de pinheiros? E as visitas às ruínas de antigas propriedades? Nessas alturas, recorda o Homem que, afinal, não é apenas um fatigado corpo, mas igualmente um espírito de considerável leveza.
De tanto nos habituarmos às virtudes destes locais, acabamos por construir e a eles associar a venerada imagem de um santuário. Pois são qualquer coisa de sagrado, de virgem, de harmonioso. São, no fundo, os palcos que marcam o retorno do Homem aos mais primordiais aspectos da sua natureza primitiva. Por isso, sentimos uma fortíssima necessidade de os defender e preservar. Mas os anos guardam algo de obscuro em seus fundos bolsos… O dito progresso, se é inevitável, é por norma pouco sustentável. Ainda que pessoalmente não creia que assim deva ser, o Homem teima em optar por essa via. E as consequências vão estando à vista de todos nós.
Foi num dos inúmeros passeios que tenho por hábito dar pelos bucólicos trilhos que tanto me atraem que senti, pela primeira vez naquelas terras, o avanço da cidade. Num dos terrenos que ladeavam a estrada, um local de tamanha vegetação, densa e orgulhosamente imponente, constatei que o que outrora tanto o caracterizou não mais subsistia. A maior parte das árvores lá existentes haviam sido cortadas com o intuito de se proceder à venda da respectiva madeira. Não direi que a imagem era desoladora… Mas incompleta. Até que é comum, por estas paragens, certos proprietários concederem as suas terras ao cultivo do pinheiro e do eucalipto, para que, no tempo adequado, possam recolher os lucros de tal operação. Mesmo os que ao abandono se encontram acabam por ser alvos de “limpezas” do género. Os terrenos possuem donos, negligentes ou não, e, por isso, é justo que cada um faça o que melhor entende com aquilo que é seu. Ademais, existe uma legislação adequada e ela, até ver, tem sido cumprida. Mas… ao olhamos uma paisagem que nos habituámos a considerar como parte de um íntimo santuário, como nos poderemos sentir quando assistimos à profanação do mesmo?
Não deixa, assim, de sobrar um gosto residual cujo sabor não bem se compreende, seja uma sensação de inocência perdida ou de harmonia devassada. É verdade que o desbaste até revelou novos trilhos até então engolidos pela vegetação circundante e uma velhinha casa de pedra (das primeiras a existirem na região) em ruína absoluta, mas tais consolações não se equiparam aos pinheiros que valsavam com o vento e guardavam o viajante dos abusos de um sol duro e ímpio. E o caso não é virgem: noutros locais tenho assistido ao mesmo acto. Se não ao abate de certas espécies de árvores, ao desbravar de terrenos com a intenção de neles realizar despejos de detritos de construções civis. A mudança voa como a brisa da manhã… Então, e mais do que nunca, o havia sentido. Os tentáculos da cidade, envergando a máscara económica, avançam a ritmo lento, mas seguro. A magia que inspirava fadas e duendes dissipa-se perante o esventrar de campos cada vez mais áridos. Algo que tão magistralmente perdurou, não mais se verifica. E o tão amado refúgio corre o risco de deixar de o ser.
Aquela caminhada fomentou em mim diversos pensamentos. E com perfeitas justificações. De um bucólico cenário em particular, facilmente se extrapolaram as conjugações mentais para a generalidade dos acontecimentos. Na verdade, não mais irei prender o olhar no cume daqueles altivos pinheiros, tão briosamente erguidos de encontro aos céus de safira. Outro motivos de contemplação sobejam, é claro, mas há algo que se perde sem que, em nome de um equilíbrio crucial, um outro seja concedido em troca. Há mais de dez anos que me demoro por estes campestres cenários… E nunca, como antes referi, me tinha deparado com sucedidos do género. Seja pela falta de experiência no caso ou pelo alarme que ele indirectamente constitui, a constatação do facto não se revela simples de compreender e aceitar.
É importante referir que nada tenho contra os madeireiros: compreendo o seu trabalho e respeito as suas necessidades. Contudo, sem o equilíbrio necessário à boa administração das acções a empreender, perder-se-á o que de mais natural e belo dispomos em nossas paisagens. E mesmo assim, quando se adopta um método de replantação e corte, não deixa de latejar uma certa dor por entender que tais bosques não mais serão os mágicos e incorruptíveis bosques de outrora. Algo que nós vimos e sentimos, não mais poderá ser visto ou sentido da mesma forma por gerações vindouras. Se agravarmos a questão, estaremos já a lidar com actos que trarão consequências a serem pagas pelos filhos e pelos netos de quem as criou: a gananciosa desflorestação, claro está, que apenas beneficia, e por pouco tempo, as carteiras que se recheiam com o dinheiro sujo de tão desrespeitosas práticas. Não é esse o caso do refúgio que vos falo. Pelo menos, ainda não. E se um dia o for, acredite o leitor, prefiro não estar vivo para o testemunhar. Creio que não aguentaria o terror do cenário. É de família: o meu trisavô abriu o caminho à morte quando se deparou com o abate das inúmeras árvores de fruto que ornamentavam a sua grandiosa quinta (o acto, ordem do governo fascista de Salazar, fora justificado pela vaga e nada reconfortante máxima “interesse nacional”). Portanto, é certo que comigo não seria diferente.
O excesso da exploração florestal é uma chaga que assola diversas nações, sem que os governos, muitas vezes participantes dos lucros dessas grandes corporações, se importem com os nefandos efeitos de tais empreendimentos. É uma prática corrente, mas de futuro bastante sombrio. Chegará o dia em que o Homem compreenderá, por fim, que não pode viver apartado da sua mais primordial origem? Gosto de pensar que sim. Seja pela via mais suave ou pela mais severa, só espero que quando esse raro instante de iluminação lhe surgir não seja já tarde de mais.





Pedro Belo Clara.