Não se poderá considerar simplista
a tarefa de expressar por palavras o impacto que certas ocorrências
ou actividades provocam em nós, principalmente se o que das mesmas
colhemos equivale ao degustar, por um cálice de prata, do mais
inigualável dos néctares. Certas coisas, ou melhor, a ressonância
do efeito de certas coisas, é, de facto, tão sublime, grandiosa e
pura, que nem nas palavras, perecíveis e finitas, a sua definição
pode caber, sob pena capital de proscrever sentidos que igualmente
merecem o seu digno registo. Em todo o caso, ao fazê-lo, importa ter
a consciência de que algo sempre se perderá, seja por motivos
sumários ou, como antes se referiu, pela impossibilidade de esboçar
uma acurada descrição. E o sentimento que uma boa caminhada me
instiga é um óptimo exemplo de tais evidências.
Sendo o Homem um elemento detentor
de tamanha diversidade entre si, ainda que em mera aparência,
compreendo que por íntimas razões nem todo o indivíduo se apreste
a tais actividades e, como tal, possa não se identificar ou
simplesmente familiarizar com certas ideias ou parâmetros que mais
adiante irei expor. Excluamos, no entanto, o ócio ou um mau
investimento do seu quinhão temporal. Refiro-me aos meros “gostos
ou tendências pessoais”. O que é perfeitamente natural em sua
essência, se bem visto for o caso. Darei um exemplo: se dez Homens
se sentarem a uma só mesa e diversas bebidas forem servidas, por
certo haverá quem escolhe o vinho, quem opto pelo sumo mais fresco e
quem se decide a saciar a sede na singela e translúcida água.
Portanto, o que se conclui? Iguais em condição, diferentes em suas
preferências. Nada de estranho reside nessa evidência.
Dado o singular carácter das
caminhadas, a viva metáfora que representam e o tudo que delas se
pode extrair, outras ideias são passíveis de aceitação, além da
mera hipótese de “preferência pessoal” antes referida. O
célebre pensador norte-americano do século XIX, Henry David
Thoreau, por exemplo, no seu ensaio “Caminhada”, bem persuasivo e
lúcido, afirma que «há que ter nascido caminhante para pertencer a
esta casta». Sabia do que falava, sem dúvidas, ele que fora
merecedor, a respeito de tal tema, das seguintes palavras por parte
de seu amigo e destacado escritor, Ralph Waldo Emerson: «Era
um prazer e um privilégio passear com Thoreau. Conhecia tão bem o
campo como uma raposa ou como um pássaro e cruzava-o livremente por
caminhos que todos desconheciam. Sabia de cor todos os trilhos que a
neve cobrira e que as criaturas haviam percorrido antes dele.
Obedecíamos servilmente a tal guia, e a recompensa era grande».
Voltando
às palavras de Thoreau, à discussão trazidas por, num momento de
escrita, mentalmente as evocar, admito não ir tão longe
quanto o referido autor parecia desejar ir, se bem que compreendo as
suas possíveis intenções. Pois, ao declarar tal ideia, abre-se
caminho a uma certa diferenciação que considero ser, de todo,
desnecessária. Um caminhante, devoto discípulo do ofício de
caminhar, não é propriamente alguém “superior” ou “diferente”
(não tanto como qualquer outro), apenas alguém que em si detém uma
veia pulsante que a tal o instiga. Assim como o comerciante possui o
seu impulso, o agricultor ou o médico. São naturezas que, embora
humanas, todas elas, compõem-se de géneros naturalmente distintos.
Grande parte da beleza que orna a existência encontra-se em tal
princípio.
Mas, de facto, existe alguma lógica
no dizer de Thoreau. É preciso ser-se “caminhante” de origem
para empreender a caminhada, apreciá-la e dela fazer um acto
contínuo, quase indissociável do ser que a pratica. Se o marinheiro
sente, desde cedo, o apelo do mar, o caminhante sente o irresistível
apelo da estrada. Eu mesmo, admito, deleito-me e diluo-me nessa
estranha magia que paira por uma estrada deserta distendida até ao
horizonte, onde os reflexos de um sol nascente ou as mais vibrantes
cores de um fogoso ocaso somente adensam a eterna promessa de
infinito. Sim, caro leitor, se os caminhantes são mesmo uma casta,
como Thoreau gostava de afirmar, de bom grado admito que a ela
pertenço.
Como saber, no entanto, que impulso
nos guia e alimenta? Em muitos casos, a estrada só sussurra o nosso
nome quando pela primeira vez nela nos quedamos, prontos a navegar as
ondas de todos os ventos. Noutras circunstâncias, de génese
mística, existe uma espécie de feitiço que parece guiar o ser a
determinados lugares, a determinadas práticas ou sensações, por
forma a iniciar o seu percurso de aprendiz. Passada essa fase,
sabendo o espírito o que o eleva e cativa, a união será fatal.
Na realidade, a partir do primeiro
instante em que colocamos o pé na estrada nada mais será como
dantes. O prelúdio do ofício conheceu a sua material manifestação,
e todas as vindouras etapas se apressam a tecer os seus conteúdos. É
o mesmo que pegar num copo de água e nele largar algumas pedras de
sal. Assim que se dissolver, não existirá parte alguma daquela água
que se prive de sódio. Já não o vemos, é um facto, mas o sabor
que o líquido apresenta não permite margem para enganos.
A que se deve tal fascínio?
Primeiro, como antes fiz menção, é necessário sentir o caminho e,
claro, querer caminhar. É importante desejá-lo, numa fase
primordial. Depois, com a disciplina necessária, transmutaremos a
prática e dela faremos um simples acto, banal e quotidiano – sem
que o mesmo se prive da sua digna virtude. O caminhante tornar-se-á
a fímbria da estrada, a pedra do caminho, o grão do vento... Até
compreender a eternidade que reside em si e que, a cada caminhada, se
plasma no trilho que tem pela frente. Poderemos estar já a falar de
“transcendências” que se arriscam a sair da órbita percepcional
de cada leitor, aceito essa ideia, mas quem se permitir a cultivar a
prática acabará por compreender ainda melhor aquilo que agora
escrevo.
Na verdade, o acto de caminhar
comporta mais espiritualidade do que materialidade, ainda que tal
ideia possa parecer paradoxal. Cada indivíduo caminha com os pés
assentes na estrada, sim, mas o que importa não é a posição de
caminhar, antes a disposição para a caminhada. Com a prática,
estou certo, estas e outras ideias terão um novo sentido. Como em
tudo, é necessário a prática, a disciplina e a perseverança. A
raiz de uma árvore é amarga, naturalmente... Mas o que dizer de
seus frutos? Doces como o mel. Pois, quando nos iniciamos neste
ofício, é como se pegássemos numa peça de prata, antiga e
valiosíssima, cujo brilho, se o teve, aparenta estar completamente
extinto. Contudo, com esforço e dedicação, somando os materiais
necessários ao efeito, iremos perceber o quão lustrosa era, ou
melhor, sempre foi. Apenas os anos fomentaram o seu desgaste e
obscurecimento por escassez de uso. Depois, é vê-la magnífica como
sempre – a sua real beleza fora enfim revelada diante do nosso
anteriormente turvo olhar.
Com o Homem o caso é idêntico. As
próprias incidências da vida material e a existência de um corpo
que aparenta ser a sua real identidade tendem a fazê-lo esquecer de
que há um espírito que exige cultivo, limpeza e cuidado. Múltiplas
são as formas para cumprir tais exigências, e a caminhada é
somente uma delas. Isto porque, em sua natural execução, comporta
uma certa abnegação, um desprendimento sadio, um fluir que faz o
caminhante compreender como a vida pode ser vivida: de forma idêntica
à de um rio correr. Como se não bastasse, o cenário envolvente de
igual modo fornece elementos que nos auxiliam no cumprimento do
propósito, ainda que, para tal se suceder, recomende um passeio de
índole bucólica. Pois as cidades, de tão densas e aprisionadas,
nem sempre se afiguram como a melhor solução. Mas o mais importante
é que cada caminhante execute a sua escolha e com ela sinta o maior
dos confortos. Não obstante, existe ainda o ritmo da caminhada, um
apelo sincero à agudeza da percepção, que leva, invariavelmente, a
um estado de consciência e serena vigilância. Constataremos, assim,
o modo como em cada passo tudo por nós passa... Árvore, flor, ave,
pedra, curva, semelhante. Eis o anunciar de um dos princípios mais
sólidos de toda a existência material: a impermanência do
perecível.
Pedro Belo Clara.
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