Como o caríssimo leitor está por certo recordado, na última
crónica que tive o imenso prazer de assinar neste espaço referi, de entre
outros assuntos, as eleições autárquicas que num domingo próximo se
desenrolariam em Portugal. Ora, acontece que esse domingo já se findou e são os
sobejos do mesmo que hoje compõem a razão desta crónica.
Sempre que o
clima eleitoral se faz sentir, evoco os dias da minha infância. Não
propriamente das enfadonhas campanhas, dos discursos que para a criança que era
se afiguravam vazios e complexos (estranha virtude!) ou dos habituais passeios
pelas cidades que, à boa moda circense, se enchiam de bandeiras e aplausos.
Nada disso. Tais etapas eram apenas os passos necessários que nos guiariam ao
grande dia. E é a ele que me referido: ao grande dia!
A bem da verdade, pouco mudou desde
então. Pelo menos, no que ao prelúdio do processo diz respeito. Em geral regra,
e digo isto com um certo pesar, as campanhas continuam enfadonhas, os discursos
vagos (ainda que implacavelmente oportunistas) e os passeios de angariação de
votos são completos desfiles circenses. É, assim, quase sempre difícil
compreender a linha da verdade no meio de tanta máscara. Se me refiro agora a
tais circunstâncias, é porque as mesmas me incomodam; desde logo, pelo aroma a
falsidade que exalam. Ainda assim, gosto de acreditar nessa espécie em extinção
que é o “político honesto”.
Contudo, nos
tempos da infância, era óbvio o meu diminuto interesse por tais questões. É que
nem sequer delas me apercebia. Eram, como referi, um crescendo de
acontecimentos que, invariavelmente, iam desembocar do dia da votação. Esse
sim, para mim, era o maior feito! Havia algo de especial em dias como aquele.
Não só por ser o que era, claro, mas pelo próprio acto de exercer um «dever
cívico». Creio até ter cultivado um certo deslumbre sobre essa expressão no imediato
momento em que a escutei - «dever cívico». Ah, as coisas maravilhosas que
povoam o mágico mundo dos adultos…
Lembro-me
perfeitamente de, pelas várias ocasiões que ao longo daqueles anos surgiram,
fazer questão de acompanhar os meus pais ou avós no exercer de tal acto
indispensável ao bom funcionamento de uma democracia. Como os dias eram sempre
de fim-de-semana, a ocasião era duplamente especial. Quem não aprecia um
domingo diferente? Os melhores fatos eram usados, os cabelos aprimorados, as
gravatas bem afinadas! Excluindo o meu pai, diga-se, pouco ou nada dado a esse
apêndice de seda. Mas… que importava isso? O dia era de voto! Quantos suspiros
eu soltava, em ânsias contidas, sonhando pelo dia em que eu próprio estaria
apto, segundo a sociedade, a exercer tão sagrado direito… Até lá, teria de me
contentar em dobrar pequenos papéis com cruzes e depositá-los na minha urna
improvisada, o pequeno caixote do lixo doméstico. Vazio e limpo, claro está
(pois de sujeiras já o mundo político está cheio!).
Julgo que o meu
encanto, mas do que o acto em si, residia na mágica atmosfera que àqueles dias
era inerente. A importância, senão mesmo crucialidade, da acção propriamente
dita era algo impossível de ignorar. A simples ideia de um mero cidadão poder
contribuir para os destinos do seu país era, de igual modo, a grandiosa
expressão que resumia todas as envolvências experimentadas. Fascinante!
Mas o dia não
se queria assim tão incipiente ou incompleto. O dever era orgulhosamente
cumprido pelos adultos – enquanto eu, sempre curioso, viajava de cabine em
cabine para conferir as opções políticas dos familiares –, mas, findado o acto,
todos nos reuníamos para desfrutar da seguinte etapa do nosso passeio de
domingo. Como a hora escolhida para votar era geralmente a matinal, seguia-se,
obviamente, o saborear de uma refeição a preceito. Por isso, os dias de voto
eram, invariavelmente, dias de celebração familiar. Talvez esse aspecto só
sublinhasse o gosto e a importância que à data eu conferia. Mas não éramos caso
único. Era comum, lembro-me, ver casais com crianças como eu, e até indivíduos
mais idosos, na companhia dos seus deslocarem-se aos locais de voto de carro e,
cumprido o «dever cívico», seguirem para um restaurante com o intuito de
partilharem os remanescentes instantes daqueles domingos felizes. Parecia ser
algo inquestionável: dia de votação implicava almoço de família.
Satisfeitos os apetites, retornávamos
ao lar e, ao início da noite, conferíamos as primeiras projecções dos
resultados que seriam os finais. Depois, era celebrar ou resignar conforme os
ânimos e as inclinações de cada um. E adormecer feliz, claro, após um dia
muitíssimo bem passado na carinhosa companhia de quem mais amava (e amo! – é
importante que acrescente esse facto). Simples ou não, era a nossa tradição.
Mas os anos
passam e certas coisas tendem a tombar nos negros abismos do olvido. Não só
para os próprios como para quem os rodeia. No passado domingo, como o leitor já
o sabe, fomos a votos. É verdade que a persistente chuva que se abateu por
Lisboa naquele dia afastou muitos eleitores das mesas de voto, enquanto que
para os mais resistentes apenas terá estragado um ou outro plano. Mas… confesso
que senti a falta dos carros com famílias dentro, dos grupos que habitualmente conversavam à entrada do edifício, das
pequenas multidões que entravam e saiam e, claro, dos almoços subsequentes. Na
verdade, esse bom hábito tem caído em desuso. E este dia de votação revelou-se
um dia de chuva, tão banal quanto qualquer outro.
Não sou homem
de me prender a passados. Contudo, acredito que o melhor de nós, sejam
práticas, tendências ou hábitos, se ainda nos servir, merece ser aplicado em
algo de concreto. Tal poderá recordar um passado ido, sim; mas não mais será
esse passado. Se atentarmos bem, veremos que o Tempo é algo de impermanente.
Por isso, aquele passado nunca mais o será. Evoluirá, apenas, para uma outra
forma temporal.
Por razões
pessoais, foi-me impossível exercer o dito «dever cívico» de manhã. Mas de
tarde, debaixo daquela chuva ininterrupta, não deixei de o fazer. Como poderia?
Eu, que sempre havia esperado pelo dia dos meus dezoito anos para legalmente
estar apto a votar? Então, entrei no edifício da Junta onde resido e juntei-me
alegremente à população que por lá se quedava. Desde logo me deparei com uma
das virtudes da democracia, o governo do povo para o povo (em teoria, pelo
menos). Como é habitual em dias de votação, junto às urnas estão outros
eleitores como nós, previamente seleccionados para o efeito, habitantes da
mesma freguesia em que votamos. E eles também detém o direito ao voto,
obviamente, mas ali permanecem no cumprir de um trabalho deveras comunitário.
Nada de políticos, polícias ou elementos de qualquer instituição governamental.
Pessoas comuns, como eu e o estimado leitor, a orientar um processo tão
importante como o eleitoral em clima sóbrio e familiar. É uma bela imagem, não
acha?
Cumprido o
dever e suportada a chuva, o retorno ao lar. Desta vez, não haveria passeio ou
restaurante. Convívio familiar, apenas, no calor doméstico. Enquanto se aguardavam
as primeiras projecções, é claro. Parece simples, não? Mas é algo de
reconfortante. E essa é a primeira base para um sorriso sincero eclodir. Assim
como foi no outrora, é-o, em moldes adaptados, no presente. Em memória de
outros dias e das queridas presenças, entretanto idas, que também os coloriam.
Que outros não mantenham o legado em que foram criados, é um problema dos mesmos.
São opções. Mas perdem algo de precioso, em minha opinião. Prefiro prolongar a
atmosfera em que cresci. Pelo menos em minha casa, a boa tradição ainda é o que
era. E somente isso importa.
Pedro Belo Clara.
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