Nascido e criado na grande cidade, no seio de
movimentadas avenidas, da azáfama quotidiana, das nuvens de fumo, das ondas de ruído,
dos sempre apetecíveis cinemas e dos relaxantes domingos no parque, quis o
destino, sempre irónico em suas intenções, que o autor desta crónica fosse
portador de uma natureza completamente antagónica em relação ao espaço que o
abraçou. Em suma, nasci “do avesso”. Passo a explicar: apesar do meio urbano
ter sido aquele que me viu crescer ao longo dos anos, é íntima a minha ligação
com as atmosferas bucólicas e os seus motivos campestres. Talvez tenha vindo ao
mundo já com esse “erro de ligação” ou, simplesmente, a vida citadina, à proa
do seu peso e cansaço, me tenha cultivado a atracção pelo oposto: o campo. Seja
como for, o destino foi deveras irónico em suas concepções. Não seria antes de
esperar que um citadino fosse um confesso amante do meio onde nasce, cresce e
vive? Talvez… Se a vida fosse uma ciência certa e desprovida de excepções. Mas
convenhamos: ao assim ser, onde residiria o seu interesse, o seu desafio, a sua
beleza?
Eis-me, então, com um pé em dois mundos, bem sobre
a mais velha linha que divide uma das mais velhas dicotomias existentes: cidade
e campo – os dois lados de uma só fronteira. Não obstante as intensas e
obscuras questões inerentes à própria existência, que sempre atormentam o Homem
que sobre elas se digna a discorrer, vejam, para derradeiro cúmulo, a
constituição de tamanha má-formação logo à nascença! Nascido na cidade e um confesso amante do
campo… Que melhor epíteto haverá? Enfim, dos inconformados será o reino dos
céus. Ou talvez não. Se um dia eu o comprovar, talvez regresse para confirmar a
premissa que lancei. Combinado? Por enquanto, resta pensar que este estranho
fado, esta inata concepção e sua subsequente errância, detêm um válido motivo
de ser. Mas isso é já uma questão de fé. E a mesma, ao ser deveras paradoxal,
anuncia uma árdua explanação que não convém ao propósito deste texto.
Entretanto, e porque viver “do avesso” não é uma
experiência propriamente agradável (experimente o caro leitor, se for um
adorador dos trópicos, passar um mês inteiro na Suécia, onde as horas de sol
diário por vezes se contam pelos dedos de uma só mão!), este bucólico amor que
aqui confesso teve, necessariamente, de encontrar uma via para fluir, uma forma
para se manifestar. O implacável destino que tira, é certo, da mesma forma dá.
Assim, no tempo que provou ser o adequado, dispus da felicidade de encontrar um
autêntico refúgio campestre a “apenas” cem quilómetros da capital (e digo
“apenas”, com as aspas devidas, pois para os meus caríssimos amigos brasileiros
essa distância é uma perfeita ninharia… É o que dá viver num país imenso como é
o de Vera Cruz. Mas acreditem: para um europeu comum, cem quilómetros é uma
distância considerável).
Às divindades, pagãs ou não-pagãs (qual delas
passível de louvor?), verdadeiramente me gratifico por tamanha achado. Tanto,
que o meu epíteto merece agora uma alteração: nascido na cidade, mas um
orgulhoso habitante do campo. Ainda que, a bem da verdade, seja na capital que
passo, pelos mais variados motivos, a maior parte do meu tempo, envolto nos
habituais alvoroços e demais devaneios citadinos. Mesmo assim, é óptimo poder
desfrutar da hipótese de um refúgio e de todas as opções que ele nos concede.
Pois o desabrochar das flores, a maturação dos frutos ou o acobrear das
paisagens são milagres que o cenário urbano nem sempre consegue oferecer na sua
máxima plenitude. E as caminhadas por alamedas de pinheiros? E as visitas às
ruínas de antigas propriedades? Nessas alturas, recorda o Homem que, afinal,
não é apenas um fatigado corpo, mas igualmente um espírito de considerável
leveza.
De tanto nos habituarmos às virtudes destes locais,
acabamos por construir e a eles associar a venerada imagem de um santuário.
Pois são qualquer coisa de sagrado, de virgem, de harmonioso. São, no fundo, os
palcos que marcam o retorno do Homem aos mais primordiais aspectos da sua
natureza primitiva. Por isso, sentimos uma fortíssima necessidade de os
defender e preservar. Mas os anos guardam algo de obscuro em seus fundos
bolsos… O dito progresso, se é inevitável, é por norma pouco sustentável. Ainda
que pessoalmente não creia que assim deva ser, o Homem teima em optar por essa
via. E as consequências vão estando à vista de todos nós.
Foi num dos inúmeros passeios que tenho por hábito
dar pelos bucólicos trilhos que tanto me atraem que senti, pela primeira vez
naquelas terras, o avanço da cidade. Num dos terrenos que ladeavam a estrada, um
local de tamanha vegetação, densa e orgulhosamente imponente, constatei que o
que outrora tanto o caracterizou não mais subsistia. A maior parte das árvores
lá existentes haviam sido cortadas com o intuito de se proceder à venda da
respectiva madeira. Não direi que a imagem era desoladora… Mas incompleta. Até
que é comum, por estas paragens, certos proprietários concederem as suas terras
ao cultivo do pinheiro e do eucalipto, para que, no tempo adequado, possam
recolher os lucros de tal operação. Mesmo os que ao abandono se encontram
acabam por ser alvos de “limpezas” do género. Os terrenos possuem donos,
negligentes ou não, e, por isso, é justo que cada um faça o que melhor entende
com aquilo que é seu. Ademais, existe uma legislação adequada e ela, até ver,
tem sido cumprida. Mas… ao olhamos uma paisagem que nos habituámos a considerar
como parte de um íntimo santuário, como nos poderemos sentir quando assistimos
à profanação do mesmo?
Não deixa, assim, de sobrar um gosto residual cujo
sabor não bem se compreende, seja uma sensação de inocência perdida ou de
harmonia devassada. É verdade que o desbaste até revelou novos trilhos até
então engolidos pela vegetação circundante e uma velhinha casa de pedra (das
primeiras a existirem na região) em ruína absoluta, mas tais consolações não se
equiparam aos pinheiros que valsavam com o vento e guardavam o viajante dos
abusos de um sol duro e ímpio. E o caso não é virgem: noutros locais tenho
assistido ao mesmo acto. Se não ao abate de certas espécies de árvores, ao desbravar
de terrenos com a intenção de neles realizar despejos de detritos de
construções civis. A mudança voa como a brisa da manhã… Então, e mais do que
nunca, o havia sentido. Os tentáculos da cidade, envergando a máscara
económica, avançam a ritmo lento, mas seguro. A magia que inspirava fadas e
duendes dissipa-se perante o esventrar de campos cada vez mais áridos. Algo que
tão magistralmente perdurou, não mais se verifica. E o tão amado refúgio corre
o risco de deixar de o ser.
Aquela caminhada fomentou em mim diversos
pensamentos. E com perfeitas justificações. De um bucólico cenário em
particular, facilmente se extrapolaram as conjugações mentais para a
generalidade dos acontecimentos. Na verdade, não mais irei prender o olhar no
cume daqueles altivos pinheiros, tão briosamente erguidos de encontro aos céus
de safira. Outro motivos de contemplação sobejam, é claro, mas há algo que se
perde sem que, em nome de um equilíbrio crucial, um outro seja concedido em
troca. Há mais de dez anos que me demoro por estes campestres cenários… E
nunca, como antes referi, me tinha deparado com sucedidos do género. Seja pela
falta de experiência no caso ou pelo alarme que ele indirectamente constitui, a
constatação do facto não se revela simples de compreender e aceitar.
É importante referir que nada tenho contra os
madeireiros: compreendo o seu trabalho e respeito as suas necessidades.
Contudo, sem o equilíbrio necessário à boa administração das acções a
empreender, perder-se-á o que de mais natural e belo dispomos em nossas
paisagens. E mesmo assim, quando se adopta um método de replantação e corte,
não deixa de latejar uma certa dor por entender que tais bosques não mais serão
os mágicos e incorruptíveis bosques de outrora. Algo que nós vimos e sentimos, não
mais poderá ser visto ou sentido da mesma forma por gerações vindouras. Se
agravarmos a questão, estaremos já a lidar com actos que trarão consequências a
serem pagas pelos filhos e pelos netos de quem as criou: a gananciosa
desflorestação, claro está, que apenas beneficia, e por pouco tempo, as
carteiras que se recheiam com o dinheiro sujo de tão desrespeitosas práticas.
Não é esse o caso do refúgio que vos falo. Pelo menos, ainda não. E se um dia o
for, acredite o leitor, prefiro não estar vivo para o testemunhar. Creio que
não aguentaria o terror do cenário. É de família: o meu trisavô abriu o caminho
à morte quando se deparou com o abate das inúmeras árvores de fruto que
ornamentavam a sua grandiosa quinta (o acto, ordem do governo fascista de
Salazar, fora justificado pela vaga e nada reconfortante máxima “interesse
nacional”). Portanto, é certo que comigo não seria diferente.
O excesso da exploração florestal é uma chaga que
assola diversas nações, sem que os governos, muitas vezes participantes dos
lucros dessas grandes corporações, se importem com os nefandos efeitos de tais
empreendimentos. É uma prática corrente, mas de futuro bastante sombrio. Chegará
o dia em que o Homem compreenderá, por fim, que não pode viver apartado da sua
mais primordial origem? Gosto de pensar que sim. Seja pela via mais suave ou
pela mais severa, só espero que quando esse raro instante de iluminação lhe surgir
não seja já tarde de mais.
Pedro
Belo Clara.
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