Ao passar, num repente, os meus olhos
pelo pequeno calendário da secretária do escritório, espanto-me com a crua
evidência que me instiga a meditar na inevitável passagem do tempo.
É deveras espantoso
constatar, conscientemente, o término de um ano completo. Especialmente quando
as recordações do que então se experiênciou ainda permanecem tão vibrantes
quanto o instante em que foram vividas. Ou a qualidade da memória é, de facto,
extraordinária (ao ser capaz de reproduzir gravuras tão fidedignas) ou o
próprio tempo escapa-se célere demais no seio da fugidia ilusão que ele produz.
Seja como for, a realidade é inegável. Tenho, algures, arquivado um poema
(testemunha dessa época) que constitui uma irrefutável prova.
Foi há um ano atrás.
O céu cobria-se de um cinza completo e pelas estradas amontoavam-se inúmeras
folhas acobreadas, proscritas de árvores em natural processo de renovação.
Escusado será dizer que o Outono reinava, tal como hoje, em todo o seu
esplendor. A brisa não era nem mais fria nem mais quente, e tenho a firme
certeza de que os mesmos pássaros ainda hoje cantam nos mesmíssimos ramos. Em
clima tão propício, é impossível não reviver a recordação.
Saí de Lisboa nessa
manhã de Novembro rumo a uma simpática vila quedada no seio da mais alta
montanha de Portugal continental. A escola local, muito gentilmente, havia me
convidado para uma palestra de três sessões (nas quais eu seria o próprio
palestrante). As mesmas seriam, à vez, dirigidas a outras tantas turmas de diferentes
anos lectivos durante o período do final da manhã e início da tarde do dia
seguinte. Apesar de tudo, o convite era justificável: um familiar meu leccionava
nessa escola e, a seu pedido, enviava-lhe anualmente um exemplar de cada livro
que publicava. Os mesmos destinavam-se, obviamente, à biblioteca da escola em
questão. É claro que as doações baseavam-se em causas puramente culturais e
educacionais, nomeadamente no aumento do espólio e das referências literárias disponíveis
naquele local, para que os alunos livremente as pudessem consultar e retirar
disso o maior proveito possível. Contudo, ao cabo de tanto envio, o director da
escola fez questão de me lançar o desafio: visita ao estabelecimento e palestra
aos alunos.
Assim, naturalmente honrado
por tal convite, anuí. Apreciei a viagem tanto quanto me foi possível fazê-lo,
demorando o olhar contemplativo por cada localidade que passava, por cada monte
que subia e vale que atravessava. As ruas da cidade onde parei para por
instantes almoçar foram igualmente alvo dessa serena prática, bem como os rostos
com que me cruzei por sobre aquele sempre cinzento céu de Novembro. Era o
prelúdio, somente, do que estava na iminência de se suceder.
Com voltas a mais ou
a menos, fruto de algum hipotético engano (ah, GPS, quão a tua ausência foi
notada…), lá me encontrei na vila que me aguardava, diante dos seus bem peculiares
cenários dignos de uma beleza sóbria e altiva. Uma vez que não cumpri a dita
viagem sozinho, aproveitei para desafiar as minhas fiéis companhias a
empreender uma pequeno passeio pelas redondezas envolventes. Após confirmarmos
a presença no acolhedor hotel que detinha as nossas reservas, depositar as
bagagens e inspirar um pouco daquela quente (e acolhedora) atmosfera,
fizemo-nos de novo à estrada. Que outra forma haverá de apreciar as virtudes
locais? Pelo menos, de um modo mais aprimorado e tranquilo que uma mera
passagem, célere e indiferente, poderia proporcionar.
Antes de mais, devo
confessar que nunca havia estado naquele lugar. Para mim, tudo era novidade.
Bem que poderia ter sonhado aquela vila, as suas ruas, a pequena ponte e o rio
que a atravessa, ou pintá-la até com as mais belas cores que só uma fértil imaginação
pode prover. Mas nada se equipara ao facto de vermos e sentirmos com os olhos
do rosto e do espírito bem abertos o cenário que se dispõe à nossa frente. Já
que me havia prestado ao passeio, aproveitei igualmente para realizar um
extraordinariamente útil “reconhecimento de território”. Admito que o facto da
vila ser pequena (pouco mais de três mil habitantes) ajudou de sobremaneira.
Acabei, então, por me deslocar à escola local, encontrar-me com o familiar que
lá leccionava e inspeccionar o sítio onde, no dia seguinte, o evento teria
lugar. Ainda hoje evoco os comentário (tímidos) de alguns alunos que se
cruzaram comigo no corredor e daqueles que, com olhares curiosos e bocas
ansiosas, perscrutavam as redondezas sussurrando: «Será ele? Será o escritor?».
Em silêncio, sorria.
De volta ao hotel, houve
ainda tempo para relaxar um pouco enquanto o relógio não assinalava a hora do
jantar. Assim que se reuniram as companhias devidas, restou-me desfrutar de uma
das trutas que ali tão perto em viveiros são criadas e saborear a óptima
conversa que durante o manjar foi sendo cultivada por todos os comensais. O
tempo, é um facto, passou sem que ninguém desse conta disso. Fosse ele o
incumbido de arcar com as despesas da refeição e bem que o hotel naquela noite
poderia desfrutar do sempre eficaz auxílio de quatro pares de mãos extra na
lavagem da louça remanescente!
No regresso ao
quarto, antes de rever as palavras que no dia seguinte seriam com maior ou
menor zelo proferidas, dei por mim a fitar o vazio da divisão. Um exercício
estranho, talvez; mas, no momento certo, produz uma incrível sensação de
despojamento. A consequência? Paz. Por mais efémera que se afigure. Devidamente
protegido contra as investidas do gélido ar que por aquelas bandas pairava,
acabei por me concentrar na revisão das ideias sobre a palestra e, quando o
tempo se afigurou propício a tal, desfrutar, pelo menos em teoria, o melhor
possível da noite de sono que tinha pela frente.
Não poderei dizer
que me encontrava com os nervos em efervescência. Se o dissesse, estaria a
mentir. E, estimado leitor, para consigo nunca desejei incorrer em semelhante
falta. Por isso, é justo que admita: não em encontrava em ânsias tortuosas ou assistia
a súbitos assaltos contra a minha segurança. Encontrava-me expectante, apenas.
E receptivo. É claro que um actor, por mais experiente que seja, sempre sente
um burburinho dentro de si antes de pisar o palco que é o seu lar. É o prelúdio
da acção, o último esgar de sombra antes da luz raiar. Nada de estranho ou
peculiar habita em tal evidência.
De certo modo, aquele
tipo de trabalho não era novo para mim. Sob um determinado prisma de análise,
evocava-me até alguns que realizara durante os meus tempos de faculdade. Na
época, deslocava-me com um pequeno grupo de colegas a diversos liceus de Lisboa
e arredores, com o intuito de promover junto dos alunos locais a nossa
faculdade. Um trabalho tão simples e imensamente aprazível. Anos atrás, tive a
oportunidade de publicar uma crónica onde descrevo uma dessas prazerosas
experiências. Portanto, voltar a “discursar” perante os alunos de um liceu não era
propriamente uma tarefa desconhecida. A diferença residia apenas nos alunos
(estes seriam mais novos) e, claro, no conteúdo dos tais “discursos”. Desta
vez, eu mesmo iria servir de tema de conversa.
Agora que revelo
este aspecto do convite, devo explanar um pouco mais o seu conteúdo. Fui convidado
para partilhar o meu caminho e visão sobre o mundo literário, e, com isso,
divulgar as obras que até então havia publicado. Para os alunos da classe mais
avançada, falaria ainda um pouco, a pedido da professora de português
responsável, sobre Fernando Pessoa e a sua belíssima obra “Mensagem”, presença
incontornável no programa escolar daquele ano em particular.
A questão a tudo fulcral
não se prendia com os temas a abordar, uma vez que estes se encontravam ao
perfeito e natural alcance da minha compreensão, mas com a minha vontade
expressa de, como em tudo o que faço, primar pela diferença. Não por vaidade ou
por um preciosismo excessivo, é claro não; mas por algo infinitamente superior:
deixar impressa uma marca significativa e profunda nos meus ouvintes, por mais
pequena que fosse. E nada mais me importava do que essa meta, estimado leitor, independentemente
dos visados. Se sublinho essa mesmíssima intenção em tudo o que escrevo, por
que motivo é que naquela ocasião seria diferente? Aliás, haverá mesmo algo de
mais gratificante que sentir, intimamente, o efeito inspirador de um discurso
humano e sensível? Eu poderia ser o veículo de tal concretização. Por isso,
soube que a minha posição, naquele dia, exigia uma responsabilidade maior. E estava
decidido a cumpri-la da melhor forma possível.
Pedro Belo Clara.
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