O peculiar pode, efectivamente,
atingir grandes níveis de significância e de profundidade. Estes, por sua vez,
em fase, diga-se, posterior, acabam por se assumir através dos moldes em que se
constroem os exemplos, algo que, entre muitas outras coisas, é comummente tido
como um portador de mudança, pois é passível de ser seguido, de ser uma
referência a ter em séria consideração. Compreende-se, então, e permita-se o
melhor esclarecimento, como um gesto ou acção comportamental capaz de quebrar
padrões pré-estabelecidos, revelando algo de novo, em certa forma mais sincero,
depurado e, por isso mesmo, verdadeiro. Tais premissas auxiliam o despertar do
olhar ensonado para outras realidades, até então completamente encobertas.
Assim, a aprendizagem torna-se possível para todo aquele que a ela se possa disponibilizar.
A ideia é simples, tal como a concretização da mesma – assim convirjam e se
assumam os elementos necessários a tal.
Voltei a constatar o discorrer acima
explanado, qual teoria feita prática, máximo símbolo empírico, de uma forma
deveras curiosa e divertida. Em suma, por via absolutamente inesperada, leve e
descontraída. Certo dia, então, durante um bastante agradável almoço,
enriquecido com a companhia de um familiar que muito estimo, passa a porta de
um determinado restaurante lisboeta uma personagem plena de aparentes
contradições. Ou, por outras palavras, um exemplar bem digno do adjectivo
“singular”. Embora as confirmações viessem somente depois, diversos aspectos,
bem presentes em tal figura, como linhas coloridas, deveras vincadas, eram
desde logo evidentes e instigavam o interesse e a curiosidade no mais distraído
dos espectadores. Permita-me o leitor que sublinhe o seguinte: tais sensações
em nada conduziram a julgamentos céleres, tão lamentavelmente usuais, tampouco
a rotulagens desprezíveis ou ignóbeis condenações. Nada disso. Ninguém se
precipitou na formulação de juízos. Pois os rostos, se tal se verificasse, por
certo que o denunciariam. Subsistia antes uma certa expectativa, um quase
certeza de que qualquer coisa de renovado, fresco e cativante poderia irromper
daquele solo. Talvez da macieira que ela era brotassem limões… Mas quem o
poderia saber? Assim, as testemunhas, parcas, diga-se, se abriram à melhor
hipótese do porvir, cientes, sem que talvez o soubessem, de que algo de
singular iria certamente imergir de tal personagem.
Falo, é justo que agora o revele, de
uma simpática (se a minha analítica percepção não se equivocou) senhora de
meia-idade, de tez e feições asiáticas, pequena e esguia o quanto baste, como
habitualmente se querem os representantes dessa briosa estirpe oriental. Tanto
poderia possuir origens chinesas como macaenses... Eis os factos mais
prováveis. Falava o português, é certo, mas com um ligeiro sotaque, já algo
diluído. Ainda assim, era notório. Mas isso não retira a legitimidade de
pensar, ou até de concluir, que a sua origem a remetia para aquela antiga
colónia lusitana. Ou, graças a esse incremento das gentes do mandarim em nosso
país, talvez fosse mesmo um de seus veneráveis membros que aqui se encontra
erradicado, um qualquer comerciante, ou mãe de um, tentando prosperar, dentro
de suas capacidades, as linhas de seu negócio, ainda que seja a sorte a ditar, e
não em pequena escala, as regras desse ofício. Mas como tais aspectos, ou
abordagens secundárias, não comportam qualquer distinção digna de registo,
sendo meras impressões primárias e características superficiais, deixemo-los de
parte.
Na verdade, o que sobressaía em tal persona
eram os enormes headphones que a dita senhora, o objecto desta crónica,
levava no topo de sua cabeça, perfeitamente acomodados, tombando por seus
ouvidos, de forma a cobri-los. Ou seja, encontravam-se devidamente colocados e
prontos a funcionar, como ordenam as leis da sua boa utilização, escorrendo o
longo fio até ao orifício de um pequeno rádio de mão, o seu natural destino.
Bem sei o que poderá pensar, caro leitor... Um rádio de mão? Podendo ser um discman,
um leitor de mp3 ou mp4... Um IPhone,
até! (e aqui se excluiu a hipótese, remota, de ter a terra do sol nascente como
berço, tendo em conta a necessidade vanguardista de consumo tecnológico que
assola, se não mesmo contagia, o dito povo – esclareça-se: o japonês). Mas,
contrariando as expectativas mais modernas, era um rádio de mão que segurava.
Até nisso era peculiar, a senhora. Contudo, que não se considere o dito
instrumento de som, os headphones, claro,
banal ou corriqueiro... Muito pelo contrário. Contrastando com a simplicidade
do pequeno rádio, estes apresentavam, em cada face do mesmo, naquelas largas
“rodas” (permita-se a caracterização) que cobriam cada uma das orelhas, um
fundo de rosa berrante, adornado, a negro, pelo desconcertante timbre do mais
brioso dos piratas: tíbias cruzadas e uma caveira de meter respeito a muito boa
gente. Que interessante é ver uma senhora de meia-idade, assumida sem
complexos, ostentando um adereço bem típico de adolescentes asiáticos...
Tê-los-á retirado a uma hipotética filha? Num regime de empréstimo ou
compartilha de bens, previsto numa qualquer cláusula, por certo obscura, do
íntimo contrato que une, pela lei dos Homens e pela lei dos Deuses, coisas tão
próximas e, ainda assim, tão distantes, como são a progenitora e sua cria?
Isso, caro leitor, já o escriba desta crónica não sabe... Nem detém pistas que
o possam elucidar. A si e a ele próprio, está claro. Mas como seria pura
especulação o que mais se visse a acrescentar a este tópico, e, como tal,
irrelevante para o relato em causa, fiquemo-nos, no que toca a este assunto, definitivamente
por aqui.
Seja como for, aquela derradeira
tentativa de agarrar uma já ida juventude parecia ser por demais clara e óbvia,
ainda que a idade se assuma como um tema que suporta o seu quê de
subjectividade. Mas os contraste de tal figura, por sua vez, revelaram-se e
adensaram-se ainda mais quando se anunciou um simpático carrinho de compras que
a nossa estimada amiga trazia de arrasto, aqueles bem conhecidos sacos de
tecido que evoca um padrão nitidamente escocês, de rodas munidos, e que, num
outrora não muito distante, acompanhavam a mais castiça das senhoras
portuguesas nas suas idas aos mercados e praças. Assim se evidenciaram os dois
traços distintos que se cruzavam num só ponto, ou, se preferirmos, dois
contrários, não necessariamente antagónicos, que coabitavam numa só figura: a
linha portuguesa e a asiática e a expressão da inconsciente juventude e da
idade madura. Dois símbolos tão díspares que, curiosamente, ali encontravam a
sua estranha harmonia.
Essa ideia perdurou um pouco mais pelas
mentes sondadoras lá presentes e alcançou o seu zénite quando, já acomodada em
sua mesa, diante de um refrigerante de limão, viu chegar o seu pedido – um
magnífico e amplamente bem servido cozido à portuguesa. Colar esta imagem tão
lusitana a essa outra que retrata a figura de alguém com cariz marcadamente
oriental é um facto causador, por certo, de uma estranheza peculiar, mas apenas
por se revestir de originalidade. Seria o equivalente, nestes termos, a
testemunhar o senhor José Fernandes, dono de umas suíças capazes de despoletar a
mais figadal das invejas em seus semelhantes, um garboso nativo de Mondim de
Basto, imaginemos, e resignado resistente das pungentes agruras da arte da lavoura,
a deliciar-se com os delicados sabores e contrastes de um belo chop-suey!
Inevitável, portanto, não questionar se, efectivamente, os pólos não se terão
invertido... Mas talvez seja esse o significado prático de ser-se global, de
viver numa era marcadamente globalizada, com povos e culturas mais próximos e
conscientes uns dos outros. Assim, sobejam casos como este, deveras intrigantes
e curiosos, admita-se, mas, ao mesmo tempo, verdadeiramente refrescantes.
Contudo, as surpresas e, claro está,
as peculiaridades que, inconscientemente, a nossa amiga tinha reservado para o
seu atento e, ainda assim, atónito público, não se ficaram por aqui. A meio de
sua refeição, entre profundas degustações de exemplares gastronómicos de grande
brio, e perdoe-me o leitor por repetir o adjectivo, componentes de tão típico
prato, desde o bem composto chouriço de carne ao simples, mas bastante
nutritivo, nabo, de uma forma absolutamente natural e inocente os lábios da
referida personagem se entreabriram, não para revelar os despojos da
degustação, entenda-se, mas para entoar uma absurdamente desafinada nota
musical. Sim, caro leitor, era verdade: os headphones
estiveram, de facto, ligados durante todo esse tempo, sem que ninguém disso se
apercebesse... Apesar de terem continuado sempre no mesmo local de uso.
Ali mesmo, tivemos, eu e os restantes
presentes, a nossa redenção... Em pleno restaurante, a meio de sua refeição,
uma tão singular senhora a acompanhar, sem embaraços, as linhas de uma qualquer
canção que somente ela poderia escutar... Imagina o cenário, amigo leitor? A
nossa heroína a cantar, no meio de mesas já quase vazias, palavras soltas de
uma qualquer melodia? Sem esquecer, claro, o chouriço de carne que fazia a
delícia dos seus apetites, o qual mordiscava sempre que a canção lhe dava
descanso. Contrapor-se-á: foi um lapso, uma aceitável distracção... Daquelas
coisas que acontecem apenas por uma vez, pois de pronto se envergonham os seus
embaraçados autores, secretamente desejando que mais ninguém tenha visto ou escutado
a origem do seu vexame. E repetem esse mesmo desejo vezes sem conta, até que
nele, iludidos, piamente acreditem, de forma a finalmente expiarem toda a
vergonha que haviam retido. Mas desengane-se o estimado leitor se assim
considerou o caso. Pois, por mais incrível que pudesse parecer, sem que ninguém
o esperasse, aturdidas que estavam as testemunhas por tamanha surpresa musical,
logo se libertou mais um cantar arrastado. Sim, o acto melódico teve a sua
continuidade. Ainda que, a espaços, apenas parecesse ser o arranhar constante
de britânicas palavras que se soltavam, sem nexo ou ligação. Um «together» aqui e um «forever» acolá, se me faço entender...
Escusado será dizer que o espanto era geral. Perante a medíocre reprodução e
não só, pois a irrisória ocorrência tinha tanto de cómica como de singular. Não
demorou muito mais até que tal implodisse num deveras saudável, e por demais
expectável, desfecho: o riso, a forças contido. Embora ninguém, acredito, se
sentisse profundamente incomodado com tamanha cantoria. Não só as horas eram já
um pouco tardias, o que desde logo não convidava muitos transeuntes a parar para
uma refeição, daí o facto de os poucos presentes estarem já nos derradeiros
instantes de suas degustações, senão as estivessem mesmo já findadas por
completo, como ainda o canto do asiático rouxinol surgia intervalado (já antes
o referi: boca ocupada é incapaz de cantar) e não era propriamente ruidoso.
Apenas fomentava, como se percebe, a boa disposição e o divertimento.
Entre os clientes já conhecidos da
casa, o dono e respectivo funcionário, eu e a companhia que na ocasião me
assistia, os sorrisos que nos assomavam os rostos eram leves e inócuos. Não sendo, assim, emitidos em tom jocoso, entenda-se
isso; antes num clima de companheirismo e cumplicidade entre estranhos, sadio e
jovial. Não ríamos, é claro, de tal senhora; ríamos somente com ela – o que são
coisas bem diferentes, díspares vertentes de um só comportamento. Ou seja: o
acto, esse sim, é idêntico, mas a intenção que o suporta é bem distinta, inócua
como os sorrisos que atrás caracterizei. Perguntará, pleno de legitimidade, o
atento leitor: mas a senhora não se apercebia de seus trinados? Como reagia ela
a isso e, estando consciente, aos sentimentos que provocava em sua audiência?
Na verdade, e, permita-me o leitor que o admita, eis o principal factor que fomentou
todo este relato, toda esta já longa crónica, a dita senhora, por esta altura
já nossa conhecida, quase tão íntima quanto os bons vizinhos prometem ser,
revelava uma postura sóbria e descontraída, completamente indiferente aos ecos
que a ladeavam, fruto de seus moderados gritos. Alheia a tudo e a todos (talvez
essa alienação, quiçá natural, justificasse o seu comportamento), permanecia
focada em seu mundo de cantigas e de cozido à portuguesa, com ocasionais
espreitadelas, fruto de qualquer súbita curiosidade, ao noticiário que se
desenrolava bem à sua frente. Não me questione o leitor se o fazia consciente
ou inconscientemente, pois já antes prometi não divagar ao sabor de dúbias
especulações… Apenas relato o que vi e senti. E aquilo que então presenciei foi
isso mesmo: o alheamento a todo e qualquer sorriso provocado por suas árias
arrancadas em espontânea desgarrada, a singularidade que a assistia e que era,
simultaneamente, a sua mais íntima beleza. Pois tais aspectos, tão naturais e bravios
como são, remetem a sua origem para coisas bem profundas e sustentadas,
comportando muito mais do que, em primeira e, como tal, inexperiente análise,
se poderia pensar.
Creio que, agora que me apronto para
findar, a todos os membros daquela improvisada e surpresa plateia, a soprano
que os encantou concedeu, da mesma inesperada forma, uma valiosa lição de
vivência: a imunidade ao julgamento alheio. Quantos de nós, admitamos, pelos
mais distintos motivos, não renunciariam de seus modos e convicções perante o
implacável temor do parecer de terceiros? A verdade é que, em silêncio, ninguém
aprecia o lugar do réu, os seus pensamentos habituais e, principalmente, os
seus densos sentires. Pois todos tememos o julgamento e as luzes da ribalta que
sobre nós recairão em caso de inevitável condenação, tornando-nos, logo à
partida, objecto de desprezo, gozo ou falatório. A diferença mora naqueles que,
apesar disso, não capitulam de si próprios, isto é, não abdicam de ser aquilo
que naturalmente são, apenas como forma de evitar tais terríveis rumos. Mas tal
expressão, infelizmente, não constitui a maioria. Já a senhora de que falamos,
por sua vez, encontrava-se apenas a ser aquilo que ela era, afirmando a sua
natureza sem a renegar, tampouco recuando em seus intentos perante o olhar
indagador do semelhante mais curioso. Mediante a comum realidade, isso sempre é
digno de louvor. Provando, assim, que na maior das loucuras, e também das
excentricidades, reside uma indomável rebeldia, uma surpreendente sanidade,
comportando, ambas, impactos deveras destabilizadores (num necessariamente bom
sentido), capazes de agitar mentalidades e de quebrar, ou, pelo menos, fender,
padrões pré-estabelecidos.
Em derradeira análise, está claro que
foi precisamente isso que tal personagem realizou. Não por cantar em bandeiras
quase despregadas os temas que escutava, obviamente, mas por se focar em sua
felicidade, não incomodando os demais, e sendo aquilo que exactamente ela era –
e não o que outros desejariam que ela fosse. Em máxima conclusão, temos aqui a
suprema expressão e afirmação de uma natureza ou personalidade. E, assim,
ressalvou, fortificou e a todos apresentou, enobrecida, o exemplo que por seu
registo comportamental se formou. Afinal, já não será estranho ou complexo de
entender que o peculiar pode, efectivamente, atingir grandes níveis de
significância e de profundidade. Basta, para isso, deter a coragem necessária
para o assumir e o elevar à clara luz do sol da revelação.
Pedro Belo Clara.
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