Em um outro trabalho de minha autoria, elaborado numa ocasião
que não esta, escrevi, em jeito de conclusão ao que, à época, poeticamente expunha,
que nada há de mais aprazível do que saborear, no presente, o mel que outrora, de
forma tão deleitosa, nos foi dado a provar. Por outras palavras, se o leitor,
por razões que obviamente desconheço, contrair preferência junto de uma
metáfora distinta, poderei igualmente afirmar, se não abuso de sua paciência,
que nada de mais satisfatório há do que encontrar, no hoje, o ouro descoberto
no passado. E isto, é claro, se o seu gosto recair sobre esse metal precioso,
alvo de tanto louvor e cobiça. Ambas, no fundo, constituem diferentes vias de
cumprir o mesmo caminho, pois a intenção que as reveste é precisamente a mesma.
Digo que «nada de mais aprazível» ou «de satisfatório» há, e assumo os riscos
inerentes a essa escolha, contrariando as premissas do bom-senso. Ainda assim,
afirmo que, qual súbita aparição que se anuncia, se houver, por ventura, alguma
ocorrência capaz de em nós fomentar tamanhos agrados, em tudo idênticos aos
anteriormente referidos, colocar-se-á, por certo, no mesmíssimo patamar
daqueles agora me apronto para revelar. Repare, contudo, que não me socorri do
auxílio das aspas ao transcrever as expressões, pois, como compreenderá, não
desejo citar o que, então, escrevi. Apenas, por mera opção de autoria, me
parafraseio. Pois esta crónica serve, agora, propósitos bem diferentes daqueles
que sustentaram a génese do referido dizer, pelo que será preferível, por não
ser este o seu berço original, diluir um pouco de sua essência pelas linhas do
trabalho que agora componho, fundindo-a na estrutura que vai sendo erguida
palavra a palavra.
Seja como for, e quase que recorro ao «passemos a coisas mais
cruciais», o que veramente aqui importa, para dar continuidade prática ao que
tem vindo a ser explanado, é que, tal como ontem, continuo a determinantemente
defender cada linha do que então escrevi, cada letra da expressão a que dei vida
literária e humano significado. Talvez, e eis a razão somatória, por tanto a
constatar, no que à sua empírica aplicabilidade diz respeito, de sentido e
efeitos, em cada ocorrência da vida que se desenrola diante de nossos olhares,
a reavive a cada instante, a cada reencontro, a cada testemunho. No fundo, o
que ela, a expressão, compreende? Quem se deu, por esta altura, a uma atenta
reflexão sobre a mesma, certamente concluiu que existe uma magia peculiar no
súbito despertar de elementos que no nosso passado abundaram, fazendo dele
aquilo que foi e é. Não me refiro, nem me referirei, durante este texto, às
memórias menos agradáveis que todos retemos com maior ou menor translucidez,
pois essas ocupariam um outro espaço e exercício de escrita que hoje, neste
espaço e exercício específico, não teriam lugar. Foquemo-nos, por isso, nas
recordações que mais acarinhamos. Quando ressurgem da sua terra de neblina,
entre brumas de olvido, vêm envoltas numa aura quase que mística e luminosa, como
nobres ligações que são com algo que outrora vivemos e sentimos, invocando,
assim, as memórias e os sentires que tanto fizeram as delícias dos nossos dias
mais idos.
Um exemplo de tal sucedido, chamemos-lhe assim, por forma a
evitar a aplicação da palavra “fenómeno”, pois esta quase que nos remete ao
imaginário do sobrenatural, e, diga-se, não é essa, de todo, a intenção deste
escritor, um exemplo de tal coisa, como ia dizendo, são os reencontros com os
rostos de nosso passado. Uma vez mais, sublinho que em nada me refiro às memórias
ou experiências que nos confiaram o seu doloroso legado; antes, àquele rosto
amigável com quem partilhámos tanto viver. De certa forma, quando nos achamos
perante tal acaso, feliz em todo o seu propósito, sentimos que o tempo não
cravou o seu cunho em nós, tanto no amigo como na própria pessoa que com ele
esbarra pelas curvas do caminho. É como se, em íntima essência, nunca
tivéssemos envelhecido, ou, colocando de outra forma o caso, quem sabe se assim
de modo mais delicado, como se nunca tivéssemos materialmente crescido, com tudo o que isso comporta. Não brilharão nossos olhos nesse momento de súbito
contacto? A irrefutável prova de que as almas cantam, em uníssono, o júbilo que
as uniu? Explodindo esse sentir numa miríade de cores, quando os corpos se
abraçam fraternamente perante o sorriso ostentado pelos rostos? É nesse
inestimável momento, quase que em sereno êxtase, que todas as memórias afloram,
que todos os cheiros se recordam e as histórias se recontam. «Lembras-te
daquela vez?» - é o começo mais vezes escolhido para encabeçar cada frase.
Então, rolam os sucedidos passados, como lágrimas que alegremente se choram,
como imagens dispostas por um rodopiante caleidoscópio: «Lembras-te daquela
vez, do guarda-chuva?»; «Lembras-te daquela vez, daquele teste em que
copiámos?»; «Lembras-te daquela vez, em que faltámos à aula?». E isto quanto
não se convidam outras presenças, mesmo que momentaneamente distantes, para a
conversa que, como um rio tranquilo, flui: «Lembras-te daquela vez, na casa do
João?». E quanto viver assim não vive, apenas por ser, de novo, revivido…
Por certo que o estimado leitor, se agora mesmo se propusesse a
vasculhar o seu precioso baú de memórias, encontraria alguns casos gémeos deste
que lhe trago. Assim, é perfeitamente plausível afirmar, sem vestígio de
pretensiosismo, que compreende aquilo que lhe falo, por precisamente possuir
exemplos seus, oriundos de seu mundo, que comprovem tal discorrer. Eu confesso,
meu caro, que por diversas ocasiões já pensei, ao reencontrar um velho amigo de
infância, seja por obra de um acaso ou por intervenção directa, isto é, através
de um encontro previamente agendado, que as únicas coisas que terão em nós
cambiado, ao longo dos anos de silêncio, foram a voz, agora digna de tenor (ou,
em derradeira e optimista hipótese, de dedicado barítono), e as barbas que finalmente
adornam os rostos outrora imberbes. Pois, como antes referi, o temível Cronos,
que já os sábios e avisados gregos respeitavam, não tem ofício capaz de
interferir com a essência mais pura de cada coisa. Ainda que fosse capaz de
engolir o próprio filho, não detém poder sobre essa valência. Envelhece a
matéria, perdura o etéreo. Além disso, esse alguém que ainda nos é tão querido,
o portador de uma vida que se desenvolveu de forma paralela à nossa, pelo menos
até certo ponto da existência, é igualmente o sobejo de tantas histórias capazes
de voltarem a arrancar o mais jovial dos sorrisos, a viva evidência de um tempo
que se consumiu em aparência. É indescritível a sensação que nos conquista,
quando voltamos a desfrutar da companhia de quem tanto nos fez rir… E
vice-versa, claro, como será óbvio e suposto de acontecer.
No suceder de tanto sucedido, ignore-se a redundância, por
bonanças e tempestades, bem comuns ao ciclo que a própria vida é, a mesma
oferece-nos ainda, além do recordar, e entre muitos outros mais, este imenso
prazer: a oportunidade de crescer ao lado de quem tanto nos diz. As conversas
hipotéticas de há pouco, são uma clara consequência da verificação desta hipótese,
pois só poderiam ocorrer, numa de suas máximas expressões, entre dois entes que
tanto partilharam por longos períodos de suas vidas, como autênticos, e bem
fieis, companheiros de viagem e de estrada. Se voltarmos a evocar os exemplos
pessoais, constataremos: começamos crianças, jogando com bolas de papel
amassado, revestidas por fita-cola forte e competente em seu trabalho de unir e
colar; tornamo-nos adolescente, e a curiosidade pelos femininos aromas, tão
misteriosos e irresistíveis, desperta; depois, o tempo da faculdade e de outros
amigos e conhecimentos, sem que isso signifique o olvidar de nossas raízes.
Aventuras e desventuras, copos erguidos e batinas amarrotadas, exames e mais
exames, formatura, emprego aqui e acolá, namoradas mais a sério, uma apenas ou
um leque enorme das mesmas, cada qual na sua devida vez, é claro, que nestes
assuntos não é sensato alimentar confusões, esposa, casa e carro a preceito…
Filhos? Por certo… Netos? Porque se negaria a sua vinda? Até nascer o dia em
que, juntos, evoquem o tempo em tudo começou. Aí, a jornada parecerá infinda.
Afinal, a frondosa árvore, hoje tão ampla e poderosa, sempre se surpreende
quando relembra que proveio de uma frágil semente.
É claro que muitas outras presenças se extraviam com o contar
dos anos, lentos à luz das suas percepções de fragmentos de tempo, mas sempre
céleres para aqueles que vivem através dos mesmos, esvaindo-se das futuras
histórias da existência que se desenvolve e prospera. E é natural que assim
seja. A própria ordem da vida compõe-se de coisas tais, de rumos que se
traduzem em escolhas. Não haverá “bem” ou “mal” aqui, somente opção passível de
ser respeitada – ainda que não seja compreendida ou aceite na sua globalidade.
Mas tais figuras, e elas próprias mais do que ninguém, saberão o que será
melhor para si e para suas histórias pessoais, pelo que é perfeitamente normal
que sigam os ventos que souberem ser mais propícios à sua navegação. Afinal, de
certa forma, todos possuímos um destino para esta viagem, um porto onde
desejamos atracar, ainda que a neblina o oculte ou o almirante, confuso, não
saiba simplesmente onde o encontrar. Mesmo assim, a dificuldade não deve
necessariamente albergar a desistência. Em todo o caso, nem todas as presenças,
de forma física, permanecem junto a nós, pelas mais diversas razões. Outros até
acabam, quando menos esperam, engolidos pelo mar que desbravavam… Como tudo o
que começa, tudo detém igualmente o seu fim – que apenas dá lugar a um outro
recomeço.
Perto ou longe, seja pelo físico ou pelo espírito, todas essas
incidências, todas essas histórias e rostos, quando passados, tecem o manto
daquilo que fomos num tempo que não mais subsiste, a não ser dentro de cada um
de nós. É por isso que o reencontro de alguém que pertence a esse cenário é
como o retornar a uma casa ou a um lugar onde poderemos dizer que fomos,
efectivamente, felizes, pois trazem consigo, entre laivos de recordações, o
aroma de tantos momentos vividos e compartilhados, pelo que o sorriso, a dois,
é absolutamente garantido. Será a prova de que esse «mel» que foi saboreado não
azedou, mas se fermentou e transmutou em algo de mais depurado, como a sublime
substância que o compôs. Pois, pelos anos de intervalo, contar-se-ão mais
histórias ainda, mais vivência e mais experiência, parcelas, apenas, a somar
numa colorida operação cujo resultado a cada dia se colhe, sim, mas de maior
expressão se sentirá quando, num futuro não evitável, de novo forem evocadas.
Precisamente aí se fará o julgamento final, íntimo e pessoal, quando as barbas
se esbranquiçarem, os corpos se arquearem e, quem sabe, os sorrisos se
compuserem por uma dentição bem mais escassa… Mas que importância terão, nessa
era de recordação constante, os meros (e naturais) efeitos da decrepitude? Os
corações estarão cheios de vida, como cálices que de amor transbordam… Não
mais, talvez, recordará a mente, às voltas com os nefastos efeitos das
traquinices de um alemão peculiar, um tal de Alzh qualquer coisa, mas as almas,
ainda que encarceradas na material opressão da idade avançada, refulgirão,
internamente, em arco-íris de encanto. Pois que conforto maior poderá advir da
certeza íntima de que a existência em causa foi vivida em pleno? Que a
personagem cumpriu escrupulosamente o papel que lhe havia sido escrito? Que o
conquistador alcançou todas as metas a que se propusera? Sereno se queda o sol
por sobre a mais pacificada das consciências.
Pedro Belo Clara.
(*) Nota do autor: Serve esta simples crónica como dedicatória
sóbria e justa, por evocar temas em tudo concordantes com a intenção que motiva
a mesma, aos meus mais veros e velhos amigos, que desde um outrora distante me
acompanham até aos dias que hoje correm por nós, com maior ou menor influência
de contacto, com mais ou menos ausências de registo (a vida sempre detém a mais
certa das razões). Em todo o caso, o sentimento de estima e de respeito nunca
se altera – antes, cresce e solidifica-se. A vós, então, caríssimos
companheiros, cujos nomes me escusarei a citar por ser obviamente vão esse acto
de mera nomeação, ou não soubessem vós, amigos, ou melhor, Amigos, agora sim, com
a mais exacta das precisões, a quem me refiro eu, entre saudades, louvores e,
acreditem, gratidão.
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