quarta-feira, 17 de abril de 2013

FINALIDADES



O sol despontou, abençoou a vida em seu redor e a jornada do viajante se iniciou. Longo será o seu percurso, solitário também; mas disporá, se cultivar em si a visão, de todos os elementos necessários à concretização de seus propósitos e à própria evolução do Ser em causa. É esse um dos tesouros que encerra em si e que, no começo de sua viagem, olvidou – assim como a ideia de que é parte ínfima de um Todo infinito. Tais sentires, que serão certezas para a sua Alma, concederão ao viajante sabedor um doce conforto, catalizador de sua crença e fomentador de paz e equilíbrio. Não teme o negro fundo do poço aquele que sabe, em sua verdade, o que lá o espera – e toda a realidade se molda pela pessoal visão que se projecta em cada coisa.

Mas, as diversas etapas que o esperam, não são detentoras de um vazio despropositado ou completamente absurdo. São, em sua vez, nuvens que, sucessivamente alcançadas e domadas, o guiarão até à morada das estrelas. Nesse percurso (ou, melhor dizendo, ao longo do mesmo), é comum questionar-se a  finalidade do mesmo. Isto é: o motivo de todo o palmilhar, a razão que sustenta a viagem, a génese de todo o primordial impulso que o impeliu a realizar algo que já não recorda. A pequena gota de água separou-se do oceano que a albergava, onde era una com todas as demais gotas que, juntas, compunham o oceano em si, apenas para que de novo a ele pudesse regressar. Não foi já tal coisa dita e partilhada? E o oceano? Deixará de existir ao se saber desprovido da sua preciosa gota? Ambos vivem um no outro, ambos são uma coisa só. E nunca cessarão a sua existência. Mas, qual o porquê da partida? O que causa a separação? Porque se distende o que antes estava unido? Por punição? Por desprezo? Por consequência de mesquinhas calúnias? Essas ilusões assombrarão as mentes que se auto-limitarem, mas num Universo de Amor tais ideias são finos espectros que desvanecem à luz da crença e do esclarecimento. Recordo: todo o caminho é um escolha e suporta a sua causa. Mas a sabedoria íntima, ganha através de muitas vivências (ainda que essa não seja uma via exclusiva), é uma luz imensa, deveras fascinante e profunda… E também se poderá resumir a isto: experiência. Eis a razão maior. Tudo será recordado, toda a verdadeira realidade será revelada quando a gota de água se fundir no seu eterno oceano, quando a centelha de luz retornar ao seu sol, quando o filho que há muito partiu regressar a casa de seus pais – simples metáforas para os caminhos da existência e suas finalidades, aqui vistos através da mais simples das formas.

Ainda que os rumos difiram entre os inúmeros caminhantes que os delineiam, a causa global é comum. Todos somos as partes de um Todo aqui projectado, por ilusões divido e apartado. Assim, antes de beber o elixir do esquecimento, o viajante definirá o seu rumo até à origem, mesmo que isso signifique o assumir da dúvida mais abrangente e o suprimir de toda a crença. Pois também essa decisão é um caminho, e esse caminho é certamente passível de ser trilhado. Por mais díspares que possam ser, desembocam todos no mesmo lugar: o Infinito. Pois o Céptico e o Religioso, assim apresentados pela dualidade deste mundo, são também eles uma coisa só – como o Grande e o Pequeno, o Alto e o Baixo, a sua Esquerda e a sua Direita. Se se entregar nos braços da Vida, confiando nas forças que brandamente a regem – aquelas energias superiores ao próprio viajante, mas das quais também ele é parte integrante – encontrará aí uma suave via para atingir o seu propósito. Mas, como referi, essa é apenas uma mera direcção, uma pequena pétala de uma só rosa. Toda a direcção serve o mesmo fim, toda a pétala compõe a doce formosura de uma rosa.

Entre esses tempos de chegada e partida, pois a existência material é um simples sopro, célere e efémero, contam-se as diversas etapas a cumprir, a alta escadaria que em seu percurso o viajante irá subir, até ser recebido, de braços bem abertos, no Mar de Luz que o espera. A diversidade por ele experimentada será, de facto, vasta, fazendo jus à sua própria nomenclatura. Mas que não olvide ele o principal: o que é, é-o por uma sólida razão. As experiências serão, por isso, causadoras das mais amplas sensações e aprendizagens. À medida que certos impactos sejam causados, tanto nele como em nós (pois que somos nós, leitor, senão os caminhantes de uma grande jornada, seus semelhantes em condição?), as impressões que restarem, essa maré que traz pensares e conclusões até às margens de nosso Ser, impulsionarão certos padrões de comportamento que serão, a seu tempo, consolidados. Importa, pois, ao mais avisado dos viajantes, entender cada um deles, avaliá-los e julgá-los, escolhendo o que poderá ser melhor para a sua existência, para a história que de momento se encontra a escrever. Apenas aqui poderá ele ser detentor do direito de julgar: sobre o que deve ou não entrar no capítulo de sua existência, de forma tão branda quanto a brisa afaga as folhas do grande carvalho. Poderá, assim, escolher o seu padrão, a sua rota de acção ou até mesmo de passividade ou entrega, desde o mais complexo dos roteiros ao mais simples e desapegado ideal de experiência. Como nos demais casos e hipóteses, é uma opção. Pois tudo depende da perspectiva de cada um de nós, do olhar adoptado perante cada coisa nova, das razões que motivam o que fazemos e o que escolhemos. E, uma vez identificado, ou o consolidará ou o transmutará, quebrando a velha ligação e cultivando uma nova.

Ser ou estar consciente é, numa primeira fase, saber colocar tais questões e encontrar as suas devidas respostas. Poderá entender que se perderá no devaneio turbulento das emoções sentidas e, como tal, escolher uma vivência longe do seu extremo. Aí, estará a sua escolha. No entanto, poderá considerar que essa plenitude de sentires é a última peça da sua experiência. Assim, decidirá aproveitá-la. Ou, ainda, ser mais brando e experiênciar o «melhor dos dois mundos». A analogia é clara: três homens estão sentados à mesma mesa, bebendo da mesma garrafa de vinho. Contudo, ambos o saboreiam de formas distintas. Um, mal recebe o primeiro gole, de pronto o cospe, não desejando entrar nas expirais embriagantes. Outro, muito menos comedido, esvazia o seu cálice de um trago e deleita-se já com as maravilhas de uma segunda garrafa. O último, por sua vez, deseja deliberadamente saborear o vinho, embora não intente tombar nas mais ébrias tentações. Os mesmos elementos, mas personagens diferentes… Causas idênticas, efeitos distintos. Estar consciente é entender o efeito do vinho, à partida, e suas implicações. O resto… é escolha. O guerreiro que opta pela batalha, quando a sua escolha é definível, questiona-se: «granjeio protecção para a batalha por ser sensato ou por temer a dolorosa ferida?». Dessa mesma forma, o faminto que desconfiar do pão que lhe for servido, desde logo o estará a envenenar. Eis a perspectiva e o comportamento perante os sucedidos. Serão esses que guiarão o viajante até ao término de sua jornada, no tempo em que todas as estações se findarem, fazendo-o cumprir o propósito a que se dispôs. Quão maravilhado ficará quando entender, em sua Alma, que cada gesto, cada toque ou sopro o conduziu àquele esplendoroso momento…

O que estará, então, no final de todos os seus rumos, quando os diversos trilhos se unirem num só espaço, num só destino? Para muitos, a Liberdade, a Felicidade, o Amor, a Compaixão, a Redenção… Estarão erradas essas idealizações? Não, em essência… Ainda que todas sejam pedaços da mesma tapeçaria, são igualmente, aqui, em sua forma reconhecível, ventos que sopram, ventos que vão e vêem. Desprovidas de eternidade, a centelha que lhes preencheria e que delas faria Unidade, são fugazes estados de ser, arquétipos que o viajante experiência e assume, ainda que não os mantenha de forma perene. Fazem parte da experiência, sim, mas são igualmente requisitos de algo superior, uma vez que com suas linhas se tece o Infinito. Seja qual for a razão da busca de um caminhante, para o seu íntimo parecer ela será a sua finalidade, enquanto se demorar pelos campos da matéria que o ampara. Cada um buscará aquilo que dentro de si mais veemente pulsar, implorando desbravamento, impulso ou conquista. Mas… o que dizer do sábio que opta por renunciar ao mérito que lhe é justo e devido, transmitindo-o aos demais, no auge de seu amor e compaixão? Não saberá ele que algo mais infindo o espera? Não será ele, por ser precisamente aquilo que é, motivo de inspiração para o seu semelhante? Um farol capaz de iluminar a mais tenebrosa escuridão? Uma firme mão que se desflora em expresso auxílio? Quem abre os braços a essa renúncia, encontra-se muito além do que motiva a experimentação… Pois vive no Eterno, tendo ele próprio, consciente disso mesmo, o Eterno em si.

Muitos de nós poderão considerar tais ideias como sendo a meta da viajem que empreendem. De facto, para muitos são aquilo que a impulsionam: encontrar, um dia, o Amor, saborear o vento da Liberdade, sentir o sorriso da Felicidade. Essas são as razões que urgem ser encontradas e justificadas, no que ao seu entendimento diz respeito. Mas, quando o viajante os detém junto de si e dentro de si, não entenderá ele que tais sentires mais não são do que efémeros estados? Uma condição aliada à matéria, onde tudo é mutável e passageiro, e que se assemelha às estações, onde tudo se sucede e é sucedido? Quando o viajante for ainda mais fundo em sua busca, quando alcançar lugares ainda mais interiores, entenderá, por fim, que a vera finalidade, respeitante aos estados de ser, ou o término de sua longa jornada, é a própria Plenitude. Só esta paira sobre todos os ciclos, sendo mais do que vazio resultante do desapego e do despojo (que para muitos é a finalidade); só esta, de tão árdua conquista e manutenção, se queda para além de tudo o que é dual. Eis o aspecto diferenciador: a dualidade, característica intrinsecamente material. Onde coabita o Amor, existe a Dor; na Liberdade vive o Encarceramento; a outra face da Felicidade é a Infelicidade. A Plenitude, por sua vez, é a cortina que descerra uma paisagem infinita. Embora aqui, neste plano tão familiar, também ela se possa fazer sentir através de uma sensação de preenchimento luminoso e de constante fluidez, serena e branda. Muitos saboreiam esse fruto através da contemplação, que mais não é do que um mero estado meditativo. Mas qualquer sentir será apenas a projecção de algo sobejamente superior, assim como o é com tudo o que de mais sentimos. Mas isso, é certo, não invalida a sua experimentação.

A emoção é algo de inconcebível no outro lado do véu que separa este lugar do lugar onde o viajante teve origem e terá o fim de sua caminhada. Assim, como os sentires poderão aí subsistir? Cessa o dual, inicia-se a infinidade. Aliada a seu par, a Paz, a Plenitude cobrirá a Alma com o mais reluzente dos mantos. E aí estará a desejada eternidade.



Pedro Belo Clara.






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