Um pequeno pássaro lança-se nos braços do dia, certo de que seu
voo será amparado. Da mesma forma, a árvore produz o seu fruto na certeza de
que alguém nele encontrará satisfação. Se assim é, porque o caminhante não
confia? Porque não se entrega ele? Esquecer-se-á de que é como o rio? Que,
fluindo, sempre alcança a foz e desagua no oceano que o espera? Derrubar as
barreiras do medo, que apenas medra por subsistir a dúvida e o desconhecido, é
uma via de se ser livre e de cumprir o intento maior. Resistir significa
colocar pedras no fluxo desse rio, que, com o passar do tempo e com a
frequência com que são lançadas, se tornará numa lagoa descolorida e inerte.
Existe, contudo, um arbítrio. Como tal, a escolha reside em cada um – ainda que
a sua totalidade ou abrangência seja universal. Mas também ela detém os seus
limites. Tal como o lavrador que cuida de sua horta, ele não controla os raios
do sol ou os pingos da chuva. Se permanecer atento, descortinará as linhas que
compõem e regem cada coisa. E uma luz brilhará sobre si.
Por vias mais directas ou indirectas, se o permitir, todo o
viajante se torna um discípulo da própria Vida. Tanto esta o instruirá como o
auxiliará a recordar. De facto, nunca estará só. Para cada gesto, a
correspondente manifestação. É por isso que certos caminhantes, já capazes de
ver e entender tal realização, à própria Vida se entregam, no auge de sua fé e
de sua humildade. Isso significa confiar em forças superiores a si próprio,
ainda que estas não se encontrem distantes de sua presença. Aceita, portanto,
os limites da sua condição – por ora limitada. Mas, ainda que partilhe da mesma
origem ou razão de seu semelhante, nem todo o viajante se queda no mesmo
patamar. Por consequência, nem todos detêm a mesma visão, pois cada um se
encontra em partes distintas da montanha que escalam. Aqui se definem as
responsabilidades de cada um perante os demais. Os vestígios deixados ao longo
do trilho são o testemunho disso mesmo: deixará para trás a sua palavra ou
sinal aquele que por si já desbravou o caminho que outros agora percorrem. Mas
porque trabalha o viajante em prol do seu semelhante? Eis a distinção entre Ter
e Ser.
Nunca estamos sós e todos somos uma coisa só. Aquele que
trabalha apenas em virtude dos proveitos pessoais, esquece que é parte de um
todo e que tudo o que o rodeia são extensões da sua individualidade. Ao
renegá-las, estará a renegar si próprio. Mas, quando o sentir da fraternidade
se instalar no coração que deseja beber da Fonte Eterna, logo esse dever se
instala em si… Como se inato fosse. Aquele que sabe, contrai uma dívida apenas
saldada através da partilha de sua sabedoria, moldando-a em palavras, imagens
ou visões. E não poderá ser essa a razão do retorno de um caminhante? Prestes a
banhar-se no Mar de Luz, prestes a se tornar uno, por consciente decisão adia a
profunda comunhão e regressa aos prados terrenos, mergulhando na dor da
ambiguidade e na incerteza da dualidade. Alta brilha a estrela de tais seres,
silenciosamente cumprindo a vigília do mais longo dos sonos…
Mas todo aquele que ensina, bem como aquele que é ensinado e
aquele que renega o próprio ensino, são personagens que desfrutam de uma
experiência singular, e nenhum poderia existir sem o outro. Seja qual for o
rumo, ou, antes disso, a génese do retorno, por nada se faz cessar o carácter
experimental da vivência, mais ou menos avisada. Pois toda ela detém uma razão
clara e luminosa, ainda que aos olhos embaciados não seja ela visível e, por
isso, revelada. É preciso imergir bem fundo no lago na consciência, que se
renova através das fontes subterrâneas da Consciência Maior, para que tal
evidência seja resgatada. Ela própria se reflecte no dom que é a singular arte de
cada caminhante. Assim, e se toda a existência é plena de propósito, porque
vivê-la como se desprovida estivesse de profundo intento? Apenas ao seu “não
descobrimento” se poderá atribuir um “não rumo”, ainda que isso seja,
paradoxalmente, um rumo individual – isto é, um rumo passível de ser
escolhido.
Mas nem sempre de suas escolhas está o viajante consciente ou
por elas se responsabiliza. E aqui se revela a maturidade de sua essência: no
entendimento de cada efeito e na aceitação das respectivas consequências.
Apenas ao levar a cabo uma existência imatura, isto é, adormecida, distante da sua
primeira intenção, é que o viajante se poderá dizer perdido, inconsciente,
incapaz de caminhar, desligado da luz mais primordial. Quando entender esse seu
passado, talvez até nem necessite mais de retornar à matéria; talvez opte por
se unir à energia que o criou. Então, dirá: «agora me encontrei, eu que havia
estado perdido; agora sou a Consciência, eu que havia estado inconsciente;
agora sou capaz de caminhar, eu que havia adormecido na berma da estrada; agora
sou a luz primordial, eu que havia em entregue à escuridão do não
conhecimento». E a personagem que fora interpretada, de pronto se descarta como
uma roupagem antiga. Parecendo-lhe tudo deveras ancestral, inconcebível na sua
nova realidade, os cenários que compuseram a material existência, ainda bem vivos
e presentes, serão apenas resquícios de um mundo que não mais subsiste. Esteja
ele prestes a mergulhar na Fonte ou apenas a se preparar para uma nova etapa. O
sentimento, em forma de noção adquirida, será idêntico.
Afinal, o que é o tempo de uma vida só? No deserto da
eternidade, esse episódio é um mero grão de areia, impossível de distinguir dos
demais. Mas, ainda assim, crucial à criação do seu todo. Apenas se findou a
turbulência, apenas tudo se fez cumprir. Em ambos os mundos, brilha a aura daquele
que cumpriu. Mesmo que regresse, mesmo que volte a palmilhar o vale do
esquecimento, será bafejado pelo sereno êxtase dos que vivem elevados. Essa
conquista é pessoal, pelo que nada mais se lhe poderá furtar. Em cada passo, o
magnífico Ser se aproxima cada vez mais da casa onde nasceu.
Pedro Belo Clara.