quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A Derradeira Viagem

Nesta existência de Caminho, múltiplos são os viajantes que deixam em nós a sua marca, o seu indelével e íntimo perfume, ainda que as futuras ocorrências de nossos percursos não mais se entrecruzem. Mas, residirão sempre em nosso ser as memórias de tudo o que foi vivido e compartilhado, algo que nos auxiliará a evocar a magia do vento que soprava naqueles tempos idos. E mesmo as recordações mais amargas, caso nos disponibilizemos ao perdão, irão adquirir, com o tempo e a distância, um sabor muito mais doce – uma ampla compreensão dos acontecimentos permitirá isso mesmo. No entanto, mais cedo ou mais tarde, sabemos que irá eclodir a hora em que tais indivíduos, estando ou não fisicamente mais próximos de nós (pois tal não é realmente significativo), partirão até terras distantes, paragens longínquas a toda a material percepção, empreendendo, por fim, a mais arrojada de todas as suas viagens, aquela que, por curiosa constatação, será igualmente derradeira (pelo menos, durante uma específica fracção de tempo). Este acontecimento é deveras inevitável, e todos aqueles que um dia decidiram realizar a tamanha empresa, sabiam de antemão que chegaria à hora em que suas presenças iriam ser reclamadas por seu lar, o seu verdadeiro lar.

Mesmo assim, o apartamento de tais figuras, aquando de sua ida, será sempre sentido por aqueles que, de uma forma ou de outra, revelaram o seu mais sincero amor para com elas, quer tenha sido através de um gesto, um beijo, um sorriso ou numa breve palavra. Por mais conhecimento ou sabedoria que um Homem possa possuir, tal facto verifica-se em pleno. E um apertado sentimento tarda em se amenizar. Todos nós, no fundo, já “perdemos” alguém que nos era imensamente querido e sentimos o peso do vazio que tal ausência nos legou. Um maior ou menor conforto poderá assistir-nos em momentos assim, dependendo das crenças com que cada viajante se muna, mas, mesmo sabendo que tão caro companheiro se encontra tranquilo e seguro em um qualquer outro lugar, nunca deixamos de sentir um estranho pulsar que nos assoma o coração e que, como lágrimas emudecidas, escorre pelo rosto da resignada aceitação. Nessas alturas, sentimos que o mais proveitoso dos saberes se priva de seu valor. Na realidade, só quem não caminha, só quem não ama ou vive é que poderá verdadeiramente afirmar que jamais um resquício de tal sentir o conquistou.

Em meu considerar, caros irmãos caminhantes, essas tão amadas figuras apenas partiram para longe nós, realizaram a sua “derradeira viagem”, e, nos verdes prados onde se recostam, aguardam a vez em que também nós auscultaremos o apelo da última das aventuras terrenas. Não me dói, sinceramente, a incerteza, tampouco a dúvida de seu bem-estar, apenas uma ilusória ausência de seus gestos, carinhos, discursos, olhares, sorrisos e pensamentos. E digo ilusória pois, no fundo, eles viverão sempre em nós; fazem parte de nós, povoam nossas memórias e são a génese de nossa força, coragem e motivação, aquela com que cultivamos o mais terno de nossos sonhos. Será que, considerando tudo isto, “perdemos” de facto alguém? Não. Nada perdemos, apenas ganhamos. Por todas essas vivências partilhadas, ganhamos sempre um pai, uma mãe, um avô, uma avó, irmão, irmã, amigo ou amiga, autênticos companheiros de Caminho. De todos aqueles que hoje se reconfortam em verdes prados e que, num certo dia iluminado ou chuvoso, conheci, trago em mim suas recordações, evocando-os em meus pensamentos e honrando-os com minhas acções.

A vida é feita de etapas e se nos dispusermos a tal ultrapassá-las-emos. Teremos sempre a nossa treva, mas não deixaremos de sonhar com o nosso amanhecer apenas porque o dia se apresenta mais sombrio. Eles realizam a sua viagem, mas nós, aqueles que os amam, somos colocados perante as provas de um novo processo de desenvolvimento pessoal. Inevitavelmente, se decidirmos avançar no nosso trilho, há algo que se transmuta em nós. E na nova manha que, por fim, surgirá, seremos seres renovados, com o brilho de todas as anteriores experiências a fazer-se sentir da forma mais resplandecente. Teremos feridas, teremos virtudes, mas seremos caminhantes que dignamente empunham o estandarte do Universal Amor. Afinal, amámos e fomos amados. Existe bênção maior que essa?


Pedro Belo Clara.  


2 comentários:

  1. A menina dos olhos (...) “perdemos” de facto alguém? Não. Nada perdemos, apenas ganhamos.

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    Este é um fato incontestável, somos viajores e como toda a suprema obra divina devemos viver ao invés de apenas existir o que deveras nos leva a saber(aprender) e entender que idas e vindas são necessárias para o crescimento no âmago de quaisquer que seja a pessoa.

    Somos (des)fragmentos de situações, laços amorosos, laços fraternais, laços familiares e vários outros laços. A saudade que carrega o peso do fel para muitos deve de fato trazer a doçura de um mel. Pois nestas caminhadas nas veredas da vida devemos sentir a grandeza do tempo que passa pela nossa tez revelando as rugas, mas internamente a evolução e o crescimento de muitos belos sentimentos que possa habitar nosso coração.

    Pedro, seu dinamismo e fortitude singela com as palavras me demovem.

    Parabéns.

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  2. Um grande abraço, meu caro amigo. É sempre um prazer vê-lo por aqui, viajando pelas entrelinhas de meus manuscritos.

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