quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os três livros

Tenho, numa determinada prateleira de minha emadeirada estante, três livros: o mantido, o lido e o vivido. O mantido, impecável em sua conservação, jamais foi lido e muito menos vivido; apenas foi conservado e ali se encontra, assim, ocupando o seu espaço, sem nunca ter sido desbravado por olhos ávido de curiosidade ou navegado por dedos deveras irrequietos. O lido, por sua vez, já desfrutou da possibilidade de ser aberto e explorado, com suas palavras lançadas na frescura de um vento viajante que, no entanto, rapidamente as levou em seu sopro incessante. Por fim, o livro vivido, aquele que tanto me deslumbra e me faz indagar, um livro tão gasto que se adorna de andrajosas vestes de indigente, sublinhado e anotado pelo carvão de um lápis desrespeitoso, de alvura corrompida, virgindade usurpada e decência renegada… Haverá alguém capaz de o amar verdadeiramente ou, pelo menos, de admirar a imagem daquilo que ele é? Eu; eu amo-o, admiro-o e respeito-o autenticamente.

É verdade que nutro sentimentos cordiais para com os restantes livros, aceitando-os em suas diferenças e em seus percursos percorridos, sabendo que, no seu silêncio, também eles almejam ser um dia como o seu irmão – livros lidos, sentidos, vividos. Embora permaneçam praticamente invictos, orgulhosos de sua condição conservada, altivos em sua honradez transmitida, suspiram sempre as linhas desse seu desejo tão íntimo e oculto. Pois o vivido, tão tímido e vexado por sua condição, um mendigo que esmola roga às artes da bela aparência, é o único que se distingue por ser verdadeiramente quem é – um livro experimentado, cuja sabedoria foi lida, entendida e aplicada nas demais circunstâncias da existência de quem o consumiu. São livros assim que nos concedem os melhores conselhos, os confortos mais confortáveis, os alívios mais ansiados e demandados. É obvio que os livros de índole idêntica a este apresentam as suas marcas próprias, indistintas feridas que, provavelmente, jamais sararão, embora conservem sempre em si a mais honesta das aprendizagens.

Cada um de nós, caminhantes do longo Caminho, assume, de certa forma, o carácter de um desses três distintos livros. Assim, somente se revela ainda mais absurdo o olvidar do livro vivido, baseando-se unicamente o inexperiente julgamento na sua aparência tosca. O seu brilho aparente poderá estar quase a se desvanecer, é certo, mas um outro cintilar refulge no âmago de sua condição e do seu simples ser, cada vez mais enriquecido e vivido – o cintilar da experiência assumida. Todos possuímos as nossas feridas, o resultado de anteriores etapas ganhas e perdidas; eles definem a nossa força e as nossas escolhas, são o motivo da nossa aprendizagem e o despoletador da memória da lição entendida. Não existe absolutamente nenhum descrédito em sermos livros vividos, meus queridos irmãos caminhantes; todos temos nossas dores. E elas são o significado de uma existência ganha e vivida, são o manto que adorna todo o caminhante que, a cada manhã, se ergue perante o sol nascente e se apronta para mais um dia de caminho, seguro de que encontrará Dor e Júbilo, Chuva e Sol. Mas, mesmo assim, com uma bravura ímpar tão comum àqueles que caminham, àqueles que são ou decidem ser livros vividos, gratifica-se pelas bênçãos que o assistem e de novo parte em direcção do horizonte mais longínquo.

Pedro Belo Clara.



2 comentários:

  1. Muito bem vivido esse que escreve...rsss Estou retribuindo a gentileza e seguindo-te. Um beijo.

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  2. E eu agradeço a tamanha simpatia, Marisete.

    Beijo.

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