Apronto-me para redigir estas linhas com definidas intenções e não cesso de focar a minha atenção num determinado episódio que se sucedeu um dia antes da realização de uma palestra para a qual fora convidado. De tal forma o caso se sublinha a si próprio que, inevitavelmente, dele devo fazer a base onde o pensamento que desejei primordialmente partilhar se irá, com a devida propriedade, assentar.
Decorria o ano de 2012
e muito amigavelmente havia aceitado o gentil convite de uma
simpática escola do interior do país para efectuar três sessões
ditas “literárias” no interior das suas instalações. O assunto
das mesmas era simples e bastante familiar: o meu percurso como
autor. No fundo, a intenção principal era discorrer sobre o meu
trabalho, revelar o que me motivou a enveredar por esse peculiar
caminho e, claro, partilhar alguns trechos de livros que já tivesse
então publicado (até à data, apenas dois). O desafio era
estimulante; além do mais, constituía uma importante oportunidade
de divulgação da minha obra, algo que um “escritor em princípio
de carreira” sempre vê com muito bons olhos. Mas devo confessar,
em prol da sinceridade que me habita, que o meu maior interesse, mais
do que vender livros a preço de saldo, era simplesmente apresentar o
meu exemplo e, assim, quem sabe?, conceder, a partir da sombra de
tantos momentos, um pouco de luz aos elementos da plateia que a ela
mais receptivos se revelassem.
É certo que todo o
Homem detém em si a oportunidade de positivamente influenciar o seu
semelhante, se veramente o desejar. É uma opção, apenas. Contudo,
há que primeiro cultivar a consciencialização desse princípio.
Detenho a seguinte convicção: todo o Homem pode (senão mesmo deve)
ser um farol para o seu semelhante. Por isso, a minha principal
intenção era tão-somente aplicar essa máxima que defendo da forma
mais aprimorada que soubesse.
Não poderei dizer, com
total certeza, que o intento foi cumprido, embora me agrade pensar
que sim. Talvez um dia mais tarde venha a granjear uma absoluta
certeza sobre o caso. Por enquanto, sei que doei o melhor de mim. E
isso basta-me. Aliás, o simples facto de sabermos que com nossas
palavras e actos tocámos profundamente alguém e, como isso,
acrescentarmos uma positiva mudança em sua existência, é não só
uma louvável vitória como também a própria razão de eu me ter
tornado escritor. Não há, assim, uma derrota plausível nessa
intenção, pois todo o acréscimo que veramente se efectiva acaba
por se revelar um feito notável.
Mas antes de tudo isso
se realizar, existiu o caminho que me guiou até esse dia. E é nele
que o pensamento referido no início desta crónica se situa. Isto
porque a existência humana é um imenso palco de aprendizagens. O
próprio mundo, se com atenção o avaliarmos, apresenta-se como uma
escola imensa, pródiga em infindos desafios. Tudo com um só
propósito: evolução. É, por isso, translúcida a minha ideia: o
natural desenvolvimento do Homem é a sua própria evolução, uma
espécie de “próximo passo” na sua longa (e íntima) caminhada
existencial. Mas, para que ela se possa manifestar, importa não só
aceitar o desafio como também palpar as fímbrias de que é feito,
por modos que diferem de indivíduo para indivíduo (naturalmente).
Todos possuímos diferentes formas de contemplar o mesmo horizonte e
os caminhos para o coração são múltiplos. O caminho não é
estreito, antes de uma infinidade plena – tão infinito como a
eternidade que nos espera no término do mesmo.
Mas eis o ponto
crucial: para que tudo se possa concretizar, o desafio urge em ser
aceite, o obstáculo derrubado e a etapa cumprida. Se colocarmos uma
enorme pedra sobre o curso de um riacho, o fluxo das águas é
interrompido e de pronto se estagna, até, no tempo devido, encontrar
um meio de ultrapassar essa incómoda barreira. Então, cumprirá o
seu destino: desaguar no lugar que o espera. Antes que isso aconteça,
contudo, contar-se-ão inúmeras histórias e numerosos pensamentos,
se fossem pensamentos e histórias somente aquilo que do riacho
pudéssemos escutar.
Deixemos os rios e
retornemos ao Homem. Neste caso, ao que vida dá, por palavras, ao
relato que evoca uma íntima experiência sua. Assim, antes do grande
dia, instalei-me num pequeno e simpático hotel, aproveitando para
desfrutar um pouco das belezas ímpares daquele lugar situado na mais
famigerada das serras lusitanas. Como não fizera a viagem sozinho,
dispus de uma agradável companhia durante o passeio e o subsequente
jantar. Mas as mais importantes revelações ou provas de um Homem
acabam por surgir no seio do mais cru dos silêncios, quando,
completamente despojado de tudo, nu se apresenta diante de si
próprio.
Foram deveras curiosos
os sentires e os pensares que me assomaram naquela noite, após a
refeição... Já de volta ao quarto, com pouco impulso para a
leitura (Steinbeck, meu fiel companheiro) e atenção para os
programas televisivos, dei por mim a fitar o vazio. E de facto foi
ele que, de súbito, mais me pesou: naquele quarto de hotel, em plena
noite de Novembro, senti uma solidão extraordinária. Estranha
constatação, direi, pois em regra a solidão é a mais fiel amante
de um escritor. Como poderia ser solidão, se solidão era algo que
tão bem conhecia? Admitamos: sem ela, como pode um autor exercer o
seu ofício? Aquele sentir era, de algum modo, diferente sem o ser...
Assumia quase os contornos de algo nunca antes sentido. O seu peso
oprimia-me. Qual a razão? Desconheço… Quem pode justificar os
súbitos (e amiúde obscuros) sentires da alma?
De facto, o fenómeno
mais complexo de aceitar era a certeza de a solidão ser algo
bastante familiar para mim. Na verdade, à parte do que antes foi
referido, aprecio-a bastante. Os instantes de silêncio são sagrados
para mim, pois deles retiro o necessário à fome de minha alma. E
eles sempre me haviam concedido o melhor de si mesmos. Contudo,
naquela noite foi diferente. Aceitei a chamada de um familiar
próximo, por natural ocorrência, e o sentimento somente se adensou.
Nem no seio mais quente perecia o frio implacável que voraz
crescia... Pesava em mim como uma pedra e o vazio, crescente,
oprimia. Sem solução de combate, aceitei o fenómeno em derradeira
capitulação. E adormeci na entrega que por decreto havia feito a
quem sempre me guia.
Outro dia despontou. O
dia da ansiada palestra. A solidão e o vazio? Escoaram-se pelo mesmo
orifício de onde vieram. Como? Uma vez mais, desconheço. Mas já
vivi, senti e pensei o suficiente para saber que certas coisas são
como nuvens que passam sobre nós: deixam a sua bênção em forma de
chuva e, com ela, apenas nos tornam mais férteis. O evento correu de
feição. Nem pensei mais no caso. Apenas me concentrei em cumprir a
minha tarefa e dar o melhor de mim da melhor forma que sabia. No
término desse dia, de consciência retomada, sabia que reencontrara
a minha paz. Assim, de forma tão natural, evolutiva e simples, a
minha luz saíra – também ela – renovada de todo esse processo.
E obtivera uma nova confirmação: a evolução só abraça o Homem
que a ela abrir os seus braços. Importa não esquecer tal coisa no
meio da azáfama habitual dos dias rotineiros.
Mas o mais curioso de
todo este processo surgiria, como complemento, alguns meses depois.
Até minhas mãos chegara a correspondência que um familiar próximo
havia trocado com sua esposa durante uma das suas múltiplas viagens
profissionais ao longo desta lusa nação. Por outras palavras: as
missivas que o meu avô materno escrevera para a minha avó aquando
da sua estadia, no caso, numa das ilhas dos Açores. Ao lê-las,
detive o olhar num certo paragrafo e sorri. Chegado ao hotel, num
longínquo dia da década de setenta, o meu avô confessara os seus
mais íntimos sentires à sua esposa, tendo em conta as
circunstâncias em que ali chegara e a forma como aquela realidade o
envolvera. Eis o motivo do meu leve sorriso… Pois a descrição dos
mesmos era-me bastante familiar. Sim, caro leitor, o meu avô
confessava sentir exactamente o mesmo que eu sentira naquela noite de
Novembro, com uns meros quarenta anos de diferença. Curioso, não?
Bem sei que poderia
investir uma certa quantidade de tempo em reflexões sobre o caso e
respectivas conclusões. Mas que importa isso, afinal? Apesar de
termos seguido caminhos distintos, eu e o meu avô materno nunca
fomos, em essência, muito diferentes um do outro. E naquela simples
leitura, voltara não só a confirmar essa ideia como a extrapolar a
sua premissa para um universo bem mais alargado. Afinal, que ligação
maior poderá haver do que aquela que se estabelece quando um
sentimento é partilhado? Quando compreendemos algo há uma sensação
de proximidade que nos torna, a todos, irresistivelmente humanos...
Uma espécie de compaixão que somente nos engrandece e nos une. Os
laços apertam-se. Nesse miraculoso acto, inúmeras barreiras se
derrubam, pois a ilusão do “dois” (permita-me a metáfora)
dilui-se na implacável certeza do “um”. A estrada existencial
ilumina-se, por fim, e até ao alcance da sua última etapa vive a
convicção de que o sol que banha o viajante é um astro invicto.
Mesmo que a dualidade não cesse o seu efeito, a cortina foi já
dilacerada. E será uma questão de tempo, no caso da perseverança imperar continuamente, até se revelar a solução do mais íntimo
dos enigmas.
Pedro
Belo Clara.