A seguinte
história, que a bem da verdade nem chega a merecer o epíteto de “história” (direi
antes “relato” por de uma breve narração se tratar), chegou recentemente ao meu
conhecimento por intermediários que me são próximos. O mesmo é dizer que não a
testemunhei pessoalmente ou dela, tampouco, fiz parte. Escutei-a, somente. E
hoje aqui a reproduzo com um assumido apelo à reflexão individual. Que o
leitor, então, faça o que mais lhe aprouver com o que daqui sobejar.
O interveniente directo deste
sucedido, o primeiro narrador do caso em questão, não é nem do meu íntimo nem
do meu casual conhecimento, como por certo já terá ficado esclarecido. Contudo,
pelas palavras que compuseram o retrato da situação, acabou por pertencer a um
círculo mais fechado de contactos, fruto da genuína humanidade que regou o seu
simples acto. Acalme a sua curiosidade, caro leitor; no momento certo explicar-lhe-ei
tudo devidamente.
Ora, a pessoa em causa, numa manhã
de Janeiro, como por certo o faz no alvorecer de cada novo dia de labor, seguia
na sua viatura particular numa rua de Campolide, em Lisboa. Naturalmente, e
seguindo sensatamente as regras de trânsito vigentes, parou por instantes junto
de um semáforo vermelho. Aproveitando o tempo que a espera certamente lhe iria
trazer, decidiu desviar a atenção da estrada e fixá-la nas incidências que pelo
passeio, mesmo a seu lado, ocorriam. E em boa hora o fez.
Acontece que naquele exacto momento,
um senhor de ascendência africana, por certo um filho de uma das antigas
colónias portuguesas daquele continente com extraordinários recursos naturais,
encontrava-se de joelhos, sobre a calçada, sondando, ao que parecia, as terras
de um pequeno canteiro aí existente. Numa primeira análise, a condutora do
veículo por certo terá pensado, como qualquer um de nós perante a insólita
situação, que o pobre homem (que não aparentava mais de sessenta anos de idade)
havia perdido um dos seus parcos haveres naquele local. E digo parcos pois,
pela indumentária que apresentava, gasta e descolorida, ao que se acrescentava
a descuidada aparência, não seria certamente dono de muitos mais.
«Coitado… Perdeu algo e não o
encontra.» - bem que poderia ter sido este o seu primeiro pensamento como
espectadora do caso. Contudo, fiel, talvez, a uma indomável curiosidade, ou a
uma intuição bem mais profunda, dona de intentos ocultos mas espantosamente
acertados, não despregou o olhar daquele homem que em plena rua lisboeta
permanecia ajoelhado. De seguida, ao aguçar a percepção do seu olhar, notou que
ele não buscava algo entre a terra, mas – imagine-se! – a própria terra. «Porque
motivo?» – indagará o leitor. Bem, de seguida o homem levou um punhado da mesma
aos seus ressequidos lábios e… tentou mastigá-la. Creio que isso satisfará a dúvida
que brevemente pairou por si.
Sim, era verdade aquilo que os olhos
da condutora presenciavam: um homem, em Lisboa, numa manhã de Inverno como
tantas outras, ajoelhava-se para comer um pedaço de terra. É claro que a
testemunha poderia simplesmente avançar assim que o sinal assumisse a cor
verde, prosseguindo calmamente com os planos reservados para o dia que mal
começara – absolutamente indiferente ao que tinha observado. Afinal, que homem
era aquele que comia terra num canteiro de Lisboa? «Provavelmente detinha mil e
um desarranjos psíquicos a carecer de tratamento urgente! É preciso
afastarmo-nos de pessoas assim, loucas, desvairadas e sabe-se lá mais o quê,
detentoras de patologias que nem nos mais completos livros de medicina surgem
descriminadas… Pessoas assim são um flagelo, um perigo para a sociedade!» - no
cume da nossa arrogância mesquinha, é provável que pensemos desse modo.
Felizmente, existem excepções que ainda muito condignamente questionam as
regras mais infundadas.
A vida deposita um dos seus mais preciosos
segredos não nos acontecimentos que a recheiam, mas na forma como cada um de
nós, seus intervenientes directos ou indirectos, a eles reagimos. Assim que o
sinal ficou verde, e a ordem de arranque foi dada, a dócil mulher, não querendo
olvidar a estranheza do que vira, decidiu estacionar o mais perto que lhe foi
possível e indagar, por si mesma, o caso que tanto a intrigava.
«Oh, senhor… O que está a fazer? A
comer terra??» - tê-lo-á questionado. Mas, antes que este tivesse tempo de
responder, logo acrescentou: «O que se passa? O senhor tem fome?». Fome.
Estaria aqui a resposta que deslindaria o estranho caso? «Sim, minha senhora,
tenho fome, muita fome…» - respondera o amável indigente, quase lavado em
lágrimas. A mulher, decidida, e já bastante incomodada com a crueza daquele
retrato que corre sérios riscos de se repetir noutras ruas de outras cidades
espalhadas por esse país fora, num repente dirigiu-se à sua viatura e lá reuniu
o pouco que no momento possuía: o seu almoço. «Tome lá, homem, tome lá... Tome
e deixe-se disso» - completou.
O que se passou a seguir emocionaria qualquer um: o homem, praticamente
afogado na sua própria emoção, prostrou-se aos pés da bondosa mulher e não cessava
de repetir, com um ânimo bem vivo e sentido, a única ladainha que sabia:
«Obrigado… Obrigado… Obrigado…». Tanto por tão pouco: uma sandes mista e uma
peça de fruta.
Feita a oferta, tão desprendida e
isenta de falsas filantropias (oh, como as há por aí…), seguiu a dita senhora o
seu rumo deixando o momentaneamente feliz homem a braços com uma refeição que
muito provavelmente não desfrutava há dias. As aparências concedem ilusões
tremendas, bem se prova… E a capacidade de julgamento do Homem, sempre tão
altivo e impregnado de moralismos que nem auxiliam uma ave de asa quebrada,
rege-se por parâmetros tão absurdos quanto questionáveis. Problemas psíquicos?
Não. Fome. Tão somente fome.
A senhora ficou visivelmente abalada
com o caso. Até esse aspecto do relato chegou até mim. Contudo, importa ver a
questão por um outro lado: naquele exacto momento, uma simples acção trouxe uma
luz infinda a um mundo de precário viver. É claro que, e com imenso pesar o
digo, como aquele homem muitos outros haverá, assim como mulheres e, mais grave
ainda, crianças. São rostos anónimos que se ocultam na bruma capitalista de uma
sociedade virada para dentro, isto é, focada nos interesses pessoais das
supostas elites que julgam governar. Até a pobreza, essa inaceitável chaga
social de um regime que se diz democrático (embora somente pareça empenhado em
adensar as disparidades entre todos os escalões na vez de as diluir), torna-se
aceitável quando, num ápice, viramos a atenção para o outro lado da estrada e testemunhamos
o flagelo da fome.
Confesso-lhe, estimado amigo que me
lê, que durante o meu tempo de vida nunca pensei ver, ou neste caso escutar, os
ecos da fome na cidade que me viu nascer. Indigentes sondando caixotes em busca
de haveres ou de restos comestíveis de alimentos? Sim. Mas… terra? Quão
profundo não seria o desespero daquele homem para se debruçar em plena via
pública e pegar num punhado de terra? Ainda que pela cidade existam,
efectivamente, resíduos disponíveis (qual a humanidade daqueles que comem as
migalhas de um pão que outros renegaram?) e até as famosas e sempre úteis cantinas
onde necessitados de diversas causas encontram refeições quentes. Mas aquele
homem escolhera a terra. A terra. De um canteiro pequeno e rasteiro. Numa movimentada
rua de Lisboa.
Esta crónica encerra-se aqui. O caso
fala por si. E, mais do que dele tão transparentemente sobressai, flutua
pungente a intenção e o significado daquilo que o próprio oculta. Que cada um
leia e julgue por si mesmo. A tarefa deste escriba foi cumprida. Agora, será
dada palavra à reflexão individual.
Uma crise económica é sempre, em primeiro lugar, uma crise humana, de
valores e de prioridades. Que cada um possa meditar no rumo que este país
começa por assumir, conduzido por governantes que de conveniência se dizem
cegos. Será esta a sociedade que desejamos? Serão estes os exemplos que
queremos deixar como legado a nossos filhos e netos? Que cada um sonde o seu
recanto mais íntimo e entenda, por fim, que quando a base da pirâmide se agita
o topo, invariavelmente, cede. Mesmo que quem o ocupe se julgue
confortavelmente intangível. Cada um de nós detém a hipótese de influenciar
positivamente o mundo que o rodeia. Pequenos actos fazem a maior das
diferenças, encerram o mais proveitoso dos impactos. De um gesto simples pode
nascer uma luz incrível. A pessoa que testemunhou a ocorrência tornou-se na
prova viva dessa premissa.
Que saibamos dar pão a quem só tem terra para comer.
Que saibamos dar pão a quem só tem terra para comer.
Pedro Belo
Clara.