Simples gestos, inocentes causas, profundas manifestações. Deu-se
o caso em questão numa viagem, de entre outras tantas, pelo metropolitano de
Lisboa. Nesta situação em particular, uma até bastante curta; mas longa o
suficiente para testemunhar a incidência que me preparo para relatar, um
sucedido passível de registo, de debate e de esclarecedora conclusão.
Confesso, antes de mais, que retiro uma grande satisfação de
tais jornadas subterrâneas. Pelos seus princípios, pela sua envolvência, pelos
seus “acasos” sempre certos e significativos. Isto, é claro, se exceptuarmos as
ditas “horas de ponta”, o maior terror de todo o viajante que se declara um
amante confesso das viagens serenas. De facto, como desfrutar da plenitude de
tudo o que de bom nos oferecem entre carrosséis de gentes que, em múltiplas
cascatas, se parecem lançar de toda e por toda a parte visível e palpável?
Atenção: não classifico a tarefa de impossível! Apenas de… complexa. Pois, no
seio de tamanhos tumultos, sempre se revela árduo o ofício de focarmos momentaneamente
a nossa atenção naquilo que nos rodeia. E daí, posteriormente, poder capturar a
mais pitoresca das imagens, a mais simbólica das situações. Admita agora o
estimado leitor: se optar por assumir o papel de um passivo observador, quanto
entendimento não poderá aflorar daquilo que vê em seu redor? Que ideias,
pensamentos, conjugações, axiomas filosóficos? Compreenderá agora, por certo,
se antes não havia ainda compreendido, o aspecto deste assunto que foco.
Mas quem, em boa verdade (e pela verdade se diga), consegue
atentar nos diversos sucedidos que despontam, a cada instante, em torno de si
próprio, quando a única vontade de quem contempla se prende com o agarrar de um
espaço vazio numa carruagem apinhada? Um pedaço de ferro disponível, sequer,
que o ampare nos sempre imprevisíveis arranques do “comboio”? Principalmente,
quando o derradeiro desejo reside no escutar da simpática voz electrónica que
anuncia a estação esperada… Até que ela se revela, qual sol entre as nuvens,
brilhando de forma profética e redentora, quem, de boa mente, poderá tecer
pensamentos sobre o que vê? Tudo isto, não esqueçamos, entre brumas compostas
pelos mais diversos (e característicos) perfumes e ecos de musicas reproduzidas
em modos gritantes. Leitor: como vê, contemplar no metropolitano pode
revelar-se um trabalho deveras hercúleo! Para observar, importa estar
disponível e receptivo. Sem dogmas, preconceitos ou outras restrições. Aberto
ao que vier, apenas. Como se um rosto sorrisse e se entregasse à fluidez do
vento que passa. Então, tudo seguirá o seu ritmo natural.
Enfim, que todo este longo enunciado não nos afaste do principal
assunto desta crónica dita “subterrânea”… Ou não se desse o caso que a sustenta
no específico local em que se deu. De facto, no dia em que tudo se sucedeu, a
carruagem que me transportava até se encontrava preenchida… Mas sem tocar, no
entanto, os seus extremos mais fundamentalistas. Permaneci de pé ao longo de
toda a viagem, embora devidamente amparado e confortável em meu recanto – quase
que direi – improvisado. Concluir-se-á, portanto, que, mesmo sem dispor de uma
“paz absoluta”, tinha ao meu serviço as condições mínimas necessárias a uma
observação atenta. Mas até nem seria necessário tanto, acrescente-se, não fosse
o caso dar-se bem perto de minhas barbas. Por mais aparadas que estivessem (e
estavam, eu o garanto), foi à curta distância de um toque, tão ligeiro e sem
esforço de impulso, que tudo se sucedeu. É natural, nesta fase, que o leitor se
questione: para quê observar, quando simplesmente se pode empreender uma viagem
da forma mais comum? Viajar, apenas, sem enlevos ou anunciações? Poderia optar
por não o fazer, é claro sim. Mas, se assim fosse, não sobejaria uma crónica
como esta (enaltecer o valor da mesma não é um envaidecido propósito meu, não…
Faço-a pelo registo que os sucedidos dignos de tal merecem e por aquilo que
podem transmitir através dos exemplos que comportam). Além do mais, parece que
contraio um sério interesse pela arte observadora… Tanto quanto viajar pelas
linhas de um qualquer metropolitano. Enfim… Se a cada Homem é-lhe dada a
benesse de cultuar uma íntima loucura, seja ela de que índole for, detenha ela
as divisas que detiver, aceite-se, então, este sadio devaneio. Que mais não é
do que um descontraído entretenimento; uma forma de tocar, conhecer e
compreender. Apenas.
Se recuarmos agora um pouco no discurso que tenho vindo a
registar, recordaremos a confissão expressa que revelei: satisfaz-me a viagem
metropolitana. A raiz desse sentir é profunda, e pauta-se, essencialmente, por
uma sensação íntima de estranha beleza, sedutora e cativante, que irrompe do
silêncio, quando o há, entre “estranhos”. É uma melodia que se escuta de forma
melancólica, com traços de cansaço, abandono e indiferença. Embora sempre
reserve um lugar para o sorriso, para o breve toque, para o súbito cruzar de
olhares. Ali, numa pequena extensão onde os passageiros se confinam, o espaço
que os separa, em ilusão, é o espaço que os une. Se espremesse-mos a imagem,
retiraríamos o sumo da mais pura humanidade. Quando refiro “pura”, não pretendo
mencionar a ausência de alguma “sujidade” moral ou espiritual – nada disso –;
antes o que de mais básico e primordial assiste a nossa condição, comum a todos
nós: dores, alegrias, tristezas, dúvidas, preocupações, inseguranças, certezas,
paixões. Ser humano é experiênciar um mundo de dualidades, é sentir cada
recorte desses e de muitos outros sentires. Ali, numa simples carruagem, os
“estranhos” revelam-se família e, entre murmúrios, soltam as suas mais íntimas
confissões. Recordam-se os laços que, no fundo, sempre nos uniram, mas que pela
ilusão do real foram sendo esquecidos. Nunca deixámos de ser uma coisa só. Devo
dizer, aliás, que esse pensamento fascina-me de sobremaneira. Tanto que, anos
atrás, compus um conjunto de poemas (quatro, no total) que descrevem toda uma
viagem pelo metropolitano lisboeta. Um registo poético, portanto, de cada rosto
observado e de cada sentimento sentido. Com os devidos pensamentos e conclusões,
como não poderia deixar de ser. A todo o leitor que por tal se interesse, fica
no ar o mote para sua procura.
O famoso caso que testemunhei, apesar de tão simples e
espontâneo, deteve também a sua quota parte de humanidade. Não no sentir – isto
é, na recepção do que se percepcionou –, mas no gesto em si e na profunda
significância do mesmo. Em plena viagem, numa determinada estação, contemplada
pela linha que frequentava, um grupo de três jovens entrou na carruagem e, de
pé, tal como eu, amparam-se o melhor que conseguiram junto das zonas de apoio
ainda livres. Como antes revelei, por obra de um qualquer acaso consciencioso,
que se preparava para eleger uma testemunha adequada ao evento que se aprontava
a despontar, permaneceram bem junto de mim. O grupo compunha-se por duas
raparigas e um rapaz, provavelmente partilhando todos da mesmíssima idade (com
uma certa segurança, arriscaria as dezasseis ou dezassete primaveras). Mais do
que pela indumentária, típica, na sua globalidade, de jovens citadinos em tão
tenra idade (se exceptuarmos o chapéu preto que uma das amigas envergava, qual
manequim em dia de desfile), mas pelas mochilas que carregavam, era possível
concluir que se preparavam para uma óptima tarde de praia.
Até ao momento, nada de pouco usual há a registar: três jovens,
amigos fiéis, prontos para desfrutar da aprazível companhia de seus
semelhantes, sorrindo, entre habituais brincadeiras de juventude, no seio de
uma boa conversa. Mas, de súbito, sem que nada o previsse, uma das raparigas, senhora
de uma ímpar beleza de verdes olhos e acobreados cabelos, revelou o que até então
havia permanecido oculto à minha percepção. Numa de suas mãos, pendente,
guardava um pedaço de pão, mínimo. Mas não julgue aquele resíduo alimentício como
um remanescente de abastada sanduíche… Muito pelo contrário! Era um simples
pedaço: pão, apenas, seco e gretado, que em seu diâmetro nem preenchia a palma
da mão que o segurava! Provavelmente, seria o sobejo de um pão maior (isto é,
completo) que a dita moça, sozinha ou em boa companhia, havia consumido.
Na solidão muito se consome, mas pouco se partilha. Pois a
exteriorização é nula, em regra geral. Assim, imagine-se o significado maior do
dito pão se partilhado tivesse sido, antes, em clima de amigável confraternização.
Essa é, aliás, no que a esta crónica diz respeito, a palavra a reter: partilha.
É que a jovem, por fim, num gesto tão natural quanto espontâneo, retirou uma
parte do já se si exíguo pedaço de pão e, imagine-se, levou-o à boca de um de
seus amigos. Enquanto este pacientemente o deglutia, a bela jovem repetiu o seu
gesto e “alimentou” o outro amigo que permanecia em falta. De seguida, e ainda
sem se extinguir, por completo, o naco do famoso pão, serviu-se a si própria,
enquanto se ia preparando para renovar o ciclo da dádiva. Perante isto, que
imagem, que alegoria, que evocação sobressai diante da nossa percepção? Uma
partilha de pão entre amigos, sem que seja, obviamente, numa derradeira ceia?
Que de antemão soubesse, nenhum dos jovens era membro de uma
qualquer comunidade religiosa, dada, talvez, a práticas daquela índole;
tampouco pareciam carecer de um expresso auxílio financeiro para que nada
tivessem como alimento, à excepção de um pedaço de pão seco e gretado. Nada
disso. A própria indumentária, as conversas e os comportamentos nunca sugeriram
tais coisas. É claro que tudo poderia não passar de uma simples brincadeira
entre ambos, de um peculiar modo de terminarem um pão que havia sido repartido
no início da viagem daqueles três jovens. Tudo isso seria exequível; e importa
que se abram, aqui, os caminhos do entendimento, por forma a permanecermos,
sempre que possível, receptivos a toda a hipótese. É por isso que afirmo: não
desejo ver, na paisagem, elementos que lá não estão; não desejo tornar reais
aspectos que são meras assumpções. É vital que sejamos não só coerentes no
assunto que relatamos, mas igualmente fiéis ao que foi percepcionado. Contudo,
eis o que se sabe, com plena convicção: o caso deu-se e eu fui a sua
testemunha; o gesto consumou-se da exacta forma em que o relatei. O resto, como
sempre acontece, ficará ao critério de quem o quiser interpretar.
Pessoalmente, tal sucedido instigou uma reflexão em minha
pessoa. E considero que ambos, autor e leitor, poderemos reservar um pouco do
nosso sempre escasso tempo para reflectir sobre ele. Não no acto em si, é
claro; mas na profunda significância do mesmo. Ao constatarmos um gesto tão
cristão a implodir, assim, de uma acção tão natural, como se enraizado estive
já, de forma inata, na alma daquela jovem, é difícil não indagar sobre a
inconsciente intenção que o fomentou. Apesar do toque algo religioso que o caso
parece assumir, peço que as atenções se desviem do mesmo… Pois não creio que
seja a religião que o suporta, em teoria, o elemento a merecer aqui um digno
sublinhado. Toda a religião é uma via; e todas essas vias, com mais ou menos
enlevos, acabam por desembocar no mesmo destino. Mais do que a religiosidade em
si, independentemente da sua origem (toda ela válida e passível de ser respeitada),
o que imperou no acto em questão foi a mais primordial premissa da mais vera
das “religiões”, aquela que todo o Homem em seu coração poderia (se não mesmo
deveria) cultivar: a fraternidade. Que laço mais forte e sincero poderá advir
de outras filosofias e dogmas obscuros do que do próprio sentir fraternal?
Esqueçamos a religião, foco de tanto conflito e dúvida; atentemos no mais
natural dos gestos que um Homem poderá ter para com o seu semelhante! Foi essa
linha de pensar, leitor, que mais se vincou na minha constatação do sucedido… E
do quanto ele, o acto, serviria de exemplo para muitos de nós. Se o nosso
quotidiano se povoasse de gestos assim, provenham eles de inocentes
brincadeiras ou de inatas predisposições fraternas, de amor e compaixão, este velho
mundo seria, por certo, um local bem mais luminoso do que aquele que hoje
conhecemos.
Pedro Belo Clara.