Bem que poderia ser mais uma bela tarde de Outono que sobre
aquele amplo jardim se instalava, com as alamedas de tombadas folhas na fresca
relva, os voos errantes de algumas apressadas aves, os pequenos – mas
preenchidos – bancos de madeira e a luz de um sol que acalentava os mais
pálidos rostos. De certa forma, até o foi. Mas, subitamente, entre cafés,
serenas conversas e silenciosas leituras, um estranho cântico irrompeu. Todos
os que presenciavam esse inesperado fenómeno de pronto desviaram o olhar de
suas tarefas, sondando a origem de tal coisa. Para muitos, era já familiar;
para outros, desconhecida e… efectivamente estranha. No meu caso particular,
confesso a familiaridade com a mesma. Eis, então, docemente invadindo aquele
espaço, uma mulher cantarolando uma incógnita canção (pergunto-me até se não a
teria inventado mesmo ali) com alvas flores em seus negros cabelos. Muitos,
desde logo, elaboraram seus diagnósticos e assinaram as suas íntimas conclusões
e julgamentos, pois apenas a existência de problemas psicológicos – e graves! –
justificariam tal comportamento. Outros, reconhecendo-a, lamentavam a sorte de
tal figura – sem conseguirem reter alguns breves comentários sobre a
indumentária da jovial cantora, que por certo seria um alvo da miseração
alheia.
Mas, tendo avançado já um pouco no relato de tal episódio, creio
dever ao leitor o seguinte esclarecimento: embora o nome da referida mulher me
seja completamente oculto, bem como o local de seu abrigo (que imagino e até
desejo que confortável seja), é verdade que meus olhos facilmente a reconhecem
quando tropeçam em sua figura. Diria que todo o bairro tem as suas peculiares
personagens – e em diversas deambulações pelas ruas que formam o meu me cruzei
com tal presença. Como tal, não poderia estranhar tal comportamento; não, tendo
já testemunhado o que as suas declaradas peculiaridades podem proporcionar:
lábios forte e desordenadamente pintados, fitas coloridas no cabelo, a hábil
arte de encontrar cigarros abandonados, diálogos aos quatro ventos ou o
mastigar de uma complexa ideia entre imperceptíveis sussurros.
Aquela improvisada plateia, célere retomou os seus urgentes
afazeres sob pena de envenenar um tão aprazível lazer. Mas ela, solta e
inocente, continuava com o seu peculiar e improvisado flamengo (sim, creio
agora ser esse o estilo mais adequado) junto de um canteiro de flores. Mirei-a
por um pouco mais. Sorri. Poderão terceiros considerá-la louca (convenhamos que
era a definição que até aqui tentava evitar) e compadecer-se por sua lamentável
condição, mas… terão eles visto o vigor de sua dança? Um certo brilho em seu
rosto marcado? O quão concentrada e rejubilante estava no seio de sua estranha
e árdua tarefa? Oh, quantos de nós não almejam alcançar tal fórmula? A da
felicidade expressa em cada coisa feita? Em cada pulsar de um coração que vive?
E ali estava a resposta: tão singular, tão natural, tão estranhamente certa…
Cada boca dirá o que mais lhe aprouver e convier, está claro, mas esta renegada
princesa, excomungada de algum conto de fada esquecido, encontrava-se veramente
feliz na ilusão do seu mundo tão magnificamente criado, onde apenas residem as
personagens que ela própria escolhe e define. Sim, talvez seja insana… E talvez
tal sentimento se esfumasse em breves momentos, consequência de uma existência
delineada entre dois extremos tão distantes, tão dolorosamente instáveis. Mas,
naquele instante, naquele preciso instante, ela era feliz – por mais efémero
que tal estado possa efectivamente ser. E poderemos nós, aqueles que tanto
buscam o mesmo efeito que a assomou, veramente recriminá-la por isso?
Pedro Belo Clara.